​Horror na Cabeça: Como os Games Estão Mexendo com o Nosso Obscuro Subconsciente
Imagem: Matt Gilgenbach/Neverending Nightmares

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Tecnologia

​Horror na Cabeça: Como os Games Estão Mexendo com o Nosso Obscuro Subconsciente

Uma nova onda de games e simuladores de realidade virtual estão repensando como comunicar-se com a experiência básica e primordial de ser um ser humano.

Minha primeira experiência com o Oculus Rift beira o início de uma bad trip com drogas psicodélicas, um prelúdio de um ataque de pânico. Não sei se essa ansiedade é só nervosismo de primeira viagem, ou se foi causada pelo SoundSelf, um game de realidade virtual que usa biofeedback para transportar seu usuário em estados alterados de mente e corpo.

Mas estou ansioso de qualquer forma. É como se me aproximasse de algum limite psíquico, como se estivesse à beira da goela sem fim e agitada do meu subconsciente. E a ideia era meio que essa mesmo.

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Dentro de uma tenda escura, estou isolado das luzes e sons da ostentação sem limites no piso da PAX Prime. Me foi dado um headset de realidade virtual Rift, um par de fones, e um microfone de contato foi afixado ao meu pescoço. Estou pronto para jogar. Me deito, juntando-me a um punhado de pessoas já imersas no mundo de SoundSelf (que ainda está em fase de desenvolvimento), ou tomando o chazinho que está sendo oferecido, enquanto se preparam para mergulhar nessa.

Aí a ansiedade começa a surgir. Os próximos minutos produzem um conflito interno tão grande que cogito arrancar o Rift da minha cara. Estaria eu começando a surtar?

Uma mulher sentada ao centro da tenda, com uma bandeja de bules de chá à sua frente, é basicamente a cuidadora durante a viagem que é SoundSelf. Ela me instrui a vocalizar enquanto expiro, para me permitir "cair" dentro da experiência. Presumidamente, a ideia aqui é aceitar o que está acontecendo, e assim superar o terror psíquico de uma bad trip não com fuga, mas ao encará-lo de frente. Ao se permitir ouvi-lo, imergindo em seu terrível abraço, SoundSelf é diferente de qualquer experiência com games que já tive.

Dentro da tenda do SoundSelf. Crédito: Jagger Gravning

Assim como Project Syria, uma nova ferramenta de realidade virtual que dá vida aos traumas diários do conflito na Síria, SoundSelf integra a série ascendentes de games e simuladores de RV que repensam como comunicar alguns dos mais intensos e ocasionalmente desconfortantes segmentos psíquicos por meio do meio digital interativo favorito de todos.

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Em termos de gastos totais, provavelmente não é justo afirmar que games em geral focaram mais seus recursos criativos em aprimorar elegantemente a experiência de atirar na cara de outros gamers. Mas mais do que nunca, os desenvolvedores confrontam temas que seguem como tabus por quase todo o panorama dos games atual, alguns encostando na superfície, ou jogando as cartas na mesa, com imersão total, tópicos de expansão mental extrema e trauma físico, desde a sensação de deixar sua mente simplesmente viajar, até ceder a pensamentos intrusivos de automutilação.

Pegue por exemplo Robin Arnott, criador do SoundSelf, um homem entusiasmado e afeito à gesticulações com um baita cabelo rosa, que me fala sobre a ideia inicial para o jogo surgida após a criação de Deep Sea, um jogo-instalação feito somente com áudio em que os jogadores são mantidos cegos por máscaras de gás especiais nos rostos. Deep Sea provou-se altamente eficaz, até mesmo fazendo com que uma pessoa no South By Southwest desmaiasse, declarou Arnott.

Ele admite, porém, não ter entendido precisamente como o jogo deu tão certo. "Eu acabei esbarrando em uma forma de dar curto na inteligência das pessoas e atingir o cérebro reptiliano", disse-me.

