Helsinque, a Capital do Melhor Sistema de Refrigeração do Mundo
Crédito: Helsinque Energia.

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Tecnologia

Helsinque, a Capital do Melhor Sistema de Refrigeração do Mundo

Como a capital da Finlândia usa um lago subterrâneo para refrescar seus habitantes.

"Está quente aqui ou só eu estou sentindo?", você se pergunta enquanto liga o ar-condicionado com a sensação ambígua de gratidão (pelo efeito refrescante) e medo (por causa da conta de luz).

Antes considerado item de luxo, o ar-condicionado se tornou artigo banal: está em carros, escritórios, casas, shopping centers, teatros, aviões. Não é exagero dizer que, em dias quentes, transitamos de um ambiente climatizado ao outro. A proliferação dos ares-condicionados aumentou de tal forma que começou a modificar lentamente os seres humanos, diminuindo o limite de calor que nossa espécie tolera.

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De acordo com estudo publicado mês passado pela Proceedings of the National Academy of Sciences (Procedimentos da Academia Nacional de Ciências, em tradução livre), pesquisadores descobriram que o uso do ar-condicionado acarretará em um aumento do consumo de energia doméstica em até 83% no próximo século. Parece muito? E é.

O levantamento levou em conta que o verão passado foi o mais quente já registrado e que, ao que tudo indica, o índice será ultrapassado em 2015. O crescimento das temperaturas e aumento no padrão de vida do mundo farão mais pessoas buscarem maneiras de vencer o calor, o que não é um bom sinal para o meio ambiente.

A suspeita do problema ambiental não é tão nova. Em estudo publicado em 2009 no Journal Energy Policy, estudiosos afirmaram que o aumento de 72% na demanda de energia para ar-condicionado no próximo século é resultado das alterações climáticas e do crescimento econômico de nações em desenvolvimento.

Outro dado do levantamento foi a previsão de que os Estados Unidos ultrapassarão a China como os maiores consumidores de eletricidade para ar-condicionado até o fim da década. É uma previsão macabra ao considerarmos que os americanos já consomem mais eletricidade comar-condicionado do que a soma total de consumo de eletricidade do continente africano, lar de um bilhão de pessoas.

Ao prever nossa crise contemporânea em 2002, Lim Swee Say, ministro do meio ambiente de Singapura, lembrou a uma série de magnatas dos negócios que "o ar-condicionado tem um papel crucial em nossa economia". Segundo Say, "sem o ar-condicionado, muitos de nossos operários estariam sentados debaixo de coqueiros para escapar do calor e da umidade, em vez de trabalhar em fábricas de alta tecnologia".

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Willis Carrier teve a ideia do ar-condicionado moderno enquanto esperava em uma estação de trem de Pittsburgh em uma noite enevoada de 1902. Parado em meio à bruma, Carrier percebeu que poderia secar o ar ao fazê-lo passar pela água para criar neblina. A epifania resultou na patente de Carrier para um "aparato para tratar o ar" em 1906, reconhecido como o primeiro ar-condicionado moderno.

Apesar da genialidade da invenção de Carrier, o ar-condicionado é muito destrutivo para o meio ambiente porque depende de hidrofluorocarboneto, ou dos "gases superestufa", para seu funcionamento. Em cidades como a capital de Singapura, essas ferramentas nocivas para o meio ambiente não se sustentam.

Por sorte, para os habitantes do país asiático e de demais locais com climas quentes, os cientistas parecem ter encontrado uma solução confiável para nos refrescar e não arruinar o meio ambiente. O lugar da descoberta é bem improvável: 90 metros abaixo de Helsinque, a capital da Finlândia.

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No centro de Helsinque há o Esplanadi Par, uma atração popular entre turistas e os cerca de 600 mil moradores da cidade. Embaixo desse parque está o que nos interessa: uma gigantesca caverna usada para suprir os moradores de Helsinque com ar-condicionado barato, limpo e mais eficiente.

A ideia por trás da instalação de Helsinque debaixo do Esplanadi Park é simples: todas as noites, cerca de sete milhões de galões de água do Mar Báltico são bombeados para o reservatório no subsolo para resfriar; durante o dia, essa água volta para a superfície e é distribuída por todo o centro para auxiliar na refrigeração dos edifícios. A água flui da caverna subterrânea pela noite novamente para resfriar. O ciclo recomeça no dia seguinte. O processo é conhecido como refrigeração por distrito.

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A ciência por trás da refrigeração por distrito existe há séculos; suas raízes vêm de sistemas aplicados em vilarejos franceses no século XIV.

