​Meu Colega de Quarto Era o Senhor das Drogas da Deep Web

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Tecnologia

​Meu Colega de Quarto Era o Senhor das Drogas da Deep Web

Como eu dividi apartamento com Ross Ulbricht, considerado culpado no mês passado pela criação e operação do mercado negro online Silk Road.

Conheci Ross Ulbricht, o homem de 29 anos considerado culpado no mês passado pela criação e operação do mercado negro online Silk Road, em uma cervejaria artesanal na Haight Street.

Ele chegou de moletom vermelho e jeans azul, barbado. Havia ido até lá para uma entrevista, uma conversa comigo e o casal com quem dividia uma casa em Glen Park. Tínhamos um quarto disponível, e Ross havia respondido ao anúncio que tínhamos postado na internet.

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Não sabíamos de fato que tipo de pessoa ele era, mas ao conversarmos entre pilsens e IPAs, me senti aliviado: ele não era nada como os outros candidatos. Eles todos trabalhavam com publicidade, em startups – funcionários do Twitter que falavam sobre como ganhavam bem e os locais exóticos onde tiravam suas férias. Ross era desses tipos de tecnologia, mas não agia como um. Ele parecia eloquente, otimista, pé no chão. Alguém de confiança.

Pensando bem, eu estava bem bêbado naquela noite.

Então ele se mudou. Ajudei-o a comprar alguns móveis na Ikea, em Oakland. Fomos atrás de lenha na vizinhança, para a lareira. Sua irmã e pais visitaram uma semana e na outra, sua namorada, do Texas, apareceu. Conheci seu meio-irmão. Conheci seu melhor amigo de infância. Sentamos em sofás azuis na sala da casa enquanto a luz do sol entrava pelas janelas de frente para o Balboa Park e a Interstate 280. Fumamos um e fizemos carinho nos cães de nossos outros dois colegas de quarto, dois chihuahuas letárgicos.

Chovia quando ele me mostrou sua página do DeviantArt, fruto de seus anos como estudante de graduação da Universidade de Austin ("São só rabiscos, mesmo"). Certa vez o ouvi enquanto assistia V de Vingança em seu quarto, com a porta fechada. Outra tarde, indo ao Paco's Tacos perto da Universidade de Berkeley, Ross disse que tinha deletado seu perfil no Facebook porque estava preocupado em disponibilizar muitas informações pessoais na rede (o perfil foi reativado posteriormente). Depois, quando eu procurava um notebook novo, Ross sugeriu que pegasse um PC que rodasse Ubuntu, um sistema operacional livre cujo nome é inspirado na filosofia sul-africana Ubuntu, cuja tradução significa "humanidade" e expressa uma fé na interconectividade de todos os seres humanos – ideias essas não tão distantes da própria mentalidade de Ross.

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Ross e eu éramos sublocatários, então nunca assinamos o mesmo contrato. Na verdade, só vim saber seu sobrenome dois meses depois de termos nos conhecido. É engraçado que nunca tenha surgido em meio a uma conversa (isso revela mais de mim do que de Ross?). O evento que revelou a informação não foi nada mais nada menos que sua prisão em outubro de 2013.

Quinze meses depois, do outro lado do país, o caso Estados Unidos da América contra Ross William Ulbricht começava. No coração do julgamento estava a busca pelas mãos que deram vida ao administrador do Silk Road, Dread Pirate Roberts (ou DPR). Evidências ligando meu antigo colega de quarto ao usuário DPR eram das mais contundentes, no mínimo – os diários, a conta no Gmail, as identidades falsas confiscadas, os registros de conversas, os posts em fóruns feito pelas personalidades sem rosto que haviam sido todas, aparentemente, criadas por Ross sob pseudônimos como altoid, frosty, e é claro, Dread Pirate Roberts.

A defesa afirmava que por mais que Ross tivesse criado o Silk Road – fato desconhecido pelo público e pela família de Ulbricht até sua revelação durante o julgamento – ele havia repassado o controle do mesmo para outro usuário, que por sua vez, havia armado para que Ulbricht levasse a culpa como cérebro por trás do site.

Este argumento básico parecia basear-se quase que unicamente no velho clichê da internet de que ninguém é o que parece. Sim, disseram, Ross era criativo o bastante, idealista o bastante para criar um comércio online anônimo. Até aí podemos admitir. Mas e as drogas? Aquele baú do tesouro em criptomoedas? As tentativas de assassinato por matadores de aluguel? Era, argumentava a defesa, tudo um caso de identidades trocadas.