Imagens de SoundSelf,  cortesia de Robin Arnott

Então Arnott passou o resto do tempo tentando refazer seus passos, de forma a desconstruir o mecanismo de horror que havia criado para entender porque Deep Sea era tão eficaz.

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"Ao mesmo tempo, comecei a desenvolver uma prática de meditação, criando uma relação disciplinada com o universo, com o cosmos, com o self", explanou Arnott. No final, ele criou um produto de tecnologia que afirma ser apenas uma ferramenta para ajuda-lo a entender o que seria impossível de outra forma, para compreender "as profundezas impossíveis".

"Como pegar a percepção e transformá-la em uma realidade que pareça tão verdadeira e corpórea?", disse. " SoundSelf, para mim, é um veículo de pesquisa para entender neste espaço, para entender o que o cérebro faz ao criar uma realidade".

Eu acabei esbarrando em uma forma de dar curto na inteligência das pessoas e atingir o cérebro reptiliano

De volta à tenda, o SoundSelf começa a ganhar fôlego. O show de luzes dentro do Rift que estou usando é similar, imagino, a olhar através de um caleidoscópio derretendo.

Em um primeiro momentos, formas se expandem e contraem com minha respiração e voz. Mas depois de um tempo, ao passo em que as luzes e padrões passam a formar objetos novos e cada vez mais assimétricos, fica incerto exatamente como minha voz e respiração interagiam tanto com o que eu via e a música hipnótica e barulho que invadiam minha cabeça.

A tecnologia não é livre de falhas. Havia distrações por todos os lados: um pontinho de poeira no Rift, meus cílios batendo na telas, as barras de resolução. Todos relativamente fáceis de se ignorar, a ponto d'eu perder noção do tempo só me recuperando quando a cuidadora da viagem pegou em meu pulso.

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Enquanto eu tirava meu headset, ela havia se preocupado no caso de haver começado outro ciclo da demo por acidente, seguido o que deveria ter sido uma tela branca de conclusão. Eu não acho que isso tenha rolado, mas de qualquer forma a demo travou, voltando a área de trabalho de um computador enquanto conversávamos. Era hora de parar.

Sento no chão e tomo um golinho do chá. A cuidadora se apresenta como Heather Ray, afirmando que havia desenhado o espaço da tenda meditativa para Arnotth tanto para a demo do SoundSelf na PAX e no festival Burning Man deste ano. Ray é franca, e me conta sobre um incidente de uma bad trip legítima durante a demonstração; um jogador abandonou a experiência, arrancando o Rift enquanto lágrimas desciam de seu rosto, enquanto dizia "eu não deveria usar drogas!"

"Disse a ela que tudo que havia lhe oferecido era chá", declarou Ray. Mas a moça saiu correndo da tenda de qualquer forma.

Ao sair dali, tive a sensação de ter acabado de acordado, mesmo não tendo dormido, com certeza. Meu caminhar é peculiarmente autoconsciente, como se alguém tivesse me pedido para mostrar meu marchar habitual diante de um público. Mas é só uma breve caminhada até o estande de Neverending Nightmares, outro game que queria dar uma olhada, então cheguei junto.

Trata-se de um título nada sutil que dissimula os problemas mentais da vida real por baixo de sua criação. Neverending Nightmares existe na mesma esfera que uma experiência assistida por realidade virtual como SoundSelf ou Project Syria pelo simples fato de que chamá-la de qualquer variação da palavra "intensa" é incorrer em eufemismo. Ainda assim, trata-se de um game mais "clássico" (sem o auxílio de realidade virtual), mas muito mais sombrio.

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Matt Gilgenbach, que criou Neverending Nightmare, fala sobre como passou anos de sua vida (e gastando todas suas economias) na criação de um jogo chamado, um shooter espacial com base em ritmos que recebeu o aval da crítica, mas vendeu malmente quando lançado, nunca recuperando o dinheiro investido.

