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Tecnologia

Long Shot: Por Dentro das Armas Inteligentes

Por dentro da empresa que quer transformar atiradores novatos em profissionais com alto nível de precisão.

Era o pico da tarde. O sino de 3,5 toneladas da Torre bateu 16 vezes em ponto. A temperatura era alta naquele momento. O sol brilhava forte sobre os moradores, estudantes e funcionários da faculdade, gente que seguia com suas tarefas diárias e suas vidas. O primeiro de agosto de 1966 era apenas mais uma segunda-feira em Austin, Texas. Até alguém começar a atirar.

Claire Wilson foi a primeira a ser atingida. Ela estava grávida de oito meses. O atirador fez questão de acertar a estudante de antropologia de 18 anos no estômago. Thomas Eckman, o noivo de Claire, estava bem ao lado dela quando levou o segundo tiro, ao se ajoelhar para tentar ajudá-la. O caos se seguiu enquanto os tiros reverberavam pelo campus. As balas continuavam vindo — em outras direções, para outros passantes. Mas de onde vinham os tiros?

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Não demorou muito para que as autoridades encontrassem um homem, mais tarde identificado como Charles Whitman, ex-soldado e estudante de engenharia na UT, empoleirado no deck de observação no 28º andar do prédio principal da Universidade do Texas em Austin, no centro administrativo de 93 metros de altura conhecido simplesmente como a Torre. Uma das construções mais icônicas da cidade.

Para um atirador habilidoso possuído por uma sanha assassina sem sentido, aquele era o lugar perfeito para localizar e matar pessoas inocentes. Whitman aderiu, assustadoramente, ao ethos dos atiradores de um tiro só, um tiro, uma morte, o que significou que nenhuma de suas vítimas foi atingida por um segundo tiro depois de já estarem caídas no chão. Quando tudo acabou, 16 delas estavam mortas. Whitman feriu outras 32, sendo que uma morreu mais tarde.

Foi algo sem precedentes. O massacre da Universidade do Texas foi um dos principais motivos para a ascensão da SWAT moderna. Quase 50 anos depois da tragédia, o caso ainda se destaca como um dos maiores atentados a tiros da história dos Estados Unidos, e como um incidente único na maneira como colocou esse tipo de atirador no centro da consciência nacional.

Agora, mais uma vez, o foco norte-americano, quando o assunto é armas de longo alcance, está sobre Austin, embora sob circunstâncias menos terríveis. Hoje, à sombra figurativa da Torre, a TrackingPoint Solutions, uma startup de tecnologia aplicada, está trabalhando incansavelmente para transformar novatos em atiradores precisos.

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A empresa chegou às manchetes no começo de 2013, quando revelou sua arma de precisão guiada (PGF em inglês). Pense nisso como um rifle robô de longo alcance guiado a laser – tanto um computador baseado em Linux quanto uma arma de fogo tradicional. O sistema de circuito fechado da PGF não compreende somente a própria arma, um rifle Surgeon personalizado, mas também munição personalizada e, o mais impressionante, uma mira patenteada (com Wi-Fi habilitado). A tecnologia da PGF original da TrackingPoint é tão avançada que ouvimos dizer que mesmo um atirador inexperiente, talvez até uma pessoa que nunca disparou uma arma, pode acertar um alvo a mais de 900 metros de distância em minutos. Não vidas. Não anos. Minutos.

O fato de esse tipo de plataforma estar disponível ao público agora — a TrackingPoint visa caçadores e atiradores esportivos antes de qualquer coisa — fez Peter Asaro se lembrar da tragédia da Torre. Quando ele ouviu falar sobre a PGF e o objetivo da TrackingPoint de aumentar a chamada "probabilidade de sucesso no primeiro tiro", Asaro, um teórico e especialista em ética da tecnologia da New School, uma universidade de Nova York, disse ter lembrado imediatamente de Whitman.

"O tiro mais longo com o qual ele foi capaz de matar foi de 457 metros", disse Asaro, que também é um intelectual afiliado ao Centro pela Internet e Sociedade da Stanford Law School e um dos fundadores do Comitê Internacional para o Controle de Armas Robôs. "E a TrackingPoint está garantindo precisão a 1.090 metros."

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Você já deve ter percebido aonde isso vai dar. Se a precisão de qualquer arma do arsenal improvisado dele fosse maior, digamos uma PGF de longo alcance, Whitman poderia ter matado todos os alvos naquela tarde de segunda-feira em 1966? Ele poderia ter matado mais pessoas?

