​Mais Rápido
​Crédito: Gustavo Torres

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

​Mais Rápido

Há algumas décadas, neurocientistas descobriram que o momento do agora é, na verdade, composto de tudo que vivemos nos últimos 15 segundos. Naturalmente, alguém decidiu hackear isso. Eis que nasceram os nowts.

Um nowt tomou minha namorada praticamente de meus braços.

Aconteceu em público, diante de cerca de 50 mil pessoas. Mas não quero fazer disso uma tragédia. A humilhação e a indignação sentidas não foram muito maiores que o que qualquer cidadão ordinário sentiria quando um nowt consegue um bom emprego ou algum outro prêmio que, em circunstâncias diferentes, iriam para o cara comum. Nós, comuns, já nos acostumamos com essa sensação.

Publicidade

Eu havia levado Emma ao Dodger Stadium naquele dia quente de agosto, para os ver os Dodgers jogarem contra os Creoles de Porto Príncipe. A coisa entre Emma e eu estava começando a ficar séria, conversávamos sobre morar juntos, talvez num desses novos prédios que combinam tecnologia e arquitetura com vista para o mar em Century City. Eu tinha um emprego decente no Comando de Plantas Invasoras do estado. Trabalho mais do que estável. Atualmente estávamos obstinados na extirpação do espinheiro canguru mutante, verdadeiras barricadas com mais de dois metros de altura, emaranhadas com pontas venenosas que pareciam crescer da noite pro dia. Emma lecionava naqueles MOOCs, educação online à distância, sob a chancela da USC, tais como "Introdução à isometria em gravidade zero" e "Yoga tântrica para ciborgues híbridos". Combinada, nossa renda era o bastante para nos qualificar a um apartamento em condomínio fechado de três quartos com uma adorável vista para as ondas que banham os pilares ultra-elevados e mega reforçados da Rota 405.

Emma pode não ter tido lá muita sorte comigo, mas com ela, ganhei a loteria. Fato que eu era bem malhadão por conta do meu trabalho extremamente físico, mas não era bonitão como um avatar de cinema.

"Escarpado", na melhor das hipóteses. Emma, porém, era linda e, se não uma intelectual do porte da Secretária de Estado Malia Obama, certamente ela tinha uma personalidade vibrante e encantadora.

Publicidade

Eu queria mesmo que ela se divertisse ali no jogo. Emma amava todo e qualquer esporte, mas especialmente baseball. Havia conseguido dois ingressos por 485 dólares cada. Eles eram bem distantes do campo, mas foi o melhor que consegui. Os preços haviam disparado com os Dodgers em busca do título. Mas uma coisa boa dos lugares era que estaríamos preparados para qualquer home run que viesse para a arquibancada. Até mesmo tinha trazido minha velha luva de infância, feita de couro de órix criado em laboratório.

Lá estávamos nós, com nossos coletes de stilskin para aguentar o calor, bebendo cerveja cara, comendo cachorros-quentes e pipoca agridoce sabor Pad-Thai, gritando com Hatsuto Ramirez se preparando para rebater a bola, quando vejo um cara vindo de mansinho pela arquibancada em nossa direção, assoviando uma música.

Ele estava vestido como qualquer outra pessoa: bermudas cargo de cânhamo, camisa tipo Henley da Young&United, calçando sandálias Tevas. Mas logo de cara saquei que ele era um nowt. Como, não sei. Como alguém reconhece um now-tweaker, um ajustador-do-agora? Uma aura luminosa, quase divina, de autoconfiança prendia-se ao cara, um jeito fácil e flexível de se mover, como se o universo tivesse se aberto anteriormente e então se fechado atrás dele.

Ficar perto de um nowt sempre me deixou meio apreensivo, assim sendo, tentei ignorá-lo. Me vi pensando porque ele não estava em uma das suítes de luxo que seu povo geralmente frequenta. Emma estava tão focada no jogo que ainda não tinha o visto. O narrador anunciava um strike para Ramirez.

Publicidade

Incrivelmente, o nowt havia entrado em nossas fileiras e se esgueirava elegantemente pelos joelhos de todos ali sentados como se estivessem amanteigados, vindo em nossa direção.

