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Tecnologia

A Função Coletiva de Anotar o Rap Brasileiro

Conheça a comunidade que quer bombar o Genius, a maior plataforma de análises de letras de música, no Brasil.
Crédito: Filipi Filippo/ VICE

A Tribe Called Quest, Run DMC, Beastie Boys, Salt 'N Pepa, The Fugees, Geto Boys, De La Soul, IAM, RZO, Racionais MCs. O hip hop está cheio de trios importantes. Mahbod Moghadam, Tom Lehman e Ilan Zechory não ficam nas picápes nem nos microfones, mas também integram a lista por causa do Rap Genius. Ex-alunos da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, os três criaram, em 2009, no alto dos seus 20 e poucos anos, uma página colaborativa em que qualquer um pudesse opinar sobre trechos de música do estilo preferido dos três — o rap, claro.

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A despretensiosa ideia vingou: em poucos meses no ar, o site virou uma Wikipédia de letras do hip hop. Fãs, músicos amadores e os próprios artistas passaram a visitar a página para comentar os trechos das músicas com textos, imagens e vídeos. As informações, discutidas e revisadas por milhares de pessoas, eram refinadas, divertidas, esclarecedoras. Assim, meio sem querer, a plataforma de análises de letras de música se tornou uma das maiores referências do conhecimento compartilhado online.

Com o tempo, a migração do Rap Genius para outros gêneros e temas foi natural. A comunidade passou a debater letras de rock, poesias, reportagens e artigos médicos. Para os criadores, era um claro sinal de que não havia limites para sua plataforma de troca e debate de informações. O nome então foi rebatizado para Genius e ganhou a missão de se tornar o maior site colaborativo do mundo. Para chegar a outras línguas, o plano era usar da mesma tática inicial: bombar as comunidades locais com rap. Muito rap.

No Brasil, a expansão já está em andamento pelas mãos do trio Jhonatan Rodrigues, Kleber Albuquerque e Raul Marques. Fissurados pelo som de artistas como Racionais e Sabotage, eles são moderadores do braço nacional da plataforma, o Genius Brasil. Oficializada desde outubro de 2014, a versão brasileira tem letras do Planet Hemp, do Criolo e do Emicida, mas também tem canções do Caetano Veloso e do MC Daleste, uma breve declaração do jornalista Ricardo Boechat e um pedido de auditoria do último processo eleitoral brasileiro. "Quanto mais pessoas usam, mais informação você tem, mais conhecimento você disponibiliza e mais acesso vem", resumiu Raul. A missão do trio brasileiro, afirma, é trazer uma galera nova para discutir textos em português de modo colaborativo.

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"O site é um terreno muito bom pra colocar outras informações", diz Raul. "A nossa missão é colocar o máximo de interpretação possível." O Genius por enquanto não tem muitas discussões e análises colaborativas em português. A maioria dos textos possui apenas um colaborador, o que poderia deixa a discussão muito enviesada. Cabe ao trio incentivar as pessoas a opinarem sobre os conteúdos. "Quanto mais a gente se engaja em um texto, mais o campo se abre para que notas sejam avaliadas com mais precisão ou virem tema de discussão", afirma Raul. "Por enquanto é mais díficil, a gente não tem os milhões de acesso que tem nos Estados Unidos."

Os três moderadores do Genius Brasil trabalham no site por prazer. Não recebem qualquer grana pelo trabalho. Eles também afirmam nunca terem se conhecido cara a cara. Todo o contato é feito via e-mail, WhatsApp e o próprio Genius. Raul vive na capital carioca; Kleber mora em Florianópolis, em Santa Catarina, a pouco mais de 130 quilômetros de Jhonatan, que reside em Cocal do Sul, no litoral do mesmo estado. Na faixa dos vinte poucos anos, eles são da ala mais velha do Genius Brasil. "Como é rap, a gente vê muito moleque", diz Raul. "Tem moleque de 15 anos tentando contribuir, isso é muito interessante." De acordo com o carioca, a idade também denuncia os hábitos do público brasileiro do site. "Em geral a galera entra mais à noite e os meses que têm mais acesso são no meio do ano por causa das férias."

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Jhonatan gastou um tempo merecido anotando o disco Illmatic, do rapper NAS, em português

As funções de um moderador do Genius são similares às dos administradores de outros fóruns da internet. A diferença é que não basta ficar atento com o que aparece na plataforma ou com a presença de spammers e bots. Eles precisam botar a mão na massa. "A página brasileira do Genius tem menos de um ano. Acho que a gente fez 50% do conteúdo brasileiro que está lá", diz Raul. Juntos, eles acumulam cerca de 5,7 mil contribuições no site. Manter o conteúdo atualizado é prioridade. "Logo que lançaram os novos discos do Criolo e dos Racionais, a gente madrugou escrevendo as letras. No dia seguinte tinha dois mil acessos", contou Kleber. "A galera 'anotou' muito. A gente passou dias revisando para chegar ao produto final."

No jargão do Genius, "anotação" é a pequena janela lateral que explica um trecho grifado. Outra palavra que os moderadores usam muito é "revisar", que significa observar não só a forma da nota, mas também a quantidade de fontes, imagens, vídeos ou qualquer outra referência que possa oferecer. A rotina deles no site então se baseia em anotar, revisar, anotar, anotar, revisar. Apesar da conotação burocrática dos termos, eles garantem que se divertem.