A refrigeração por distrito centraliza a produção e distribuição de "energia de refrigeração", na qual túneis repartem a água refrigerada para edifícios industriais e residenciais em um distrito. Essas edificações estão equipadas com unidades especiais que as permitem usar a água gelada para resfriar o ar em sistemas de ar-condicionado. Se levarmos em consideração que o ar-condicionado consome o estimado a cinco por cento do suprimento de eletricidade global, a habilidade da refrigeração por distrito marca uma etapa crucial em nossa jornada por uma vida sustentável.

O lago subterrâneo debaixo do parque Esplanadi entrou em operação em abril. Tornou-se a segunda instalação de refrigeração por distrito na capital finlandesa O primeiro lago subterrâneo em Pasila foi conectado em 2012, mas a caverna do Esplanadi conseguiu diminuir seu predecessor; seu volume é cerca de três vezes maior que a instalação do Pasila.

A ciência por trás da refrigeração por distrito existe há séculos. Suas raízes estão no vilarejo francês chamado Chaudes-Aigues Cantal, que, no século XIV, usava tubos de madeira para distribuir água quente aos habitantes. O uso de água fria nesse processo, no entanto, só ficou conhecido em 1889 quando a Companhia de Refrigeração Automática, na cidade de Denver, nos Estados Unidos, começou a operar o primeiro sistema de refrigeração por distrito do mundo.

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Apesar dos muitos benefícios desse tipo de tecnologia em relação às unidades de ar-condicionado movidas por eletricidade nos edifícios, a tecnologia leva tempo para se popularizar. O maior impedimento é o dinheiro. (Claro.)

A refrigeração por distrito implica em grande infraestrutura: instalação de tubos, abertura de cavernas subterrâneas e construção das usinas de energia. Costuma ser difícil para os governos justificarem esses projetos quando não há segurança de lucro.

"Em Helsinque, as redes de resfriamento e aquecimento são sistemas de economia de mercado", afirmou Koski Kosti, gerente da refrigeração por distrito da Helsinque Energia. "A pergunta não deveria ser 'a Finlândia vai implantar esse sistema em grande escala?', mas sim 'há outras empresas construindo essas redes na Finlândia?'. A resposta é sim."

A Helsinque Energia vê a cidade se tornando neutra em carbono em 2050.

Como Koski observou, apesar da relutância de muitos municípios em implantar a infraestrutura da refrigeração por distrito, diversas instituições menores se comprometeram com o sistema. E tiveram resultados surpreendentes. Um caso específico é a Universidade Cornell, nos Estados Unidos, que revitalizou o sistema preexistente de refrigeração para que pudesse bombear água gelada de cerca de 90 metros abaixo da superfície do lago Cayuga por meio do sistema de tubulação. A universidade havia utilizado bombas de aquecimento alguns anos antes para resfriar a água, mas os resultados não foram tão animadores. Ao implantar o resfriamento usando o lago como fonte, o campus teve redução de 86% no uso de energia em relação ao sistema anterior.

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Assim como a Cornell, o governo municipal de Helsinque também vê benefícios incríveis ao usar a refrigeração por distrito. De acordo com a HelsinqueEnergia, estima-se que os empresários que adotam esse método de resfriamento cortaram suas emissões de dióxido de carbono em 80%, eliminando cerca de 100 mil quilos de emissão a cada ano por negócio.

Além disso, cerca de 80% da produção de refrigeração por distrito está baseada em energia que seria desperdiçada, um feito bastante eficiente.

"Não estamos gerando energia, na verdade, estamos reciclando energia", afirmou Kosti.

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É um projeto ambicioso, ok, mas a Helsinque Energia vê a cidade se tornando neutra em carbono em 2050 por meio do uso dos processos de energia térmica limpa, como a refrigeração por distrito.

O sistema de refrigeração por distrito de Helsinque não é o primeiro nem o maior no mundo: várias outras cidades adotaram ou planejam adotar sua metodologia, incluindo Toronto, Amsterdã, Sydney e Paris. O que faz do sistema de Helsinque único é sua integração de refrigeração por distrito, aquecimento por distrito e a produção de energia no sistema em um processo chamado de trigeneração.

Assim como seu equivalente no resfriamento, o aquecimento por distrito é eficiente e uma fonte limpa de energia térmica. O princípio é simples: o sistema aproveita o desperdício de calor gerado na produção de eletricidade para aquecer os edifícios. Quando o aquecimento por distrito é combinado com a produção de eletricidade em um processo conhecido como cogeração, a energia que seria perdida na produção de eletricidade é aproveitada e utilizada.