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Claro que queríamos que Ross se livrasse. Queríamos que ele fosse inocente, um herói: o garoto-propaganda da privacidade na Era da Informação. Sua sentença em 15 de maio não será o fim da história – ele ainda tem que enfrentar julgamento sob a acusação de ter sido mandante de tentativas de assassinato em Baltimore, Maryland, em data ainda não definida. Além do que, o advogado de Ulbricht disse que recorrerá da decisão do juiz, o que adicionará ainda mais despesas à quantia já significativa de tempo e dinheiro gasto pela família e apoiadores do réu.

É complicado imaginar como Ross está lidando com esta novela judicial. Ele é um cara tranquilo, um escoteiro com coração de ouro. Um cara admirável, que durante o tempo em que moramos juntos, curtia caminhadas e tocar djembe. Um cara articulado e humilde, com o "tipo de cabelo que você veria em crianças em pinturas de Norman Rockwell", como descreveu um jornalista. Com toda a honestidade, ele é meio que um nerd. Certa vez lhe emprestei minha cópia de Gödel, Escher, Bach, a obra de 777 páginas do cientista cognitivo Douglas Hofstader que explora os conceitos fundamentais que permitem a existência da inteligência, simetria e matemática. Ele acabou lendo mais do livro do que eu. Com certeza ele o compreendia melhor. Desnecessário comentar que Ross preferia uma noite tranquila a uma balada.

E nisso consistia o grosso do argumento de defesa: como um cara tão bonzinho teria as manhas de supostamente encomendar assassinatos? Como alguém inteligente o bastante para ter um mestrado de Penn State poderia ser burro o suficiente a ponto de usar seu próprio email para anunciar um comércio ilegal em um fórum básico como o Shroomery.org? Ele simplesmente achou que não seria pego? A defesa declarou que Ross não poderia ser Dread Pirate Roberts porque o próprio teria sido mais cuidadoso, mais ponderado em suas ações. Ross, disseram eles, é só um cara normal.

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Chefões do crime costumam ser cheios de marra e sofisticados com roupas de estilistas e mulheres de biquíni ao seu lado: coisa que a gente vê em filmes de verão ou em letras de rap. Barões das drogas vangloriam-se dos frutos de sua criminosa labuta. Mas a vida de Ross como senhor das drogas digital estava longe de ser glamourosa. Ele comia salmão, pão de trigo germinado, cortes magros de carne vermelha, aspargos. Suas roupas eram da Old Navy, Target, American Eagle. Ele não era viciado em drogas e nem andava com nenhum viciado. Ficadas de uma noite só, até onde entendi, não combinavam com ele.

Mas e o que eu sei, não é? Afinal, havíamos nos conhecido pelo Craigslist.

Nossos caminhos se cruzavam dia sim, dia não: ele saía de casa pela manhã antes de eu acordar e eu voltava do meu trabalho noturno no mercado (debaixo da biblioteca pública onde ele seria preso futuramente) depois de Ross ter pego no sono. Quando o via, estava ali sem fazer nada, sem camisa, um hábito que considerava estranho e meio riponga (ou até mesmo meio vaidoso). Certa vez, após uma tentativa de tentar catar lixo em meio aos arbustos do Glen Park Canyon, Ross acabou com um caso severo de urticária. Ele passou o resto da semana andando pela casa, enrolado de leve na toalha, com a pele vermelha e bastante inflamada.

De repente o Google reuniu mais informações sobre meu colega de quarto do que qualquer conversa que tivemos durante dois meses morando juntos

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Ele não tinha telefone celular. Em termos de trabalho, ele dizia "fazer sites", e uma vez mencionou algo sobre "câmbio financeiro". Quando lhe perguntei se mexia com Bitcoin, ele respondeu, com um brilho nos olhos, "é, rola um pouco disso".

Na semana que antecedeu sua prisão, Ross se encontrou comigo e alguns amigos em Ocean Beach. Tomamos champanhe e ele tocou seu djembe. No final da noite, uma dupla de policiais se aproximou do círculo que havíamos formado ao redor da fogueira e nos mandaram apagá-la, dar fim naquilo ali. Nas palavras deles, era hora de irmos embora.

Na terça-feira seguinte, cheguei em casa do trabalho e me deparei com um papelzinho na mesinha de café:

A primeira vez que vi o nome completo de Ross foi no formulário de busca e apreensão que acompanhava este recibo.

De repente o Google reuniu mais informações sobre meu colega de quarto do que qualquer conversa que tivemos durante dois meses morando juntos. Eu conhecia seu rosto, sua voz, sabia qual a marca de pasta de dente que ele usava, o que ele comeu em sua última noite como um homem livre, mas o que ele fazia fora de casa no Monterey Boulevard? Tínhamos uma conexão de internet compartilhada da Comcast. O que, via internet, ele fazia naquela mesma casa?