Impossível saber. Mas vamos voltar um pouco.

Para realmente chegar à raiz de como, no sentido puramente balístico, a TrackingPoint pode colocar a indústria de armas de fogo de cabeça para baixo, é preciso lembrar que a startup, que no último ano cresceu para uma equipe de quase 100 pessoas, não é uma empresa de armas no sentido tradicional. A "arma" em "arma de precisão guiada" é somente uma parte de um sistema muito complexo. O CEO Jason Shauble disse que a TrackingPoint não tem feito nada de novo em termos de desenvolvimento de armas propriamente ditas. O ingrediente secreto da TrackingPoint é o alcance.

A arte do tiro de longo alcance envolve, tradicionalmente, uma balística complexa. Um tiro de longa distância precisa ser mirado acima do alvo devido à queda da bala (gravidade) e depende de vários outros fatores ambientais que interferem na trajetória do projétil — vento, inclinação, oscilação, temperatura, efeito Coriólis. O sistema da TrackingPoint faz exatamente esses cálculos de balística, em tempo real, por você. É isso que a empresa quer dizer quando fala em "democratização da precisão".

Eles chamam isso de TTX, uma abreviação de "Tag, Track, Xact". Para simplificar, quando você marca um alvo, a mira a laser da PGF vai e volta 54 vezes por segundo, iluminando o alvo e medindo o tempo de atraso "refletido pelo alvo, fornecendo uma precisão de medição de alcance dentro de um metro", de acordo com o guia da PGF. Daí, o sistema de balística do computador da arma realinha a retícula, vista através da tela HUD (que mostra informações por cima da imagem) da PGF, levando em conta esses fatores do ambiente. Segure firme e aperte o gatilho, e só quando o cano estiver perfeitamente alinhado à retícula, o sistema eletrônico reseta o gatilho e a arma dispara.

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A tecnologia por trás de uma sequência de tiro dessas é impressionante, ainda segundo o guia, por essa ser a primeira vez que um pacote de arma de fogo tem "tecnologia de microeletrônicos, microprocessadores e rede numa arma de fogo pequena", tudo compreensivamente integrado. Em outras palavras, a PGF não é somente a tecnologia de lançamento de jatos de caça em sua mão. A arma grava um vídeo sempre que o sistema marca, rastreia e dispara. E como ela permite o uso de Wi-Fi, os usuários podem postar o vídeo diretamente nas redes sociais logo em seguida. O compartilhamento de mortes é parte de um esforço maior visando alcançar os nativos da era digital.

"Um coisa que temos muito aqui são garotos de 12 anos na internet", disse Oren Schauble, diretor de marketing da TrackingPoint e irmão mais novo de Jason.

A tecnologia da PGF e sua tela HUD também aparecem num aplicativo simples de jogo de tiro e, no futuro, num videogame ao estilo Modern Warfare. Jason Schauble chama isso de uma mudança de paradigma não somente na maneira como fabricamos "armas", mas no modo como se encara a experiência de atirar.

Mas ele não parece encarar isso assim, de forma tão despreocupada. Ele disse entender o peso daquilo que está fazendo, ao fabricar algo disponível para qualquer pessoa que dispõe de US$17.000 (algo em torno de R$40.000) sobrando. E ele tem bastante intimidade com o poder das armas. Schauble é um ex-soldado que levou um tiro a curta distância de uma AK-47 enquanto tentava arrastar o amigo morto para fora da casa de insurgentes. Schauble passou por várias cirurgias para recuperar um pouco da destreza antiga em sua mão direita. Ele usa um estilhaço da bala pendurado no pescoço. Alguns fragmentos ainda estão alojados em seu braço.

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Por mais que isso tire o peso dos ombros do atirador, a arma não é autônoma. E a TrackingPoint faz questão de frisar isso, enfatizando como os atiradores da PGF estão sempre repetindo, por assim dizer, o "marcar, mirar e puxar o gatilho". A empresa defende que a PGF traz uma dose muito necessária de introspecção à matança — saber exatamente quando sua arma vai disparar tira muito do stress e do nervosismo do ato. Isso quer dizer que, no calor da caçada, ou numa situação de reféns ou impasse, você pode focar puramente no tiro, disparando só quando tiver certeza que não há nenhuma rusga ética.

