​Índios Instalam Câmeras de Segurança para Deter Madeireiros Ilegais na Amazônia
Crédito: Felipe Larozza/ VICE

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Tecnologia

​Índios Instalam Câmeras de Segurança para Deter Madeireiros Ilegais na Amazônia

Acompanhamos de perto como os Ka'apor estão usando tecnologias de vigilância para inibir a exploração de árvores no Maranhão.

Na semana passada, os índios da etnia Ka'apor começaram a instalar câmeras de segurança pela Reserva Alto Turiaçu, região amazônica do Maranhão, para flagrar a exploração ilegal de madeira no local. Durante alguns dias, acampamos junto aos indígenas para sacar melhor como é viver num cenário de violência, ameaças, mortes e, também, como a tecnologia pode ajudá-los a mudar sua situação de acuamento.

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Crédito: Felipe Larozza/VICE

A iniciativa tecnológica, tão contrastante com o ambiente rústico, partiu da organização não-governamental Greenpeace, que disponibilizou treinamento e financiou câmeras, rastreadores, computadores e HDs externos. Todo o equipamento custou R$ 25 mil aos fundos da ONG.

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As coordenadas eram dadas pelos índios, que convocaram os jornalistas presentes na expedição a acordar às 3h30 para uma primeira conversa em que todos se apresentavam. De São Luís, capital do Maranhão, até a aldeia, foram oito horas de estradas esburacadas e muitos bacuraus, pássaros que dormem em plena trilha de terra e levantam vôo abruptamente, como se fossem sapos chapados. Chegamos a campo minutos antes da meia-noite e levantamos no horário combinado. Com um semblante sério, Miraté*, o líder dos Ka'apor, informou o que já sabíamos: estávamos em uma área de conflito.

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Em setembro do ano passado, madeireiros foram flagrados em ação e acabaram tomando um couro dos indígenas, que há algum tempo agem por conta própria na proteção da floresta. Antes de serem expulsos, os exploradores foram despidos e amarrados. Já em abril deste ano, um cacique foi morto e, pouco tempo depois, dois jovens índios foram alvejados enquanto circulavam de moto pela reserva (mas não foram atingidos). Os Ka'apor responsabilizam os madeireiros pelos crimes e afirmam que as investigações ficaram inconclusivas, já que ninguém foi culpado. "Estamos sendo ameaçados e perseguidos. Por isso queremos pedir que a nossa imagem não apareça", disse o representante da etnia.

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Era a primeira vez que a comunidade via repórteres e fotógrafos de várias partes do mundo tão de perto. Nem mesmo a imprensa maranhense tem acesso aos Ka'apor. Eles se recusam a dar entrevistas aos "karaí", como se referem àqueles que não são índios.

Para driblar as longas distâncias e o perigo iminente, andamos o tempo todo em carros blindados. Sem energia elétrica, sinal de celular e cercados por bichos selvagens – de macacos fofos à cobras e onças –, dormimos em redes, tomamos banho de rio, vimos um céu estrelado acachapante e, claro, fizemos nossas necessidades mais humanas no meio do mato. Estávamos na Amazônia, afinal.

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Ainda em fase de teste, as primeiras câmeras foram instaladas no dia 30 de agosto. Dois dias depois, nossa missão junto aos Ka'apor era resgatar os aparelhos e checar os registros iniciais – já que a monitoração não é em tempo real. Conosco, vinham ativistas da ONG e os "guardas florestais", como são chamados os índios que cumprem missões pela mata em busca de rastros de desmatamento, madeireiros e caçadores. Todos estavam devidamente uniformizados. O verde, cor escolhida para as camisas com gola estampada, foi selecionado para ajudar na camuflagem em meio à selva. Nas missões, a maioria dos índios usa na cabeça o "uirará", um acessório de penas de arara, mutum e cipó que, em português, conhecemos por cocar. "Dá força", explica Miraté.

O primeiro local selecionado para a instalação das câmeras foi uma das estradas da reserva. Lá, o uso de tecnologias foi justificado por Iraun*, filho de Eusébio, o cacique morto este ano. Em seu próprio idioma, o jovem índio relembrou o significado da palavra Ka'apor – "povo da floresta". "Nós estamos defendendo o que é nosso. Meu pai faleceu e eu tô aqui lutando junto com o meu povo. Somos todos parentes", falou. Sempre silencioso e com um cigarro entre os dedos, explicou a importância da luta atual. "Pra nós, território é importante porque temos vínculo com a mata. Somos o povo Ka'apor. Não vamos esquecer. Nosso espírito é muito próximo da floresta, e não da cidade."

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Depois de algumas palavras, dois dos guardas florestais retiraram as câmeras escondidas entre as árvores. Dentro de uma delas, o cartão de memória de 8 GB trazia uma etiqueta com a palavra "jabuti", animal constantemente representado nas pinturas corporais feitas pelos Ka'apor. Manuseando os computadores com facilidade, os índios viram as primeiras capturas e flagraram um caçador.

