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Tecnologia

Ficção Científica Feminista é Bom Demais

A ficção científica é definida por sua capacidade de construir realidades alternativas críveis: entre elas, por que não mundos livres de machismo, ou utopias além das questões de gênero?

Olá, garotas. Vocês curtem uma ficção científica?

Recomendo The Female Man (Homem Fêmea, em português), um romance de ficção científica de 1970, da falecida autora Joanna Russ. A história se passa em quatro mundos, habitados por quatro mulheres diferentes que compartilham o mesmo genótipo e cujos nomes todos começam com a letra J. São elas: Jeannine Dadier, que vive em 1969, numa versão dos Estados Unidos que nunca superou a Grande Depressão; Joana, também de 1969, mas de uma versão dos EUA parecida com a nossa; Janet Evason, uma amazona feroz que vive em um mundo só de mulheres chamado Whileaway (Porvirdistante); e Alice Reasoner, ou “Jael”, mestre de guerra de um futuro em que mulheres e homens batalham entre si, com ogivas nucleares, há décadas.

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A primeira vez que li The Female Man, senti que o carpete do quarto do hotel foi arrancado sob meus pés, revelando um parquete intergalático e cintilante que, de alguma forma, sempre esteve ali. Afinal, eu me considerava uma expert da mais alta ordem em ficção científica, mas eu havia entrado nesse mundo, assim como vários jovens leitores, através das óperas espaciais e contos de aventura de Isaac Asimov, Arthur C. Clarke e Ray Bradbury. Ainda amo esses escritores, claro, mas eu não fazia ideia de que a ficção científica – meu gênero favorito – poderia de fato ser escrita para mim e sobre mim.

Até onde eu sabia, eram histórias de garotos. The Female Man não é uma história de garotos.

Na verdade, The Female Man é um romance entre muitos. Diversas histórias maravilhosas e provocativas, marcadas por uma não-linearidade enlouquecedora, emergiram com a segunda onda do feminismo, nos anos 60 e 70. Pode parecer loucura, mas poucos meios são tão eficientes assim no quesito articulação do feminismo. A ficção científica é, no fim das contas, definida por sua capacidade de construir realidades alternativas críveis: entre elas, por que não mundos livres de machismo, ou utopias além das questões de gênero? Essas fabulações podem ser tão exóticas quanto colônias lunares e cidades povoadas por andróides. E claro, ainda há o fato de as mulheres serem alienígneas – não há ninguém melhor para escrever histórias sobre aliens.

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Dois clássicos do cânon de ficção científica feminista.

A ficção científica nos diz mais sobre o presente do que o futuro; qualquer Trekkie confirmará minha declaração. Por todas as suas incursões em temas que ninguém havia desenvolvido antes, os confilitos fundamentais do Jornada nas Estrelas original pertenciam aos anos 60: relações interraciais, imperialismo e Guerra Fria. O mesmo serve para a ficção científica feminista. Romances de Joanna Russ, Marge Piercy, Ursula K. Le Guin e Octavia Butler formam a literatura do movimento, relatando os medos e desejos das mulheres da segunda metade do século 20.

Ficção científica já não é um clubinho de garotos há muito tempo. Pensem nas imagens mais marcantes da primeira aparição do gênero na cultura popular, isto é, em histórias atrativas de revistas pulp e livros de bolso: armas a laser, foguetes, colonizadores espaciais viris e mulheres sequestradas, contorcendo-se entre os tentáculos de um inimigo extraterrestre. A audácia do Buck Rogers e a determinação de aço do John Carter eram vendidas a jovens garotos que liam a revista Popular Mechanics e quadrinhos pulp – não eram direcionadas às irmãs ou às mães. Para as escritoras de ficção científica do começo dos anos 70, a tentação de quebrar e subverter esse parque de diversões, e cutucar foguetes fálicos e o imperialismo intergalático, foi irresistível.

Por acaso, a quebra de paradigmas teve precendentes. Frankenstein, que para muitos críticos é o primeiro romance de ficção científica de verdade, foi escrito por uma mulher de 21 anos chamada Mary Shelley. Mulheres que produziam literatura utópica no século 19, e no começo do século 20, às vezes traziam à tona questões relevantes para a primeira onda de feminismo; no romance Herland (Terra Dela), de 1905, uma utopia habitada por apenas um sexo é descrita como a ordem social ideal, livre de guerras.

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Portanto, cabe dizer que a ficção cientícia não é objetivamente masculina. Não há nada que classifique o gênero objetivamente; ficção científica é uma tábula rasa. As histórias geralmente se passam no futuro, um mundo em que nenhum gênero, nação, doutrina ou tecnologia pode reivindicar de fato.

Claro, ficções científicas sempre contaram com mulheres, mas elas frequentemente apareciam nas histórias como a “donzela em perigo”. Imagem via Pulp Covers.