Ao ouvir a TrackingPoint, isso parece realmente melhorar algumas das habilidades humanas inatas e, assim, inaugurar toda uma nova ética de matança. E eles não estão sozinhos da defesa do alcance ultralongo, da tecnologia de armas inteligentes de precisão como a da PGF, como um obstáculo ao conflito. Também do guia da PGF, as armas inteligentes "têm o potencial de agir como um impedimento para a guerra", pela pura virtude de sua enorme precisão.

Dito isso, a TrackingPoint é "rápida ao enfatizar que o rifle não dispara 'sozinho'", como informou a Ars Technica. Em vez disso:

"A força da tração do gatilho é aumentada de forma dinâmica para ser muito alta até que o retículo da mira e o cano coincidam e, nesse ponto, a tração do gatilho volta ao padrão. Dessa maneira, o atirador ainda está no controle do disparo do rifle e, em qualquer momento, antes do tiro ele pode soltar o gatilho."

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A PGF pode "mirar" sozinha, mas é você, usuário, quem decide disparar ou não. A pergunta que fica é se as críticas feitas à PGF, como as tiradas de um trecho do Colbert Report, estão certas em chamar isso de "matança que não requer habilidade". Matar ficou fácil demais? É tudo culpa da PGF?

O trajeto de quadriciclo até o topo da Montanha Sandstone é praticamente violento. Lá em cima, nós nos encontramos passando calor com a equipe da TrackingPoint num teste ao vivo julho passado, um lugar onde todos aqueles fatores ambientais aos quais a PGF tem que se adaptar estavam no ponto máximo. Darren Jones, ex-soldado e empreiteiro militar que agora faz marketing para a TrackingPoint, lutava para medir o vento.

Lá embaixo, a 912 metros de distância, estava nosso alvo, pintado numa grande placa de madeira. Depois de uns doze tiros entre eu, Darren, Oren e Derek Mead, o outro repórter do Motherboard, descemos para ver o que tínhamos conseguido.

O vento atrapalhou. Dava para ver claramente nossos tiros entre 15 e 30 centímetros à esquerda do alvo. Tiros diretos? Ou, como o Darren os chamava, "tiros matadores"? Longe disso. Mas ainda assim, bem perto de 912 metros. Bastante impressionante, certo? Para um iniciante, talvez, mas Darren parecia bastante chateado com o vento.

Mais tarde, naquele mesmo dia, saímos para caçar porcos selvagens ao anoitecer. A partir do conforto de um esconderijo, Darren disparou de 274 metros de distância num pobre javali. O tiro pareceu bom, mas a criatura se endireitou quase instantaneamente e correu para o mato. Depois de muita busca, Darren desistiu. Ele nos disse que aquela era a primeira vez que ele tinha resultados assim como a PGF (ele nos forneceu a filmagem da câmera da arma, mas nem ele nem o engenheiro da TrackingPoint souberam dizer porque a gravação congelou logo antes do disparo). Se a PGF permite a matança sem habilidade, então, acho que temos que repensar seriamente o que significam os termos "habilidade" e "matança". A PGF está longe de ser perfeita, pelo menos por enquanto.

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Mas isso não significa que ela não seja realmente boa na tarefa para qual foi desenvolvida. Levou apenas um minuto para que eu compreendesse como usá-la. Esse foi o tempo que tive que esperar, em outro esconderijo abafado de caça, no outro lado do rancho, por um javali de 110 quilos que saia do mato, uma grande bolha preta na tela. Era uma coisa enorme, uma criatura que meu guia, um cara de pele curtida chamada Chris, se referiu como um "puta sapo". Marquei o alvo, alinhei o cano e a retícula, e, quando achei que a PGF ia disparar, ela disparou mesmo. Foi um tiro de 180 metros bem no pescoço. Eles me disseram depois que se eu tivesse atirado apenas alguns centímetros mais para a esquerda, eu teria estourado a cabeça do animal.

Afinal, mesmo atiradores experientes "têm dificuldade para acertar o primeiro tiro de longa distância", como afirma a TrackingPoint. Mas lá estava eu, um cara que nunca tinha disparado, ou mesmo segurado uma arma, até 48 horas antes. Um tiro, uma morte.

É essa facilidade que Jonathan Moreno, filósofo e especialista em ética do Center for American Progress, uma organização de pesquisa sobre políticas públicas, diz ter implicações muito sérias em negociações envolvendo reféns ou impasses. Para ele, algo como a PGF só fará as autoridades acharem que não precisam se envolver num processo arrastado de negociação com o bandido.

