Esculpindo o Futuro do Surfe com o Shaper do Gabriel Medina
Johnny Cabianca com uma de suas pranchas mais antigas e sofridas. Crédito: Felipe Larozza/VICE

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Tecnologia

Esculpindo o Futuro do Surfe com o Shaper do Gabriel Medina

Passamos uma tarde com o criador das pranchas de surfe do Gabriel Medina, o brasileiro que pode ser o primeiro a levar o título mundial da principal categoria do surfe.

"Da Freak Kid!", repetia o narrador a cada entrada do Gabriel Medina na água. Era 2009. O "moleque doidão", então com 15 anos, começava a despontar no surfe em uma de suas primeiras incursões além-Maresias — sua terra natal. Se até quem não entendia das manobras se impressionava, quem entendia fazia: ¯\_(ツ)_/¯. Na fase final daquela edição do King of the Groms, competição dedicada aos novatos, Medina levou duas notas 10. Pela primeira vez ele subia ao pódio com a prancha que o levaria pra longe no esporte. Ela era obra de Johnny Cabianca.

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"Quando eu encontro o Martin Porter, o narrador daquela competição, eu falo: te devo muito dinheiro! Ele dá risada!", brincou Johnny ao lembrar que a prancha leva a sigla da empolgada frase: dFK. Johnny é um shaper, o cara que corta uma prancha a partir de um bloco de poliuretano – um derivado do petróleo com propriedades similares ao isopor e à borracha. Com softwares, máquinas e uma mão acostumada às curvas das ondas, Johnny esculpe a principal ferramenta do surfista. "Elas são como um carro de corrida e como tacos de golfe", explica.

Assim como cada circuito pede um carro, cada praia pede uma prancha. E assim como cada terreno pede um taco, cada tipo de mar pede uma prancha. O que parece ser uma única tábua correndo sobre a água é, na verdade, um instrumento delicado com nuances que vão do tamanho da espessura lateral à profundidade da concavidade inferior, passando por forma das extremidades, ângulo das quilhas, material empregado, comprimento, volume e largura. Uma ciência praiana que Johnny domina.

"Na prancha do Gabriel tem 34 anos de experiência, tem o talento do Gabriel e essa afinidade entre nós", diz ele enquanto aponta, no seu computador, o arquivo com o desenho da prancha do atleta. Em pastas acessadas por softwares como o Shaper 3D e o SurfCad (sim, um AutoCad para surfistas), Johnny escolhe os desenhos que serão ajustados no computador para, enfim, chegarem a máquinas similares aos braços robóticos de montadora de carro. "A produção é dividida em duas partes: o shape, feito em poliuretano, e a laminação, o encapamento feito com fibra de vidro", explica ele.

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Uma prancha é, basicamente, uma lâmina de fibra de vidro envolvendo um bloco de poliuretano. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Após a máquina retirar o grosso do polímero borrachudo, Johnny entra com a mão sem dó com lixas e ferramentas de corte. "A luz lateral da oficina me dá contraste nas curvas do bloco. Eu vejo o volume de água passando, a área que ele vai ocupar na prancha, o movimento de perna e de cintura que o Gabriel faz. Eu não sou mágico, eu faço cálculos", conta o shaper. Não foi o que o próprio Medina disse quando pegou a primeira prancha do Johnny. "Essa é mágica!", lembra o shaper. Dali em diante seu nome cresceu como um swell em praia de coral.

Não à toa, vira e mexe alguém aparece em busca das pranchas do Johnny enquanto conversamos. "Bem-vindo ao seu lugar!", diz um dos surfistas que chega por lá. Ele quase engana com cabeça raspada e olho claro lembrando o Kelly Slater, porte e pinta de surfista que compete na categoria Master e nome gringo, mas não esconde as origens quando tira onda em bom e referenciado português. "Tem um monte de amigo meu que chama Johnny, mas eu sou João. Meu nome não é Johnny!"

