Eu Sou o Capital
Crédito: Todd Kopriva/Flickr

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Tecnologia

Eu Sou o Capital

Por que devemos colocar nossos corpos, ideias e emoções digitais à venda.

Esta é uma versão adaptada de um dos ensaios do livro Das Kapital bin Ich, escrito por Hannes Grassegger e publicado pela editora Kein & Aber Publishers, Berlin/Zürich, 2014. Cortesia do autor. Tradução para o inglês por Anne Posten.

Privacidade. Transparência. Vigilância. Segurança digital. Estou cansado desses termos. Eles só servem para mascarar a realidade: perdemos todo o poder sobre nós mesmos.

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Querem provas? Se os dados pessoais são o petróleo do século 21 — uma commodity pela qual empresas desembolsam bilhões — então por que nós, a fonte de tais dados, não somos coroados os reis desse novo mundo?

Esse petróleo digital (ou conteúdo, ou big data) é nada mais, nada menos, do que a informação pessoal — minha informação pessoal. Minha personalidade digital. Hoje "entrar na internet" não é mais uma escolha ou uma possibilidade, e sim uma condição intrínseca à existência. Algo essencial. Parte de mim. Passo no mínimo metade da minha vida online: tanto profissional quanto pessoalmente. Como dito por Artie Vierkant, nós vivemos em uma realidade "pós-internet". A internet não é mais um reino distante; ela é uma parte fundamental de nossas vidas. Minha identidade ainda é uma, mas parte dela é digital. Somos feitos de átomos e matéria. A internet é a externalização do meu mundo interior, e esse mundo interior está intimamente ligado ao resto de mim.

Os dias de anonimato estão contados. Minha persona digital conhece meus pensamentos (emails), minhas emoções (emoticons), meus relacionamentos (Facebook), meus contatos profissionais (LinkedIn), minha frequência cardíaca rastreada pelo meu Apple Watch e meus genes avaliados pelo 23andMe. Cada vez mais, tudo em nós pode ser quantificado.

A internet é comandada por empresas privadas. E ainda assim, quase tudo nela é gratuito.

Esse truque é antigo. Eles nos atraem para novas terras, férteis e abundantes, equipadas com tudo o que há de melhor; e em troca, eles ficam com toda a colheita: nossos pensamentos e sentimentos codificados em letras e números. E agora eles estão explorando essa nova mercadoria com algoritmos de big data e análises de sentimentos. "Colocando a alma para trabalhar", como diz Franco Berardi.

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Todos nós "compartilhamos". Mas os mais espertos também acumulam — e para completar, eles estão nos sugando para dentro de suas nuvens. A Apple me obriga a passar todos meus contatos e dados da minha agenda para o iCloud toda vez que sincronizo meu iPhone. Novas regras: a partir de agora, a Apple quer saber com quem eu estou, quando eu os vejo e porquê nos encontramos. Os Termos e Condições são a leis desse novo mundo, estabelecidas por uma nova classe dominante, aos pés de quem devemos nos ajoelhar para jurar lealdade caso queiramos manter nossos bens. Dê-me todos seus dados. Aceite ou vá embora. O total de usários do Gmail é maior do que a população dos Estados Unidos; em termos de usuários mensais, o Facebook é maior do que a China.

Meus dados se transformam em um rio de dinheiro que desemboca no Vale do Silício. É na indústria de tecnologia que o dinheiro circula com mais velocidade. Os US$ 22 bilhões gastos pelo Facebook na compra do Whatsapp e os US$ 3,2 bilhões que o Google gastou com o Nest são apenas gotas dentro de um oceano sem fim. No presente momento, a Apple possui US$ 178 bilhões em dinheiro líquido; a Microsoft, US$ 95 bilhões; o Google, US$65 bilhões; e o Facebook e a Amazon juntos possuem US$29 bilhões. Imaginem o valor do Tinder, um gráfico perfeito dos padrões da atração humana. O Vale conta com meio trilhão de dólares, e é seguro dizer que a maior parte desse dinheiro veio de nossos dados pessoais. Contemplem o oceano dourado dos dados ou suas espantosas cordilheiras. Estamos frente a picos nunca dantes vistos.