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Ao longo da troca de e-mails com Kosti, que levou vários meses, ficou claro que ele vê o aquecimento por distrito como o futuro da produção de energia. E não sem motivos.

"A refrigeração e o aquecimento por distrito dizem respeito a otimizar os fluxos de energia ao redor da cidade e a minimizar as emissões e energia primárias de um jeito economicamente sustentável", afirmou Kosti. "Há outras demandas para sistemas de energia futuros?"

Em 1953, a câmara municipal de Helsinque votou a favor da criação de instalações de refrigeração e aquecimento por distrito para uso da cidade. A primeira planta em Salmisaari abriu suas portas no mesmo ano, produzindo 180 megawatts (MW) de calor com 92% de eficiência quando usava carvão como combustível.

Nas últimas seis décadas, um número de outras plantas do tipo abriram suas portas na Finlândia, substituindo aos poucos o uso de carvão como combustível para alternativas relativamente limpas, como gás natural. Não resultou em nenhuma perda de eficiência. As plantas novas, como a de Vuosaari B, agora geram até 470 MW de eletricidade (e quase a mesma quantidade de calor) com cerca de 90% de eficiência. A escolha, parece, valeu a pena: a quantidade de energia economizada anualmente com o uso do sistema por distrito em Helsinque é suficiente para aquecer 500.000 residências, uma redução significante se considerarmos que a capital tem cerca de 600.000 habitantes.

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Embora o aproveitamento do calor perdido na produção de eletricidade não seja eficiente, a gigante de energia finlandesa transformou o processo de cogeração em trigeração por meio do uso de refrigeradores de absorção. A função dos refrigeradores de absorção é produzir água gelada com o calor, o que é conseguido por meio da remoção do calor do vapor d'água a uma temperatura baixa, e então ejetar seu calor via condensação do vapor a pressão alta. O resultado é que o vapor quente de água é transformado em água líquida e resfriada, que é então enviada para Helsinque para uso na refrigeração no comércio local e nas residências.

Há previsões de que a implantação da refrigeração por distrito irá disparar em um futuro próximo.

O maior obstáculo para que o sistema de trigeração se torne totalmente limpo é que a fonte de energia usada ainda está baseada em combustíveis fósseis como carvão e gás natural. O quanto isso vai durar permanece aberto. Conforme mencionado anteriormente, Helsinque percorreu um longo trajeto desde sua primeira queima de carvão na planta de RAD em 1953. Ao longo dos anos, as novas instalações de Helsinque começaram a implantar gradualmente combustível limpo para produzir energia – o carvão deu lugar ao gás natural e, recentemente, o gás natural começou a dar lugar à energia solar reciclada e "combustível de pellet".

O nome técnico para essa energia de pellet é "combustão da biomassa", um jeito sofisticado de dizer que uma usina velha de queima de carvão foi convertida para queimar biomassa. É o caso da planta Salmisaari de Helsinque, que começou a experimentar a queima de pellets de madeira para combustível este ano. A combustão da biomassa se mostrou uma fonte de combustível favorável na medida em que reduz impactos ambientais e falha na deterioração da qualidade do ar nas cidades. Se essa fonte de combustível se provar eficiente e for implantada em uma escala municipal, Helsinque poderá atingir sua meta de neutralidade de carbono ao ter criado uma fonte neutra de carbono de produção de eletricidade e energia térmica.

O processo de trigeração utilizado em Helsinque é uma versão localizada de um futuro global. Apesar da previsão do crescimento rápido da demanda por ar-condicionado, há previsões de que a implantação da refrigeração por distrito irá disparar em um futuro próximo, sobretudo ao redor do Oriente Médio, que deve representar 40% do mercado de refrigeração por distrito até 2019. Sinais dessa mudança já são visíveis no Catar e nos Emirados Árabes Unidos.

Kosti permanece confiante de que a tendência continuará a crescer, graças às possibilidades incontáveis inexploradas e latentes no processo de trigeração. "Deve-se também lembrar que o RAD não é um sistema estático", afirmou. "Está em desenvolvimento constante e, no futuro, as redes serão ainda mais eficientes."

A explosão de interesse recente nessa indústria parece sustentar as observações de Kosti e, dado que o mundo está aquecendo, podemos esperar que as cidades como Helsinque continuem descobrindo maneiras para ficarmos frios.

Tradução: Amanda Guizzo Zampieri