O João mesmo nasceu em São Paulo, mas foi no litoral onde teve seu primeiro contato com o surfe. "Quando eu ia pro Guarujá eu encontrava os amigos da minha escola e era surfe na cabeça", lembra. Os anos 70 alavancaram a cultura do esporte no Brasil e, pouco a pouco, o Rio de Janeiro deixava de ser a Meca dos moleques sobre tábuas. "Os meus amigos da rua pegavam onda. Eles voltavam da praia com as pranchas quebradas, eu ficava olhando, fazia remendo. Eu tinha talento, assumi o posto. Aí um amigo meu montou uma oficina."

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A essa altura o Johnny já ganhara o apelido, mas ele ainda não tinha uma prancha. "A minha primeira prancha eu tive de fazer do zero! Poliuretano, shape, laminação, tudo", conta ele. O processo era artesanal. Depois de cortar e lixar na mão o bloco que seria a prancha, ainda era preciso encapar ela com um tecido de fibra de vidro envolto em resina. O princípio ainda se aplica à fabricação atual, mas a escala industrial e a tecnologia empregadas tiram qualquer aresta das pranchas. "Era na raça: acerto e erro, mais erro que acerto. Mas saía!"

Depois de passar em fábricas enormes, o Johnny resolveu voltar pra Maresias. Crédito: Felipe Larozza/VICE

No primeiro mês da fábrica em parceria com o amigo, Johnny vendeu nove pranchas. "Uma pro meu irmão, outra pra um primo, outra pra um primo do outro. Mas eram nove pranchas que se pagaram", lembra. Em paralelo, o shaper cursava desenho industrial. "As fábricas de prancha eram pontos de encontro de loucos. A galera ia pra fumar maconha, programar umas festinhas, azarar as menininhas. Até na minha era assim também! Mas eu ainda tinha uma coisa de estudar, tinha de ir pra faculdade às 19h."

O projeto da fábrica própria de Johnny durou de 81 a 91. Em 93, prestes a desistir da produção de pranchas, ele recebeu o convite de Luciano Leão, dono da brasileira Surface, para ser o shaper responsável pela filial da fabricante em Maresias. "Ele me disse: quero construir uma fábrica no litoral, quero fazer uma máquina computadorizada para cortar pranchas e preciso de uma pessoa para trabalhar comigo. Eu disse que iria pela fábrica, mas não acreditava na máquina."

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Foram precisos mais dois anos até que Johnny botasse as mãos na primeira adaptação brasileira de uma CNC (Controladora Numérica Computadorizada), uma máquina de corte com três eixos capaz de cortar várias pranchas que, posteriormente, são finalizadas pelo shaper. "Tinha problema de informática, computadores lentos, mas saía um produto bom", conta o shaper. Em pouco tempo ele virou mestre no equipamento que, avaliado em 55 mil dólares, foi exportado para vários países. E Johnny foi no vácuo de uma dessas viagens até a Europa.

Fazendo prancha e lidando com máquinas, Johnny trabalhou com nomes como Jeff Bushman e Rusty Preisendorfer (criador da marca Rusty, lembra?). Ele passou por Portugal, Havaí e Espanha, onde fixou pouso a convite da Pukas. Conhecida por trazer shapers de todo o mundo para suas fileiras, a fabricante colocou o brasileiro na linha de frente da produção diária. "No mundo inteiro você encontra um brasileiro em fábricas de pranchas. Na Pukas, 70% da mão de obra é brasileira. Nesse ramo, nós somos a melhor mão de obra do mundo quanto a talento", explica ele.

Como fazer uma prancha, por Johnny Cabianca. Crédito: Felipe Larozza/VICE

A segunda prancha do Medina

Do período em que viveu em Maresias, o Johnny levava lembranças, ensinamentos e amigos. Um deles era Charles Medina, padastro do Gabriel e dono de uma loja de pranchas velhas – as primeiras que o atleta usou. "Se o dia tivesse 26, 27 horas, o moleque ficava o dia inteiro na água", lembra ele. "Quando eu voltava para cá, o Gabriel estava melhorando, crescendo. Lembro que nos últimos verões eu perguntava do Charles e falavam: ele foi competir com o Gabriel em Santa Catarina, foi com o Gabriel competir em Recife."