Ouve-se a batida o bastão contra a bola.

O nowt, um cara apenas modestamente bonito, estava diante de nós. Ele se curvou com elegância e disse à Emma "Para você, linda", então sem desviar seu olhar de uma Emma já hipnotizada, levantou seu braço a tempo de pegar a bola que Ramirez havia enviado em nossa direção. Pelo barulho que a bola fez em sua mão deu pra perceber que doeu, mas ele nem se mexeu.

É claro que o público surtou. Quando vi, Emma e o estranho estavam nos telões ao redor do estúdio. Todos urravam clamando por um beijo. O nowt atendeu aos pedidos ao puxar a Emma para perto. Ao soltá-la, ela parecia atordoada. E eu também.

"Deixe eu me apresentar. Boffo Blinkoff. Posso ter o prazer de sua companhia em meu camarote?"

Antes que eu pudesse até mesmo juntar meu queixo, que havia caído no chão, Emma e Boffo subiam as escadas. Ele fazia malabarismos com a bola que havia acabado de pegar enquanto caminhavam. O rapto como um todo – desde quando vi Boffo Blinkoff, ate ele pegar a bola, o beijo nos telões do estádio e ele conduzindo Emma para longe – havia levado cerca de 90 segundos. Esta foi a última vez que a vi.


Há algumas décadas, neurocientistas descobriram através de diversos experimentos de percepção que o momento imediato que temos na cabeça – o suposto ponto cristalino do foco cognitivo que move-se inexoravelmente através de nossas linhas do tempo pessoais de um milissegundo ao outro – é, na verdade, um conjunto de tudo que vivemos nos últimos quinze segundos.

Publicidade

Ao invés de ser um foco delimitado de atenção, a consciência comum se assemelha mais a uma janela tosca que se abre lentamente que vamos percebendo aos poucos e organizando no presente, espalhando em uma cena o entulho do passado imediato.

Naturalmente, quando a ciência por trás do cérebro ficou sofisticada o bastante, alguém decidiu hackear isso.

E assim surgiram os now-tweakers, ou nowts.

Graças à nanocirurgias caríssimas (dez milhões de dólares é o mínimo) e um regime à base de medicamentos, os nowts têm consciência exata: os primeiros humanos a obterem-na.

As habilidades que acompanham o procedimento são incríveis. Livres daqueles lerdos quinze segundos, um nowt é uma espécie de proléptico de curto prazo: estas pessoas são capazes de prever o futuro até certo ponto e agirem de acordo com suas previsões. Além disso elas também conseguem interpretar outros indivíduos e situações de forma mais profunda e precisa do que qualquer um de nós. Sabe quando um jogador de pôquer fala dos tiques e maneirismos pelos quais um amador se entrega? Bem, para um nowt, toda e qualquer pessoa e o universo inanimado vive dando essas dicas. Os nowts perderam o defeito padrão dos humanos da "cegueira por desatenção", aquela falha da percepção em que prestar atenção a determinado aspecto de uma situação te deixa cego para outras coisas acontecendo bem debaixo do seu nariz.

Como é de se esperar, os now-tweakers se dão bem na sociedade, nos negócios, entretenimento e artes. Eles lideram e participam com facilidade de qualquer coisa. Eles arrasam no mercado financeiro. Um campo que nunca entraram, porém, é a política, o que provavelmente ocorre em prol do restante da humanidade. Uma desvantagem de e tornar um nowt é chegar às raias da sociopatia; o serviço público, com seus sacrifícios, não é lá muito convidativo para este tipo de personalidade.

Publicidade

Os nowts a essa altura já obtiveram sucesso, em grande parte, em dominar estas tendências, apesar de alguns casos extraordinários. Mas não é como se humanos comuns não pudessem ser sociopatas também.

Os nowts até mesmo se dão nomes bobos como Boffo Blinkoff, para se humanizarem um pouco.

Boatos acerca da primeira cirurgia nowt em embriões, dando origem a uma geração de loucos, dão uma balançada na sociedade, intermitentemente. Mas nós, humanos comuns, seguimos nossas vidas como se já não fôssemos obsoletos.


