Terraform
​Arte por Koren Shadmi

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Tecnologia

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OLÁ. É UMA HONRA FALAR COM VOCÊS.



A Área da Primeira Emenda ficava a umas boas 800 jardas do tribunal, uma jaula imponente de arame farpado e algemas de plástico. As pessoas da Primeira Emenda eram estranhas. Quer dizer, eu me incluo nesse grupo. Afinal, eu termaformei meu próprio molde de máscara do Guy Fawkes. Essa não é a conduta de uma mulher sã. Mas a Shandra era ainda mais estranha. Ela organizava toda a manifestação, se comunicava com a mídia e convencia algumas centenas de manés a se juntarem a ela na cerca de arame, gritando de forma impotente em direção ao tribunal, cercados por policiais que pareciam terrivelmente empolgados com seus equipamentos vindos direto do Afeganistão.

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"Shandra, como eu faço esse negócio funcionar?"

"Assim", ela disse, ligando seu — estranho — aparelho. Ele veio ao mundo como um projetor portátil, do tipo que se usa em apresentações chatérrimas em auditórios de escolas. Mas então ela o juntou a uma célula de hidrogênio, que ela carregava em sua mochila, e a um tripé de câmera improvisado amarrado à sua barriga, que faziam ela parecer a mulher-bomba mais bem-equipada do mundo. Percebi que ela já estava assustando os policiais do outro lado do arame farpado, que entraram em modo de alerta quando um feixe de luz emergiu do projetor. Eu mal conseguia imaginar quantos tasers, fuzis e bombas de gás lacrimogêneo estavam mirados nela naquele momento. Mas ela não pareceu notar, ou se importar.

Ao invés disso, ela usou as duas mãos para ajustar a distorção e o foco da imensa imagem que ela estava pintando na frente do tribunal, um pouco enfraquecida na luz suave de novembro. "Foi muito gentil da parte deles colocar o Kitty para ser julgado em um dia tão escuro", ela murmurou. Notei que suas unhas — com figuras de pequenos átomos com diferentes números de elétrons — estavam lascadas. Ela havia roído a unha de um dedão até a dolorida carne debaixo dela.

"Vai", ela disse, dando uma sacudida em seu tablet. Era um aparelho descartável, sem um cartão SIM. Shandra era dessas pessoas que escondem seus celulares em uma bolsa anti-rastreamento até a hora de fazer uma ligação. A tela enorme piscou até que a imagem de um homem de meia-idade em frente à uma webcam surgisse. Uma legenda dizia DMITRY SKLYAROV, A PRIMEIRA PESSOA ENCARCERADA SOB O DMCA. Ele realmente parecia russo —não russo do tipo que usa uniformes esportivos, mas sim um russo louco e gênio do xadrez. Ele sorriu. Uma adolescente bonita que era *bem* russa apareceu atrás do seu ombro e fez um V de colegial japonesa com os dedos, piscando para a câmera enquanto ele a expulsava. Ele falou. Não havia áudio, mas tínhamos legendas.

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OLÁ. É UMA HONRA FALAR COM VOCÊS.

"Checagem de som!", gritou Shandra. Nós não tínhamos uma permissão para usar amplificadores. Elas eram como pêlos de unicórnio ou credenciais de imprensa dados pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque: raros, e potencialmente imaginários. O tal Microfone Humano era algo ultrapassado, criado há dez anos atrás e tão arcaico que ninguém nem zoava mais, mas tinha uma vantagem: todo mundo sabia o que ele significava.

"Checando o som!", gritamos de volta.

"Olá! É uma honra falar com vocês!"

Depois que repetimos isso em um vozerio retumbante que ecoou pelos arranha-céus e até abafou o som das buzinas, ela tocou em seu tablet e DMITRY SKLYAROV voltou a se mexer e continuar sua fala. Nós continuamos a repetir suas palavras durante todo o discurso, que foi misericordiamente curto.

QUANDO O FBI ME PRENDEU EM 2001 POR ENSINAR AS PESSOAS A DESTRAVAREM SEUS EBOOKS

AS PESSOAS ACHARAM QUE O PROBLEMA ERA OS DIREITOS AUTORAIS

MAS O PROBLEMA ERA O DIREITO DE EXPRESSÃO

O DIREITO DE ENSINAR AS PESSOAS COMO SEUS COMPUTADORES FUNCIONAM

COMO KITTY NOS MOSTROU HOJE

Isso era a cara da Shandra: uma performance bizarra que poderia ser vista até de um avião. Ou um drone. Alguns repórteres curiosos saíram do tribunal para falar com a gente, porque coisas bizarras chamam a atenção. E, cara, é claro que ela tinha algo para mostrar para eles.