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Não demorou muito para que o jovem saísse do Brasil, mesmo que sem prancha embaixo do braço. Em 2009, Gabriel rumou em direção à Europa para uma série de vitórias, e Johnny assinou os shapes do garoto — além de ceder hospedagem por lá. E veio o dia do "moleque doidão". "O King of the Groms mudou tudo pro Gabriel", lembra o shaper, falando do episódio cujo esboço vem de anos antes. "Quando ele tinha 9 anos a mãe dele pediu uma prancha pra mim, mas ela não tinha dinheiro pra pagar. Descasquei uma prancha velha e fiz uma pra ele."

Depois desse hiato incidental entre a infância com uma prancha velha e adolescência com uma prancha assinada, a parceria entre o Johnny, o Gabriel e o seu padastro segue firme na iminência do primeiro campeonato mundial do surfe para um atleta brasileiro. Enquanto o Gabriel se divide entre treinos, competições e assédio da imprensa e da publicidade – sempre sob os olhos do seu padastro –, o Johnny sofre com os limites do surfe arrojado do Freak Kid. "Em 2009 ele tinha 15 anos. Hoje ele tem 20 anos, pesa 80 kg e tem 1,86m. O modelo da prancha é o mesmo, mas é adaptado", explica.

Além da dFK, o Gabriel também não descarta os modelos MEGA e GAME, ambos assinados por Johnny. São pranchas compridas com concaves acentuados, o que contribui para aumentar a pressão da água sob os pés do surfista — característica que favorece seu estilo plástico e veloz. "Quando vejo o Gabriel surfando, eu sei onde estão os joelhos e o ombro dele, a posição da base, até onde ele se move em um aéreo. Eu sei que quando eu boto uma transição de curva em tal lugar, ele se sente mais confortável."

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A oficina virtual do shaper é igual a oficina real. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Como se não bastasse isso, Johnny também sofre como um técnico de futebol. "O primeiro culpado da falta de sucesso de um atleta é a prancha", diz ele. Pra piorar, a tecnologia transformou uma prática que se resumia a colar adesivos de marcas em pranchas nos anos 90. "Você pode baixar o programa e fazer uma prancha. Você faz o download dos arquivos de um cara e manda cortar na máquina. E não é seu desenho. Isso é pirataria. O grau de definição das máquinas hoje é muito bom e um pré-shape é uma prancha quase pronta", diz.

Para ele, impressoras 3D serão o próximo passo na produção de pranchas. Por enquanto, elas elas não estão preparadas para o poliuretano — um material poluente que, segundo o Johnny, não deve ser substituído tão cedo. As facilidades devem aumentar ainda mais a quantidade de lojas e fabricantes de pranchas no mundo concorrendo com seus modelos que ficam entre R$ 1.500 e R$ 1.600. "Em 95 aqui não existia fábrica, mas hoje são oito. Em Florianópolis tem mais de 180 fabricantes de prancha", diz o shaper.

Ele reconhece que a maior força dessa nova maré do surfe vem com o desempenho do Medina — cuja loja em Maresias teve um aumento recente na procura. Além do pioneirismo que viria no reboque de um campeonato mundial, ele tem provocado mudanças dentro do esporte. "O que o Gabriel está fazendo é inédito. É um surfe aéreo, voando muito. Tiveram que redefinir as pontuações para reavaliar isso porque são manobras de alta dificuldade em condições cada vez mais extremas de mar."

Johnny confia no moleque, mas só tem certeza de que a parceria deles ainda dura um bom tempo. "Um dia, um amigo cozinheiro me perguntou: cara, como você faz esses shapes? E eu disse que era do mesmo jeito que ele cozinhava. Se tiver mais pimenta, alguém não vai gostar. Lá na Espanha todo mundo faz tortilla, mas por que será que todo mundo gosta mais da tortilla da mãe? O Gabriel pode migrar e ver outras pranchas, mas ele volta pra minha. Estamos tendo resultados muito bons. Não tenho colocado muita pimenta!"