Ei, Ministério da Saúde, Homeopatia Não É Medicina
Crédito: epSos.de/Flickr

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Ei, Ministério da Saúde, Homeopatia Não É Medicina

Sabe de uma coisa, Ministério? Quanto melhor a qualidade do teste a que a homeopatia é submetida, menor o efeito constatado. Tipo placebo.

Como já havia feito no ano passado, o Ministério da Saúde aproveitou o 21 de novembro, Dia Nacional da Homeopatia, para enfeitar as redes sociais com memes que promovem a prática e, de modo não muito sutil, se gabou de haver tratamentos homeopáticos na rede brasileira de saúde pública.

Foi em 21 de novembro de 1840 que o francês Benoit-Jules Mure, considerado o introdutor da doutrina homeopática no Brasil, chegou ao país – daí o Dia Nacional. Portanto, coube a uma coincidência histórica, e não a um senso deliberado de ironia, fazer com que o governo federal cantasse as glórias da homeopatia no SUS uma semana depois de o sistema de saúde pública da Inglaterra, o NHS – no qual o SUS é inspirado –, anunciar estudos para banir a prática.

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O NHS mantém uma "lista negra" que define quais medicamentos os profissionais vinculados ao sistema público estão proibidos de receitar. Como, em princípio, toda receita emitida por um médico do NHS deve ser aviada gratuitamente – isto é, paga com dinheiro público – a relação contém os produtos que, de acordo com as autoridades, desperdiçam recursos dos contribuintes, seja porque existem alternativas mais baratas, seja porque não prestam. Medicamentos homeopáticos entram na segunda categoria.

Os estudos para incluir medicamentos homeopáticos nessa lista negra seguem a pressão exercida pela ONG Good Thinking Society, criada pelo jornalista britânico de ciência Simon Singh. Ao lado do médico e pesquisador Edzar Ernst, Singh é coautor do livro "Truque ou Tratamento", que faz uma avaliação crítica de diversas terapias ditas alternativas, incluindo a homeopatia, e aponta as deficiências de cada uma.

Ernst, um ex-homeopata, conta, em sua autobiografia A Scientist in Wonderland: A Memoir of Searching for Truth and Finding Trouble ("Um Cientista no País das Maravilhas: Uma Memória de Buscar a Verdade e Achar Confusão"), como sua carreira acadêmica foi prejudicada por uma perseguição movida pelo Príncipe Charles, um convicto usuário de homeopatia que não tolerava as críticas do cientista à prática.

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A verdade é que, a despeito da gabolice do nosso Ministério da Saúde, a última década não tem sido nada boa para a homeopatia. No início deste ano, o Conselho Nacional de Saúde e Pesquisa Médica da Austrália – órgão máximo de estudos sobre Medicina do país – emitiu um duro relatório que conclui que "não existe nenhuma condição médica para a qual seja possível afirmar que a homeopatia funciona" e que "pessoas que optam por homeopatia põem a saúde em risco, se rejeitam ou adiam tratamentos para os quais há boas evidências de segurança e eficácia".

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Os cientistas australianos chegaram a essas conclusões depois de avaliar 225 artigos sobre tratamentos homeopáticos. Ao fazer a afirmação sobre risco à saúde, talvez eles também tivessem em mente, além dos dados científicos, o caso de Gloria Sam, um bebê que morreu em agonia, na Austrália, depois de meses de sofrimento com uma infecção de pele perfeitamente tratável. Seus pais insistiram em usar apenas homeopatia. Em 2009, Thomas Sam e Manju Sam, pai e mãe de Gloria, foram condenados a seis e quatro anos de prisão, respectivamente, por homicídio culposo.

Cinco anos antes do relatório australiano, em 2010, o Comitê de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Comuns do Parlamento Britânico também havia emitido relatório com a conclusão de que não há base científica nem prova de eficácia da homeopatia. Também recomendava que "o governo não deve permitir que pacientes adquiram tratamentos sem base em evidências com dinheiro público". "O governo deve parar de financiar homeopatia por meio do NHS", afirmaram os parlamentares. Desde 2012, as universidades públicas da Inglaterra não oferecem mais cursos de "medicina alternativa" – incluindo homeopatia.

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A década de atritos cada vez mais intensos entre a homeopatia e a ciência – e, por tabela, com os órgãos reguladores – teve início com a publicação, em agosto de 2005, de uma meta-análise, na revista "Lancet", que comparou 110 estudos sobre medicamentos homeopáticos a 110 estudos sobre medicamentos convencionais. Uma meta-análise é um procedimento em que diversos trabalhos científicos sobre um mesmo tema são analisados em conjunto para ver se é possível obter uma conclusão geral.

