​Mulheres conduzem pela primeira vez cerimônias de ayahuasca na Amazônia
Tidas como frágeis pelos pajés da tribo Yawanawás, elas burlaram a proibição masculina e criaram uma versão mais elaborada do ritual espiritual. Crédito: Wikimedia

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​Mulheres conduzem pela primeira vez cerimônias de ayahuasca na Amazônia

Tidas como frágeis pelos pajés da tribo Yawanawás, elas burlaram a proibição masculina e criaram uma versão mais elaborada do ritual espiritual.

Esta é a primeira parte de uma série de três reportagens sobre aConferência Mundial da Ayahuasca realizada em Rio Branco, no Acre.

Em uma noite de quarta-feira na Floresta Amazônica, Waxy Yawanawá conduziu uma cerimônia proibida há alguns anos. A tinta vermelha do urucum cobria sua boca e nariz, dividindo seu rosto ao meio. Sua voz poderosa ecoava pela floresta enquanto cantava ao lado do curandeiro da tribo, um homem de 110 anos, e servia aos seus cem convidados um chá alucinógeno.

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Conhecido como ayahuasca, o chá, visto como uma ponte entre a humanidade e o conhecimento divino, é parte essencial de cerimônias religiosas de várias tribos amazônicas.

Os Yawanawás, uma tribo com 1.400 habitantes localizada na fronteira entre o Brasil e o Peru, entraram em contato com a população brasileira há duas gerações, quando seringueiros desbravaram o norte da Floresta Amazônica em busca de terras e trabalho. Com a queda do preço da borracha no meio do século 20, esses homens, que por séculos fizeram da seringueira seu sustento, começaram a comercializar o urucum, uma fruta espinhosa cujas sementes possuem um corante utilizado em batons, sombras e bronzeadores.

A ayahuasca sempre foi fundamental para as práticas espirituais dos Yawanawás. Por séculos, os chefes da tribo buscaram no chárespostas para todo tipo de dilema, desde doenças à política. Nessas cerimônias, o pajé, ou líder espiritual, bebia o chá e tocava a testa dos outros homens da tribo, transmitindo as mensagens enviadas por Deus por meio de alucinações. Embora o tabaco e a pimenta também fossem vistos como substâncias místicas, a ayahuasca era tida como a ponte para outro mundo.

Waxy Yawanawá conduz uma cerimônia de ayahuasca com Tutu Yawanawá. Crédito: Marina Lopes

Há dez anos, Waxy não poderia ter participado desse ritual. Além de serem consideradas frágeis demais para essas cerimônias, as mulheres são aconselhadas a evitar qualquer tipo de contato com líderes espirituais. Waxy e suas amigas querem mudar essa realidade e, para tanto, criaram um movimento que visa aumentar a participação de mulheres em cerimônias espirituais que vem se expandindo pela Amazônia.

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No início, os homens Yawanawá riram dessas exigências. Afinal, disseram eles, para se tornar um pajé é preciso muita disciplina e comprometimento, algo que poucos homens possuem. Os pajés devem morar durante um ano no seio da Floresta Amazônica, período durante o qual eles se abstêm de sexo, carne, sal, açúcar e peixes.

Após alguns meses de reinvidicações, o curandeiro da tribo, Tutu, permitiu que mulheres tentassem completar o treinamento. Os homens Yawanawá logo compreenderam que haviam subestimado suas mulheres.

"Se o pajé nos mandasse tomar um chá por dia, nós tomávamos três. Se ele mandasse não ter contato com nossa família, nós nos afastávamos de todo mundo", disse Julia Yawanawá, 35, que, junto de sua irmã Waxy, liderou o movimento para incluir mulheres nas cerimônias. "Fizemos muito mais do que eles exigiam para provar que somos mais fortes do que eles pensam", disse ela.

Em 2006, os Yawanawá se tornaram a primeira tribo a nomear uma mulher como pajé. Tribos vizinhas, como os Katukina e os Ashaninka, logo seguiram o exemplo.

"Se o pajé nos mandasse tomar um chá por dia, nós tomávamos três."

A inclusão das mulheres no reino espiritual afetou outras partes da experiência religiosa. As alucinações causadas pela ayahuasca inspiraram essas mulheres a criar cantos tribais mais rítmicos e artesanatos mais intrincados. Elas também aperfeiçoaram ferramentas centenárias como o cachimbo de tabaco, peça essencial dos rituais Yawanawá utilizada por pajés para desintoxicar o corpo e alinhar as energias.

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Hoje, Julia e outras mulheres Yawanawá lutam para que mulheres de outras tribos tenham esse mesmo direito.

"Queremos que elas saibam que podem ser mulheres, mães, companheiras e também líderes espirituais. Elas devem saber que o poder espiritual não tem raça, tribo ou gênero", disse.

Julia Yawanawa prepara-se para falar com vários líderes tribais sobre a inclusão de mulheres nas práticas espirituais. Crédito: Marina Lopes

Esse processo também inclui convencer os homens, guardiões das práticas espirituais de suas tribos, de que as mulheres têm direito a esse conhecimento, podendo inclusive ajudar a preservar esses rituais. Para os pajés mais antigos, essa é uma ideia difícil de engolir. Muitos consideram as cerimônias conduzidas por mulheres como ilegítimas.

"As mulheres não aguentam o poder do chá. As mulheres modernas que tentam tomar o chá não estão seguindo nossa tradição. Elas não sabem realizar nosso ritual da forma certa, tudo que elas fazem é uma imitação", disse Gilberto Kaxi Nava, um líder espiritual de 46 anos da tribo Huni Kuni.

Determinadas a dar a outras mulheres a oportunidade de participar de uma cerimônia própria, Julia e Waxy organizaram um ritual de celebração do empoderamento feminino, convidando mulheres de várias tribos a experimentar o chá.

"Os homens que não nos aceitam acreditam que podem controlar as mulheres", disse Tatiana Marquez, 31, uma índia Guarani que participou da cerimônia de empoderamento feminino. "Mas os homens não entendem a força da ayahuasca e a nossa capacidade de descobrir nosso poder com o chá."