Será que os federais sabiam dos meus torrents de música pop? Da pornografia que eu assistia? Dos blogs que visitava diariamente? As horas que passei vendo o Facebook e conversando com amigos pelo Skype? Será que os agentes ficavam dentro de sedãs pretos pela vizinhança enquanto eu passava pelo espaço apertado entre minha cama de solteiro e as minúsculas janelas do quarto que davam pra rua, enquanto roía minhas unhas? Se todos os emails que já mandei, se cada post em fórum que já vi fossem vistos pelas autoridades, será que narcisismo seria a acusação mais grave a cair sobre mim ou rolaria algo mais grave?

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Eu, sendo bem honesto, me divirto com a série de acasos dessa história. Depois que o choque e paranoia da prisão acalmaram, passei a googlar o nome de Ross de hora em hora – sempre tinha algo de novo pra ler. No Reddit, um, usuário postou o endereço de correio de uma cela no Metropolitan Detention Center (MDC), no Brooklyn. Mandei uma carta (Como você está? Como é a comida?) e um conto de Edgar Allan Poe, "O Homem da Multidão". Ross respondeu algumas semanas depois me agradecendo pelo conto, afirmando que o texto de Poe era uma boa mudança de ritmo em relação ao que ele andava lendo ultimamente: a Bíblia e um livro sobre química orgânica. "Gostei que o personagem principal só observava as coisas inicialmente", escreveu Ross. "E no final da história ele era um participante ativo."

Continuei escrevendo. Mandei uma cópia de Gödel, Escher, Bach, na esperança de manter aquele resto de familiaridade que já tivemos. Nenhuma resposta. Uma carta, duas, três, quarto… Sua ex-namorada, agora morando em Los Angeles, trocava mensagens comigo constantemente no Facebook antes de, sem mais nem menos, se calar. Quando escrevi para a mãe de Ross sobre visitá-lo na cadeia, ela explicou que o processo era longo e complexo, mas que passaria o recado ao seu filho.

Ele não tinha telefone celular. Em termos de trabalho, ele dizia "fazer sites", e uma vez mencionou algo sobre "câmbio financeiro"

Eventualmente, ficou claro que uma visita estava fora de questão, Lyn então me deu o endereço de Ross, diferente daquele que ele estava usando. Percebi então que ele havia sido realocado dentro do MDC e possivelmente a meia-dúzia de cartas e a cópia de Gödel, Escher, Bach nunca chegaram até ele. Quando fui visitar minha família no Queens durante a o Dia de Ação de Graças, peguei a linha R de Manhattan até Bay Ridge e passei por perto do MDC. Estava nublado e as ruas estavam vazias.

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O que eu diria pra ele? Cada pergunta parece muito banal ou incriminadora. Acho que falaríamos sobre San Francisco, os cachorros, aquela noite na praia. Tacos. Djembe. Todas essas coisas que nós dois sabemos serem fatos. Porque, sejamos justos, eu não conheço Ross.

É mais fácil falar coisas horríveis, sacanagem ou mesmo ser carinhoso pela internet do que ao vivo. É mais fácil ameaçar um completo estranho pela internet do que cara a cara. Essa que é a parada com o Ross: as supostas tentativas de assassinato que me incomodam, incomodam meus colegas de quarto, minha família, a família dele e amigos. A acusação afirma que Ross conspirou para o assassinato de um ex-administrador do Silk Road pagando o valor de 80 mil dólares em Bitcoin – mas o co-conspirador no final das contas era um agente federal que enviou a Ross imagens falsificadas que "provavam" o assassinato.

Mesmo que o assassinato tenha sido falso, esta guinada violenta que supostamente tornou-se característica de Dread Pirate Roberts não era um atributo de seu criador. É como se o usuário tivesse ganho mente própria.

"Não é preciso mudar sua vida", escreveu Jean Baudrillard. "Tudo que você precisa é ter duas."

Acho que Ross reconheceria o valor disso.

Então é aqui que posso começar a reconciliar a personalidade de meu colega de quarto Ross Ulbricht e a figura de Dread Pirate Roberts em um só indivíduo. Quanto mais reconheço a divisão entre o autor e seu usuário, mais a evidência aponta não só para a culpa de Ross como também sua ingenuidade. É esta característica infantil, a mesma crença fervorosa de uma virtude inerente ao mundo, que faz de Ross, na maior parte do tempo, um homem honesto, e por um breve período, alguém que considerei respeitável. Não acho que Ross queria machucar ninguém com sua "simulação econômica". Mas ele mentiu para nós. E por mais que não possa racionalizar suas ações, queria que fosse o Dread Pirate Roberts que estivesse naquela cela, e não Ross.

Tradução: Thiago "Índio" Silva