Rappers nacionais dão a letra

Kleber diz que o Genius Brasil já passou pelo estágio de construir um repertório clássico. O site possui todas as faixas essenciais do hip hop nacional: de "Negro Drama", do Racionais MCs, a "Um Bom Lugar", de Sabotage, passando por "Exército do Rap", de Helião e Negra Li, e "O Quinto Vigia", de Ndee Naldinho. Isso permite ao trio tocar outro objetivo: trazer os artistas para o site e atrair seus fãs.

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"A gente prioriza a palavra do artista. Muitas vezes tem um comentário do rapper dentro das anotações que os fãs fazem sobre sua própria música."

"O contato com artistas foi um divisor de águas pra gente", me disse Jhonatan. Embora seja fã incondicional do norte-americano Nas — entusiasta da plataforma com 79 contribuições nos Estados Unidos —, ele coloca o brasileiro Rashid no topo da categoria rappers no Genius. "Ele fez um trampo muito fera no site. A base de fãs dele é muito grande: engloba o Projota, Emicida. Quando ele veio pro site, ajudou muito. Ele abriu caminho pra outros artistas", explicou. Além do próprio Rashid, Xis, Kamau e De Leve são alguns dos nomes que estão no site com um selo atestando que suas contas não são falsas.

O Don L é usuário assíduo do Genius. Crédito: Divulgação/Facebook

O rapper de Fortaleza Don L também manda sua caneta no Genius. Ele começou a visitar o site para decifrar gírias em inglês e, quando viu seu trabalho lá dentro, passou a contribuir também. "Minhas letras começaram a aparecer por lá, mas não fui eu que coloquei", diz. Agora ele aproveita o esquema pra saber o que seus fãs pensam do que escreve. "Às vezes, interpretam algo de uma maneira errada, mas não é ruim. Posso revisar ou deixar do jeito que está." Para Kleber, se um autor explica, não se discute: é a palavra final. "A gente prioriza a palavra do artista", diz ele. "Muitas vezes tem um comentário do rapper nas anotações que os fãs fazem sobre sua própria música."

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Dalmo, o D'Artagnan do Genius Brasil

O quarto elemento do grupo também é brasileiro, mas sua base está em um prédio do Brooklyn, em Nova York. Dalmo Mendonça não participa do Genius como voluntário. Ele é funcionário da empresa. Nascido em Belo Horizonte, ele se mudou ainda moleque para os Estados Unidos. Mais velho, resolveu estudar bioquímica na faculdade mas arranjou um trabalho em TI e, como muitos adolescentes do mundo todo, escutava rap no tempo livre. Eram os requisitos ideais para se tornar fã do Rap Genius. "Eu tinha esse hobby de escutar as músicas e tentar decifrar as letras. Achei o Genius por pura coincidência", conta ele.

Após o fortuito encontro com a plataforma, Dalmo se engajou na comunidade online, criou anotações e adicionou letras de música. Em meados de 2014, ele participou de um processo seletivo e foi aprovado para trabalhar na sede do Genius. O momento não podia ser melhor: a empresa deixara de ser um projeto de colegas de faculdade para se tornar um peixe grande. O mecenas do Vale do Silício — e fã de rap — Ben Horowitz investiu US$ 15 milhões na companhia em outubro de 2012.

À época, o trio fundador da empresa botava banca de artista de hip hop. Mahbod, Tom e Ilan fugiam à regra dos engomados CEOs ou engenheiros normcore da tecnologia. Eram divertidos, falastrões.

No fim daquele ano, porém, a postura desafiadora de um deles causou más impressões. Mahbod fez anotações polêmicas no discurso de Elliot Rodger, jovem que havia matado seis pessoas a tiros no estado da Califórnia em maio daquele ano. O cofundador disparou ofensas grosseiras e impensadas na rede e foi banido da plataforma e da empresa — mais valorizada ainda com um investimento de US$ 40 milhões dali a pouco tempo.

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Mahbod Moghadam (esq.), Tom Lehman e Ilan ZechoryOs fundadores do Rap Genius; Moghadam foi expulso do site em 2014 por mau comportamento

Dalmo diz que essa turbulência ficou para trás, assim como a aura Beastie Boys no clipe de Fight for Your Right que a chefia tinha. "Eles (Tom e Ilan) são pessoas super normais", diz. O objetivo do Genius, no entanto, continua audacioso. "Somos uma empresa animada com a expansão da nossa missão", diz. "Queríamos anotar todas as letras de hip hop e agora queremos anotar toda a internet."

A expansão da plataforma depende da mão-de-obra benfeitora de gente como Jhonatan, Kleber e Raul e pelo trabalho de Dalmo. Segundo eles, o esforço tem surtido efeito porque o Brasil é uma comunidade em expansão: muita gente curte explorar o estilo musical que fez o Genius explodir bombar lá fora.

Segundo o mineiro, o fluxo de acessos brasileiros no Genius costuma atingir artistas como Eminem, Kendrick Lamar e Florence and the Machine. A cantora pop atesta a vasta gama cobertura do Genius: tem espaço para moda, literatura e textos usados em sala de aula. Tudo o que for passível de grifo.

Crescido na terra natal do hip hop, Dalmo é fã de Kendrick, Nick Minaj e Lauryn Hill. Mais recentemente, por causa do Genius, passou a curtir mais a produção de rap nacional. "Na faculdade e quando já morava nos Estados Unidos que fui redescobrir o rap nacional", me disse ele. Se a comunidade brasileira do Genius mantiver esse flow acelerado, artistas como Racionais, Criolo e RZO também serão redescobertos por gente de todas as classes e tipos. Quem sabe o mesmo aconteça com autores da literatura e de outros compositores do cancioneiro nacional. O que será escrito dali em diante, afinal, ficará a critério da comunidade.