Os dispositivos instalados possuem sensor infravermelho e funcionam de duas formas: captam combinações de cores ou de movimentos. Eles não gravam todo o tempo; registram apenas quando algo no enquadramento padrão se mexe: um caminhão, um animal, uma pessoa ou até mesmo uma folha caindo.

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Resistentes à alta temperatura, vento, chuva e poeira, as câmeras são importadas dos Estados Unidos e funcionam com pilhas AAA. De acordo com o fabricante, elas devem ser trocadas a cada cinco ou nove meses, dependendo do uso.

Os vídeos captam 10 segundos de movimento, o suficiente para flagrar placas de caminhões – principal objetivo da operação. No total, 13 índios foram treinados para manusear os equipamentos.

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Os Ka'apor explicam que suas terras não podem ser exploradas para fins comerciais. A expulsão acontece mesmo quando existem armas de fogo em jogo. "Nós desarmamos eles. Falamos que aqui é terra indígena e não pode derrubar; que nós somos donos da floresta. Pegamos as coisas deles e mandamos embora pra não voltar mais aqui", detalha Miraté. É também comum que os índios queimem caminhões, tratores e madeiras encontradas pelo caminho. Os ipês amarelos e roxos, as árvores de maior valor comercial encontradas na reserva, costumam ser vendidas para outros países e são as mais cobiçadas pelos madeireiros.

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Caso o problema do desmatamento persista com a vigilância das câmeras, os índios apelarão para os rastreadores, que, secretamente, serão instalados nos caminhões para descobrir o destino final das árvores cortadas. O funcionamento dos dispositivos será via satélite e fornecerá coordenadas geográficas e os horários por onde o veículo passará.

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A falta de energia não será um empecilho, já que os Ka'apor possuem uma sede em uma cidade próxima. A casa funciona como uma espécie de QG e irá abrigar os computadores e os demais equipamentos. Lá, um escritório simples com computador e ambientes sem móveis dividem o espaço com uma amoreira e um pé de acerola.

O uso de aparelhos telefônicos não é recorrente entre os Ka'apor. O único que usava era Miraté, que andava sempre com seu smartphone a tiracolo. Em dado momento da nossa visita, ele estava deitado na rede assistindo a alguns vídeos – ainda que o sinal de celular e internet não funcionassem onde estávamos.

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Desmatamento e ameaças

De acordo com as imagens analisadas por satélite pelo Greenpeace, 8% dos 530 mil hectares que pertencem aos indígenas já foi desmatado. A FUNAI (Fundação Nacional do Índio) considera a reserva o último mosaico de área verde do estado do Maranhão e, embora justifique que intensificou sua participação nas operações de fiscalização pela região, não é um órgão bem visto pelos índios. Pelo contrário. "A Funai não está junto com a gente. Não aceitamos mais. A ideia deles, pra nós, é velha", relata Miraté. Por e-mail, a fundação informou o Motherboard que tem "executado ações de proteção territorial, especialmente fiscalização, em parceria com outros órgãos, como Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente), Batalhão de Polícia Ambiental do Maranhão (BPA/MA) e Departamento de Polícia Federal em todo o complexo". Para os índios, não parece ser suficiente.

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Ao ser questionado do porquê da queima de veículos e da prática de violência contra os madeireiros, o líder dos Ka'apor foi taxativo: "Dá raiva. A gente, como dono da floresta, não vai roubar lá na fazenda, nem lá no comércio. Quando vamos, compramos. E eles vem roubar. Então, eles merecem".

Para o indígena, a violência parte de quem adentra ilegalmente a área. "Temos que fazer nossa parte. Mostrar que eles têm que ter prejuízo também, assim como nós. Perdemos a madeira, destruíram a floresta. Então, eles têm que sentir assim como nós sentimos na pele."

O modo de agir do Ibama é similar ao dos indígenas: adentrar o local, prender os madeireiros e destruir os maquinários. Por telefone, Luciano Evaristo, diretor de proteção ambiental da instituição, explica que uma grande operação está para acontecer: "Estamos perto de prender bastante gente".

Ele informa que o uso de satélite feito pelo Ibama nem sempre é suficiente para combater as irregularidades. "Utilizamos um sistema de baixa resolução, que nos mostra onde possivelmente há desmatamento. Ocorre que o dispositivo não consegue enxergar o corte seletivo – o que nos dificulta identificar onde está havendo exploração pra ser combatida", afirma.

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No dia de ir embora, os Ka'apor dão as mãos, formam uma roda com as crianças no meio, cantam e dançam. Depois, tiram fotos e abraçam os jornalistas. Estão esperançosos com a possibilidade de ter paz em suas terras. A alegria não dura muito. Na estrada, prestes a retornar a São Paulo, ficamos sabendo que, provavelmente, a nossa presença incomodou. Um Ka'apor foi interpelado por um sujeito num posto de gasolina: "É melhor vocês pararem com isso que estão fazendo", disse o homem ao índio em tom misto de mistério e ameaça, antes de sumir de vista.

*Os nomes dos indígenas foram trocados para preservar suas identidades.

Os jornalistas do Motherboard viajaram a convite do Greenpeace.