O Viper Room contava com um letreiro enorme com diversos pixels sintéticos biológicos molengas anunciando o 40º aniversário da boate. Passei em frente ao público fervilhante em frente ao local, e fui em direção ao Nowt So Queer, um pouco mais abaixo.

O clube tinha uma clientela diversa de pessoas comuns e nowts, estes primeiros se esbaldando na glória dos últimos, buscando alguém para ficar, que lhes financiasse ou desse dicas sobre os mais variados mercados e tendências. Não tinha interesse em nenhuma dessas coisas ou na bizarra música nowt, que sempre parecia estar meia batida à frente. Em vez disso, ia lá todas as noites que pudia na esperança de ver Emma novamente.

Esta noite, porém, me vi indo para casa com uma nowt.

Ela se chamava Dulce Decorum. Inclinando-se sinuosamente em minha direção no bar, ela se apresentou e disse "Deixe-me pagar uma bebida para um dos homens que nos protege de caracóis neozelandeses e demais horrores".

Publicidade

Eu havia tomado um banho e me livrado da sujeira de meu trabalho, além de usar roupas civis, mas uma série de arranhões imperceptíveis deve ter dado ao seu radar nowt digno de Sherlock Holmes pistas o bastante.

Sempre fiquei meio angustiado perto de nowts. Aparentemente, esta sensação não se estendia a quem estava me pagando alguns drinques. Com seu chapeuzinho de penas brancas, sua expressão animada, cativante e levemente assustadora, como a de um tigre à espreita, e seu corpo, mal coberto por um traje apertadíssimo de couro de enguia, Dulce Decorum me parecia altamente desejável, nowt ou não.

Confirmei a ela qual era minha ocupação, disse-lhe meu nome e perguntei o que ela fazia.

"Eu enceno jogos de RPG. Você já jogou 'Briga de Travesseiros Alienígena?' Esse era um dos meus."

"Eu não sou muito dessas coisas – no geral. Já tem emoção demais no meu trabalho."

Ela sorriu, "Bem, estou trabalhando em um jogo avassalador agora. Você reparou que no ano que vem o filme 'Eles!' completa 80 anos?"

Me senti burro mesmo sendo um cara comum. "Eu não conheço o filme."

"Formigas gigantes em Los Angeles? É um clássico! Você tem que assistir."

Um monte de arruaceiros musculosos e tatuados usando regatas e bermudas de surfista coloridas estavam fazendo uma barulheira sinistra no local. Os reconheci como marginais refugiados de Kiribati, os "Atoll Assholes", sempre de mau-humor depois que seu país foi afundado e sempre atrás de uma briga.

Publicidade

Dulce pelo jeito não deu a mínima pros caras de Kiribati, "Ei, espertão! A gente pode assistir 'Eles!' por streaming na minha casa. Termine sua bebida nos próximos cinco segundos, então se abaixe e amarre seus sapatos".

"Hein?"

"Tarde demais pra beber! Amarre seus sapatos agora!"

Me inclinei obedientemente, ainda confuso, e uma garrafa de cerveja voou pelo espaço que antes minha cabeça ocupava, espatifando-se em uma parede lotada de bebidas caras.

Dulce Decorum segurou minha mão e me puxou.

"Me acompanhe!"

Nenhum jogador de futebol americano teria como reproduzir os movimentos de Dulce. A forma como ela nos guiou entre a turba furiosa de clientes fez parecer que éramos os únicos no lugar. Desviamos de cotovelos, socos, chutes, empurrões e corpos ao ar e logo estávamos do lado de fora antes da primeira sirene da polícia até mesmo ter soado.

Fiel à sua palavra, Dulce me mostrou o antigo filme de ficção científica naquela mesma noite.

Sexo com uma nowt era incrível. Ela parecia antecipar tudo que eu queria antes que eu mesmo soubesse que queria. Depois, fui atingido por um surto de tristeza. Se era isso que Emma sentia com Boffo, não tinha jeito mesmo de ela voltar pra mim.

Então investi em Dulce Decorum. Passamos muitas, muitas horas junto ao longo das próximas semanas. E então, uma noite, ela me pediu para entrar escondida no meu trabalho. Por curiosidade e tal.