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Corremos o perigo de que as novas empresas de mineração de dados nos explorem com a mesma perversidade com que os mineradores do passado arruinaram o solo do planeta

Para os espiões do governo, todos esses dados pareciam uma brilhante oportunidade, uma fonte que produz todo tipo de informação essencial para a "segurança nacional". Depois que os Cinco Olhos — a NSA e companhia — se apropriaram desses dados, as empresas fizeram um motim: a curiosa aliança entre arqui-rivais como a Microsoft e a Apple, aliadas ao Google, o Twitter, o LinkedIn e o Facebook (!), endereçou um editorial no New York Times, publicado em dezembro de 2013, aos "governos de todo o mundo". Em abril de 2015, quando os parlamentares da União Europeia em Bruxelas ainda se recusavam a aceitar as leis de Proteção de Dados Europeus defendidas pelo Google, bastou que a empresa prometesse uma "parceria" com os maiores jornais europeus para que eles vendessem seu apoio por 150 milhões de euros e a promessa de alguns clique a mais. Essa crescente pressão não passa de um chilique de criança mimada: "Ei, esses dados são MEUS!". Mas quem é o verdadeiro dono de tudo isso?

Há pouco tempo, o guru do Vale do Silício Jaron Lanier fez essa pergunta da forma mais ingênua possível: "a quem isso pertence?". Mal sabe ele que a verdadeira questão é "a quem eu pertenço?"

O fato de não termos mais controle sobre nossas próprias vidas pode ser visto no caso de Maximilian Schrems, um estudante austríaco de 27 anos que há anos tenta, sem sucesso, mandar pedidos judiciais para que a Irlanda — local que abriga a sede europeia do Facebook— devolva todos seus dados pessoais coletados pela empresa durante sua breve presença no site. A luta de Schrems resultou em três meses de auditoria sobre o processo de coleta de dados do Facebook e possíveis mudanças na política da empresa, mas o processo continua a correr na Corte de Justiça Europeia e nos tribunais austríacos.

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Uma simples hipótese mostra claramente o tipo de poder que esses novos tiranos têm sobre nós: imagine que seu provedor simplesmente proíba o acesso aos seus emails. Quanto você pagaria para não perder todas suas informações?

Em alguns lugares, isso já acontece: no México, "sequestradores virtuais" hackeiam a identidade virtual de suas vítimas a fim de controlá-las como marionetes. O que você faria para impedir que sua mulher soubesse do seu vício em pornografia? Ou para evitar que sua mãe receba mensagens com detalhes gráficos de todo seu sofrimento? Será que esses dados são realmente virtuais?

Eis a história do próximo filme do James Bond: o Dr. No compra o Facebook e faz 1.3 bilhões de pessoas de reféns.

A informação pessoal é uma matéria-prima escassa. Cada indivíduo cria seu próprio grupo de informações, semelhante a uma assinatura única no canto de um quadro. Uma expressão de caráter único. Em vez de carne, um aglomerado de dados. Esse é o objetivo de todas essas análises e algoritmos: você. O conhecimento acerca de seus desejos e anseios mais profundos. E como os dados pessoais são a matéria-prima mais cobiçada do século 21, corremos o perigo de que as novas empresas de mineração de dados nos explorem com a mesma perversidade com que os mineradores do passado arruinaram o solo do planeta.

Vá em frente, jogue fora seu celular e seu computador, saia correndo do Facebook. Você vai ver: não há escapatória. Porque nos últimos anos, tudo que nos cerca se tornou tecnológico. O problema não se limita às redes sociais: eles nos vigiam com sensores de carros, TVs, geladeiras ou com as câmeras de "cidades inteligentes" como o Rio de janeiro, Baltimore ou Estocolmo — como visto no recente caso das TVs Samsung, que estavam transmitindo dados sobre o comportamento de seus donos para a empresa. "Eles nos olham enquanto nós os olhamos", cantou o Wu-Tang Clan em 1998. Na época, essa era apenas uma teoria da conspiração. Uma época em que pulseiras eletrônicas que transmitem informações não eram um acessório chamado Fitbit, mas sim uma punição reservada para criminosos que precisavam ser vigiados. Hoje nós pagamos para isso.