"Se a intuição diz que esse cara não vai se envolver numa conversa por muito tempo", disse Moreno, "isso deixaria o atirador mais confortável em usar a arma? Um atalho para negociações — é isso que me preocupa".

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Essa é uma parte de uma questão maior que envolve o uso de armas inteligentes por militares e organizações a serviço da lei, o tipo de ferramentas que equipam o Land Warrior, o programa recém-ressuscitado pelo Exército Americano. O Departamento de Defesa americano e diversas organizações da lei com certeza têm interesse pelo produto da TrackingPoint. O problema é que o processo de aquisição de armamentos pelo governo norte-americano, como em muitos outros países aliados pelo mundo, é incrivelmente lento. Pode levar meses, até anos, para que um produto seja liberado apenas para testes iniciais em pequena escala.

E a TrackingPoint não quer esperar. Ao ouvir Jason Schauble falar, fiquei com a impressão de que eles querem fazer isso melhor e mais rápido, para vender a arma ao público em pouco tempo. A equipe da empresa disse que seria possível vender 500 PGFs no final de 2013, o que dobraria as projeções iniciais. Enquanto escrevo, a startup já vendeu $250.000 somente em munição personalizada.

"SE A INTUIÇÃO DIZ QUE ESSE CARA NÃO VAI SE ENVOLVER NUMA CONVERSA POR MUITO TEMPO, ISSO DEIXARIA O ATIRADOR MAIS CONFORTÁVEL EM USAR A ARMA? UM ATALHO PARA AS NEGOCIAÇÕES — É ISSO QUE ME PREOCUPA."

Uma das questões, obviamente, é a regulamentação. Ano passado, numa única semana, aconteceram dois tiroteios em massa nos Estados Unidos, um em Navy Yard em Washington e outro numa briga entre gangues em Chicago. Os dois eventos desencadearam pouca discussão numa Washington engarrafada, onde os legisladores, como não estão acostumados a fazer em tempos como esses, tendem a não balançar demais o barco. Com frequência, isso significa afrouxar legislações sobre armamento, como a NPR explicou.

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Asaro analisa questões como essa sob o prisma da PGF. "Acho que devemos nos perguntar se mesmo policiais e, especialmente, cidadãos devem ter acesso a esse tipo de tecnologia", ele disse. "E, se sim, como isso será regulado e restrito?"

O que nos leva de volta a Charles Whitman. Se ele tivesse acesso a algo um pouco mais preciso, algo como a PGF, será que o atirador, que depois das mortes disse ter sido influenciado por vozes em sua cabeça, teria feito mais estrago?

É preciso notar que os três modelos de PGF disponíveis atualmente são rifles de caça. Quando se trata de situações abertas, eles são muito pesados, grandes e lentos para assassinatos em massa. Além disso, o próprio sistema não foi projetado para velocidade. Marcar, rastrear e realinhar ajudam na precisão, mas não para disparos rápidos.

Para um atirador habilidoso como Whitman, uma PGF poderia aumentar seu alcance, mas é impossível saber com certeza. E como a maioria da violência armada é cometida com pistolas e revólveres, preocupar-se com um rifle da TrackingPoint caindo em mãos erradas não é algo primordial num debate maior sobre armas. Mas há outro lado da questão: O que acontece quando a arma mais fácil de usar da história cai nas mãos certas?

"O que vamos desenvolver para colocar as forças da lei à frente da próxima geração de assassinos em massa?" perguntou Asaro. "Acho esse tipo de corrida armamentista um jogo muito perigoso."

E se realmente limitarmos o número de ferramentas disponíveis para bandidos, isso significa que o intento deles não estará mais lá? Que eles não vão achar outro jeito de fazer o trabalho?

"Gente má sempre vai fazer coisas más", disse Jason Schauble. "Então, acho que dizer que nossa tecnologia vai contribuir para mais coisas ruins acontecerem no mundo não é uma declaração justa."

Uma declaração mais justa? Nas palavras dele, que a TrackingPoint vai permitir que mais pessoas que gostam de caçar e atirar façam isso melhor. "Não vejo isso necessariamente como um aumento do número de ameaças, ou do uso disso para propósitos ruins mais do que o que já acontece com as armas que existem hoje", concluiu Schauble. "Não acho que isso seja algo necessariamente ruim."