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"É mais fácil mostrar do que tentar explicar para vocês", ela disse. Eu havia conhecido Shandra em uma feira de carreira no último ano de faculdade, cinco anos antes. Nós duas conseguimos vagas como pesquisadoras júnior no Loucolab, que, apesar do péssimo nome, era uma parceira do Departmento de Defesa com clientes importantes que nos pagavam para testar seus produtos e delimitar o risco de invasões de hackers, crackers, espiões e invasores de privacidade. Shandra era a mais inteligente de nós duas, aquela que conseguia apontar — com uma mistura perfeita de frieza intelectual e instinto animal — o elemento suspeito à espreita dentro do código. Eu era boa, mas Shandra era excepcional, e o fato dela não aceitar propostas indecentes de outras empresas a tornou amada, mesmo que incompreendida, pelos nossos chefes, que deram a ela sua própria equipe. Comigo no time.

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Shandra era uma das melhores especialista em demos do mundo. Descobrir uma falha grave no seu produto é como descobrir que você tem câncer, e os clientes da Louco passavam pelos cinco estágios do luto, começando com a negação, antes de admitirem que eles teriam que gastar uma grana preta para consertar os problemas. A especialidade de Shandra era expor as falhas de um demo de uma forma tão assustadora a ponto de destruir qualquer chance de negação. Os repórteres que chegaram perto da cerca mal esperavam o que viria.

"Quem se interessar, entre nesse site". Ela estendeu um pedaço de papel com um link. Ela poderia ter usado um código QR, mas todo mundo acha que eles são transmissores de vírus. Qualquer coisa escrita em um pedaço de papel com uma caneta era amador demais para apresentar qualquer risco.

Alguns dos jornalistas se afastaram, mas vários começaram a digitar o endereço do site. Ela já havia colocado um cartão SIM em seu tablet. Alguns segundos depois, ela virou o tablet na direção deles.

No primeiro momento, os repórteres não conseguiram entender o que eles estavam vendo. Era uma montagem, mostrando dezenas de transmissões tremidas de rostos cheios de surpresa. Os seus rostos. Ela havia acabado de hackear as câmeras de todos seus celulares, e estava recebendo uma transmissão ao vivo de cada um deles.

"O bug que Kitty revelou estava dentro do código do Netflix, encontrado em quase todos os sistemas digitais da Terra. Ele opera dentro de um padrão específico do W3C, o que significa que ele pode ser instalado automaticamente em qualquer equipamento digital, de um termostato ao seu carro.

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"Mas como ele é parte de um sistema DRM que supostamente protege os direitos autorais — para preservar a ilusão de que o Netflix é de alguma forma capaz de te enviar uma 'transmissão' que não é um 'download'— é um crime anunciar que todos seus equipamentos estão grampeados, esperando para serem invadidos pela NSA ou por algum hacker amador. É por isso que Kitty está na cadeia: por dar uma palestra sobre esse assunto em uma conferência de tecnologia.

"Pensem por um instante sobre todas as coisas que podem ser controladas com esse celular. Alguém aí tem um desfibrilador interno? Um aparelho auditivo com tecnologia bluetooth? Pensem no caos que eu posso instaurar agora que eu tenho total controle sobre seus celulares. Sorte de vocês que eu sou boazinha". Ela clicou na tela do tablet. "Eu acabei de destruir meu vírus, junto dos plugins do Netflix, que serão instalados automaticamente na próxima vez que vocês entrarem nele. Tecnicamente, eu acabei de cometer uns 20 crimes. Mas o Netflix? Eles continuarão soltos, mesmo se você perder todo o dinheiro da sua conta bancária ou o código do alarme da sua casa porque você foi hackeado por esse plugin.

"E tudo isso para quê? Um passatempo? Cara, a gente tá Huxleyindo até o completo Orwell."

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O discurso virou notícia e foi transmitido para todo o mundo. Até mesmo alguns programas do Netflix compartilharam a notícia. John Oliver usou a polêmica como tema principal do seu monólogo e *arrasou*.

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Quando a polícia a prendeu, ela já estava transmitindo todas as imagens: tudo, desde a invasão forçada de sua casa, à quantidade absurda de homens armados e ao aperto cruel das algemas em seus pulsos. Mais tarde, seu advogado publicou dados de seu programa anti-vírus que mostravam que eles haviam tentado invadir sua rede com um produto comercial que iria permitir que eles controlassem tudo, das câmeras de seus computadores às trancas da sua casa. A brecha do sistema que eles haviam usado para invadir não foi divulgada. Eu mesma fiz e publiquei a análise.

Eles ainda não vieram me pegar. Ainda. Talvez porque eu nunca fui tão inteligente como a Shandra, por ter a fama de um raciocínio lento, aquela garota que a Shandra insistia em ter no time sem que ninguém soubesse o motivo. Talvez eles pensem que eu não sou uma ameaça.

Mas a Shandra será julgada amanhã - apenas um pedido de fiança - e eu vou estar na Zona de Liberdade de Expressão. A previsão é de um dia nublado, e meu projetor já está carregado e em mãos.

Esse texto é parte do ​Terraform​, nossa nova seção de ficção futurística.

Tradução: Ananda Pieratti