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Desde que as revelações de Snowden vieram à tona, está claro que também pertencemos ao Estado. Correspondências, ligações, padrões de movimento: eles sabem de tudo. Nesse aspecto, o governo e a indústria têm objetivos curiosamente parecidos. "Reunir e organizar toda a informação do mundo"— este é a declaração de missão original do Google. O NSA, o BND e o GHCQ certamente aprovariam essa ideia.

Somos servos de dois mestres, e agora eles estão em guerra. Informação é tanto dinheiro quanto poder. A batalha digital por recursos já começou, e isso é bom para nós.

Quando dois brigam, um terceiro se dá bem. É a hora certa para a batalha de distribuição da Nova Era Digital. As cartas estão dadas, e o jogo já é nosso. Não temos muito a perder; afinal, é a primeira vez que nos é permitido jogar.

Todo o esforço será compensado. Todos os bilhões acumulados pelo Facebook & Companhia podem ser nossos. De acordo com uma estimativa da empresa Boston Consulting Group, em 2020, a Europa irá lucrar mil bilhões — ou seja, um trilhão de euros — com nossos dados pessoais. Além disso, pensem em todos os empregos administrativos que irão desaparecer graças ao advento da Inteligência Artifical e da digitalização. Esses sistemas se alimentam de dados pessoais. As correções de suas mensagens privadas estão tornando os tradutores obsoletos e o serviço de localização do seu celular está destruindo o trabalho dos taxistas tradicionais. É por isso que seus dados valem tanto. É por isso que digo que sou o capital.

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Se quisermos ver a cor desse dinheiro, teremos que aprender a vender nosso produto. Colocar nossos corpos, ideias e emoções digitais à venda. Em outras palavras, precisamos vender nossas almas.

Quantas vezes nos disseram que a internet é a terra da liberdade? O oposto não poderia ser mais verdadeiro: temos que trazer os direitos e a liberdade pela qual tanto lutamos no mundo físico para o novo reino digital. Temos que estabelecer nossa soberania — e a liberdade de usar nossos dados para benefício próprio.

Assim como nós, empresários e empregados, temos vendido nossas habilidades por séculos, agora é preciso vender nossas informações pessoais antes que outros o façam. Mesmo que você odeio o livre mercado, a criação de um mercado de dados ainda é uma realidade muito mais agradável do que a servidão ou o monopólio do poder. É como eles dizem: a liberdade está a um clique de distância.

Temos todo o aparato necessário. A ideia é simples: escassez artificial. Reconquiste sua terra e seu corpo, pare de entregar sua colheita e deixe esses déspostas tão famintos que eles não terão outra opção senão te pagar o que devem. Deixe Bruce Schneier e Wall Street orgulhosos. Use todos os cypherpunks e toda a criptografia, e quando isso não bastar, use todos o poder de persuasão da bolsa de valores.

Nós temos que trazer os direitos e a liberdade pela qual tanto lutamos no mundo físico para o novo reino digital

Primeiro, temos que reunir todos nossos dados e trancá-los em um cofre criptografado. Então entregaremos as chaves dos nosso tesouro para aquele com a melhor oferta — e que negocie segundo nossas leis.

Sejamos anti-liberdade. Se em vez de serviços falsamente gratuitos tivéssemos um fluxo monetário ligado diretamente a esses dados, o lado oculto do mercado e todas suas transações secretas viriam à tona. Ninguém no Vale do Silício quer que isso aconteça; o sistema se baseia na nossa submissão.

É preciso ter pressa. Se não agirmos agora, o Google, o Facebook e o NSA irão criar uma realidade intransponível, assim como os limites erguidos por impérios que, mesmo caídos, ainda insistem em nos subjugar.

Que entre o dinheiro. Que venha o fim da servidão digital. Se a minha alma já tem valor de mercado, exijo todo seu lucro.

Hannes Grassegger é um economista alemão nascido nos anos 80 e autor de Das Kapital bin Ich. Você pode seguí-lo no Twitter no perfil @HNSGR.