Minha equipe de Espécies Invasivas estava lidando com uma colônia de caranguejos-peludos-chineses geneticamente modificados. Aqueles desgraçados quitinosos, construídos enormes e carnudos, haviam escapado de uma fazenda de aquicultura na costa e se alojado em Malibu. Não só eles gostam de mordiscar surfistas, banhistas e qualquer um caminhando pela praia, mas, sendo cavadores, eles estavam arruinando toda a margem oceânica do parque. Tínhamos a difícil tarefa de erradicá-los sem envenenar a paisagem. Acredite em mim quando te digo que foi uma loucura descer nos túneis daqueles bichos com um lança-chamas em miniatura nas mãos. O trabalho tinha um ritmo excruciantemente lento. Em compensação, a equipe toda ganhou belos jantares improvisados. Manteiga derretida vai muito bem com carne de caranguejo tostada!

Publicidade

A colônia havia sido cercada para impedir o acesso público. Não que os cidadãos precisassem de muito convencimento para ficarem longe.

Por volta da meia-noite, meio bêbado, burlei o sistema de segurança com meu celular, abri o portão e deixei Dulce entrar. Ela sussurrou "só quero ver onde eles moram".

Levei-a à entrada de uma toca. Ela se agachou e rastejou para dentro.

"Não faz isso! Eles não são muito ativos de noite, mas nunca se sabe"

Dulce voltou, fechando o zíper de sua pochete Gucci.

Eu ia perguntar o que tinha ali dentro, mas Dulce me beijou com tudo. Eu cedi e esse foi o fim da nossa noite.

Você provavelmente consegue imaginar o que aconteceu ali, se é que tem acompanhado os últimos eventos.

Um dia, três meses depois, um bando enorme de jogadores de RPG live-action apareceu em Malibu do outro lado da cerca da área proibida. Uma multidão emotiva de jovens e velhos, todos vestidos com roupas dos anos 50 e diversas armas simples. Dulce Decorum liderava a multidão.

Era sábado, e minha equipe estava de folga.

Bem no horário, horário esse só conhecido por Dulce, caranguejos gigantes surgiram do solo. Do tamanho de motor-homes e malvados como ursos picados por abelhas, eles estavam incubando desde que Dulce enfiou uma isca nano-misturada com um agente de crescimento em suas tocas. Um tiquinho de traição que eu havia possibilitado sem querer.

Os caranguejos derrubaram a cerca de arame como se fosse feita de palitos de dente. Os RPGistas, impressionados, mas ainda afoitos, começaram a lutar com os bichos com rifles e machados e nunchakus e facões. Muitas cabeças e vários membros foram picotados sumariamente. A cabeça e membros de Dulce não fizeram parte das fatalidades; ela evitava cada pinçada errante com graça estocástica.

Quando cheguei com os outros primeiros a atenderem ao chamado, a batalha já tinha praticamente acabado, com os caranguejos gigantes – ao todo sete, mas pareciam ser dez vezes mais – se debatendo como a matéria-prima de um luau.

Dulce havia sido identificada como a organizadora do massacre, já algemada quando consegui encontrá-la. Ela virou para mim com um olhar maníaco e disse "Isso não é nada benzinho! Posso fazer tudo plantando bananeira. E quando sair da prisão, minha fama estará feita! Espere por mim!"

Por pouco mantive meu emprego. A lei levou em consideração minha ignorância em relação aos planos de Dulce, e o humilhante fato de que nenhum humano comum como eu teria chance de ser mais esperto que um nowt determinado.

No momento não tenho namorada. Fico vacilando entre tentar encontrar alguém como Emma ou como Dulce. Uma mulher chamada Laura, que faz parte da minha equipe, quer mesmo ficar comigo. Poderíamos ficar juntos por um tempão, esmagando insetos e criando uma família. Mas ouvi dizer que a Dulce quer encenar Godzilla quando sair da prisão, no ano que vem.


Este conto faz parte do ​Terraf​orm, nosso novo lar online para ficção futurista.

Tradução: Thiago "Índio" Silva