O fracasso titânico deste sonho agravou a depressão e o transtorno obsessivo-compulsivo preexistentes de Gilgenbach. Este colapso é a pedra fundamental de Neverending Nightmares, que Gilgenbach descreveu a mim como "um game de terror psicológico inspirado em minha luta contra o transtorno obsessivo-compulsivo e depressão". O jogo deve ser lançado no outono de 2014.

IMAGENS AS QUAIS NÃO QUERO PENSAR SOBRE FICAM SURGINDO NA MINHA MENTE

Gilgenbach explicou que como após o fracasso de Retro/Grade, "todos aqueles sentimentos que achei que tinha me livrado voltaram com tudo". A ideia por trás deste game é recriar o "espaço opressor e desolador" que um indivíduo enfrenta ao lidar com uma doença mental.

"Tem sido ótimo pra mim abrir minha mente e deixar algumas dessas coisas saírem", declarou. "Muitas das imagens perturbadoras que você vê no trailer, estas cenas horríveis de mutilação, são pensamentos incômodos que tem me assombrado por conta do TOC. Imagens as quais não quero pensar sobre… Ficam surgindo na minha mente".

Trailer de Neverending trailer. Crédito:  Matt Gilgenbach.

De acordo com Gilgenbach, tem sido "ótimo" tirar tudo aquilo de si e mostrar na telinha, mesmo que, para o bem ou mal, "as imagens percam parte de sua força assim que se tornam tangíveis".

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Enquanto espero na fila para jogar a demo, o responsável pelos backgrounds do jogo, Adam Grabowski, me fala que ao passo em que a arte ali é influenciada pelos desconcertantes desenhos do saudoso Edward Gorey, Grabowski e seu irmão, que animou Neverending Nightmares, tomaram como referência a anatomia humana de fato, bem como ferimentos de verdade para criar as perturbadoras imagens de mutilação corporal ali presentes.

É só assistir ao trailer do game, que está sendo repetido infinitamente enquanto espero minha vez. Admito que a maior parte da violência sem peso, sem ligação, feita em bonecos dos jogos nunca me incomodou, mas preciso evitar olhar para aquela tela, que repete cenas de alguém cortando o próprio braço.

"Não levamos em conta o fato de que haveriam crianças caminhando aqui na PAX", diz Adam, meio envergonhado.

Ao sentar para experimentar o game em uma tenda escura, Gilgenbach me explica os controles: "este botão é para correr, mas não funciona direito porque seu personagem é asmático".

EU DESISTO. TODO MEU SANGUE SANGUE ABANDONA MEU CORPO EM LONGOS FLUXOS COR DE VINHO.

A animação e o som são muito, bem, legais – se "legal" pode ser usado para referenciar um jogo que usa a semiótica do gênero de terror para simbolizar depressão e automutilação compulsiva.

O que vemos em Neverending Nightmare, então, é um experimento em game design paralelo à vanguarda literária do começo do Séc. XX: pense em Em Busca do Tempo Perdido de Marcel Proust, nas obras de Gertrude Stein, em Ulisses de James Joyce. Em sua viagem ao inconsciente, SoundSelf, ao seu modo, compartilha algum DNA com Finnegans Wake. Em conjunto, este extenso cardume de games surge como um primeiro desenvolvimento crítico no desenvolvimento de novas formas de comunicar as experiência psíquica primitiva de ser humano.

Mas por mais que os conceitos pareçam um distanciamento, e a exploração de algo novo dentro dos jogos, também me lembro como os games são diferentes de outros meios artísticos: você precisa jogá-los, principalmente.

No fim das contas, frustro-me com Neverending Nightmare. Estou perdido em uma casa mal-assombrada, dentro do game. Finalmente desisto. Um gigante com cabeça de bebê me pega repetidas vezes, me dando um abraço de urso até que todo meu sangue abandona meu corpo em longos fluxos cor de vinho.

Tradução: Thiago "Índio" Silva