Agora, de volta a The Female Man. Embora um pedaço do livro seja ambientado no futuro, a realidade de nenhuma mulher ali representa o “nosso” passado ou o “nosso” futuro. Na verdade, são manifestações de uma mesma mulher, espalhadas ao longo do tempo. São potencialidades, as multitudes contidas em toda mulher. Russ escreve: “para resolver contrariedades, una todas elas em sua própria pessoa”. É uma boa metáfora para o que a literatura faz também, que é nos dar acesso às estranhezas múltiplas do mundo e às suas possibilidades, como a ideia de um mundo sem amarras determinadas por gênero.

A ficção científica, em particular, nos oferece mundos tão diferente do nosso que, como leitores, podemos nos sentir nauseados ou desorientados de repente; críticos chamam essa sensação de “estranhamento cognitivo”. Ainda assim, é um gênero literário que sempre mergulha de cabeça nos problemas do presente, para confrontá-los de uma maneira cognitiva específica.

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É sua função. A estranheza esclarece nossas normas – e também as tornam estranhas. Ao oferecer vislumbres de mundos alternativos, onde as dinâmicas culturais que consideramos normais são revertidas, a ficção científica nos ajuda a enxergar nosso verdadeiro lugar, sem inclinações. “A ficção científica feminista é uma chave”, a crítica literária Marleen S. Barr escreveu, “para destravar as intenções ocultas do patriarcado”.

Alice B. Sheldon, autora de ficção científica que escreveu com o pseudônimo masculino James Tiptree Jr. por décadas. Uma premiação literária agora é realizada em seu nome, para livros que exploram questões de gênero por meio de ficção científica e fantasia. Foto via NPR.

Uma maneira particularmente efetiva de destravar essas intenções ocultas – ou simplesmente criar um mundo fora das amarras da sociedade dominada por homens – é imaginar mundos de apenas um sexo. Desde as Amazonas da Antiguidade Clássica, há uma longa tradição de lugares habitados somente por mulheres na literatura e mitologia, e muitos livros do cânon de ficção científica feminista dos anos 70 – um cânon magro, mas robusto – desenrolam-se em mundos assim.

The Female Man, claro; Woman on the Edge of Time (Mulheres à Beira do Tempo), de Marge Piercy; Leviathan’s Deep (As Profundezas do Leviatã), de Jayge Carr, em que homens são concubinos e mensageiros desamparados; The Wanderground, de Sally Gearhart, em que mulheres fogem de cidades dominadas por homens rumo à natureza; e a obra de Suzy McKee Charnas. Outros romances do período, como o livro transformador de Ursula K. Le Guin, The Left Hand of Darkness (A Mão Esquerda da Escuridão), sobre um planeta de andróginos assexuados, têm uma abordagem mais fluida sobre gêneros.

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Em todos os casos, a questão é a mesma: o que acontece quando os homens são removidos da equação? Talvez haja paz mundial. Talvez relacionamentos lésbicos virem a norma. Talvez densos rituais matrilineares substituam os hábitos sociais existentes. Talvez a reprodução das espécies ocorra de uma maneira diferente, assexuada – ou por meio de um novo tipo de sexo. Talvez seja uma distopia.

Não temos como saber, mas a mera especulação nos força a reconsiderar tudo aquilo consideramos normal no mundo. Por exemplo, imagine viver numa colônia só de mulheres, desde sempre, criando apenas filhas, acostumada com uma economia e um governo geridos por mulheres, e de repente ver um homem pela primeira vez. Ele aparentaria ser um alienígena, como nesta descrição de Joanna Russ, presente na história icônica When It Changed (Quando Tudo Mudou):

São maiores que nós. São maiores e mais largos… São claramente da nossa espécie, mas não se encaixam, mal posso descrever, e como meus olhos não conseguiam e ainda não conseguem compreender os contornos daqueles corpos alienígenas, não ousei tocá-los… Só posso dizer que eram símios com semblantes humanos.

Isso sim é estranhamento cognitivo! Não é de surpreender que a ficção científica tenha sido descoberta, onda após onda, por comunidades em busca de uma ferramenta criativa para críticas culturais. As fronteiras estão onde o último autor as cravou. Antes das feministas, havia o movimento New Wave, que portava as técnicas literárias e as epifanias psicodélicas da ficção científica do começo dos anos 60, na esperança de focar uma luz sobre a rigidez do sistema.

Depois veio o dilúvio: afrofuturistas, cyberpunks e outros incontáveis autores de subgêneros, com alegorias alienígenas para fazer valer seus pontos de vista. Independente de suas intenções, no entanto, escritores de ficção científica sempre usam o mesmo mecanismo: alterar o mundo de maneira significativa, desequilibrá-lo. Nossas concepções de mundo tombam. E, onde elas aterrisam, o chão perde a solidez.
 
Tradução: Stephanie Fernandes