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Quanto melhor a qualidade do teste a que a homeopatia é submetida, menor o efeito constatado – até o ponto em que ele se torna impossível de distinguir do placebo

Os autores dessa meta-análise concluíram que tanto as pesquisas convencionais quanto as homeopáticas apresentavam vieses – ou seja, desvios em relação ao que seria a qualidade ideal de um estudo médico – mas que, quando os vieses eram reconhecidos e levados em conta, as evidências de eficácia dos medicamentos convencionais continuavam sendo fortes. Já as evidências a favor dos medicamentos homeopáticos virtualmente desapareciam. "Essa descoberta é compatível com a noção de que os efeitos clínicos da homeopatia são efeitos placebo", afirma o artigo. "Efeito placebo" é o grau de melhora esperado quando o paciente apenas imagina estar sendo tratado, sem receber nenhuma intervenção eficaz de fato.

A meta-análise veio acompanhada de um duro editorial da "Lancet". Com o título "O Fim da Homeopatia", a peça opinativa pedia que os médicos parassem de mentir para os pacientes e reconhecessem que a homeopatia não oferece nenhum benefício.

Todos esses desenvolvimentos dos últimos dez anos – o material da "Lancet", os relatórios britânico e australiano, a decisão do órgão regulador americano, a FDA (implementada também agora, em 2015), de rever a leniência com que a homeopatia é tratada nos EUA e, saindo do forno, a iminente exclusão do NHS – vêm sendo alegremente ignorados no Brasil, onde a homeopatia segue firme e forte como especialidade médica, reconhecida pelos órgãos de classe desde 1980, ensinada em faculdades (públicas, inclusive) e receptora de verbas dos órgãos de fomento à pesquisa (com uma curiosa ênfase no setor veterinário) e do SUS.

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Mas, afinal, qual o problema? Por que tanta gente batendo na homeopatia? Seria pressão da indústria farmacêutica? Na verdade, não: a menos que homeopatas e laboratórios homeopáticos passem a, de repente, prestar serviços grátis, o fato é que há interesses econômicos e fome de lucro tanto na medicina tradicional quanto na homeopática.

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E remédios homeopáticos são extremamente rentáveis: como um dos princípios da homeopatia é a diluição extrema dos preparados, uma quantidade mínima de matéria-prima pode gerar infindáveis doses de medicamento. Um único pato, por exemplo – fonte dos tecidos usados no remédio homeopático Oscillococcinum, recomendado para gripe— é capaz de abastecer a indústria por um ano. Na verdade, a diluição usada no preparo do Oscillococcinum é tão radical que é virtualmente garantido que você não encontrará nenhuma célula de pato, ou nenhuma molécula de célula de pato, em nenhuma pílula, jamais. Trata-se de um produto de origem animal mais seguro para veganos que uma salada.

Esse princípio da diluição – que propõe que quanto menos do agente houver no medicamento, mais ele deve funcionar – é um dos fundamentos da homeopatia, mas não faz o menor sentido em termos químicos ou biológicos. A favor do criador da prática, o alemão Samuel Hahnemann (1755-1843), é preciso dizer que ele teve essas ideias antes que a existência de átomos e moléculas fosse estabelecida, quando ainda era possível imaginar que as propriedades das diferentes substâncias emanavam de algum tipo de essência imaterial. Seus seguidores atuais, porém, não têm a mesma desculpa.

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Outro ponto que milita contra a credibilidade da homeopatia é o princípio de que "semelhante cura semelhante": uma substância que produz, numa pessoa saudável, sintomas parecidos aos da doença deve curar a doença. Hahnemann teve essa inspiração porque, ao tomar um remédio para malária enquanto saudável, sentiu-se febril. Não sei como eram as coisas no século XVIII, mas deduzir um princípio universal a partir de um exemplo não é boa prática científica hoje em dia. De qualquer modo, Hahnemann ainda tem o benefício, negado aos homeopatas modernos, de ter vivido antes da descoberta de coisas como vírus e bactérias.

Essas dificuldades seriam meras curiosidades acadêmicas se a homeopatia funcionasse. Se uma diluição infinita de fígado de pato cura gripe, ei, deixe os físicos e os químicos quebrarem a cabeça tentando entender como isso é possível, mas, por favor, vamos curar as pessoas! O problema é que não funciona. A meta-análise da "Lancet" é apenas o trabalho mais famoso em uma série enorme que aponta, sempre, para o mesmo resultado: quanto mais rigoroso, quanto melhor a qualidade do teste a que a homeopatia é submetida, menor o efeito constatado – até o ponto em que ele se torna impossível de distinguir do placebo.

Trata-se de uma constatação que costuma chocar os milhões de pacientes satisfeitos de homeopatas em todo o mundo. Se a homeopatia não funciona, como as pessoas são curadas, ou acreditam que são curadas, por ela?

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Há duas questões importantes aqui: a primeira é que a imensa maioria das queixas de saúde se resolve sozinha. Feridas cicatrizam, o sistema imunológico funciona, parasitas têm ciclos de vida finitos; problemas respiratórios, como asma, às vezes somem com a idade. A segunda é que, enquanto se tratam de alguma doença, as pessoas também fazem várias outras coisas: comem, bebem, dormem, batem papo com parentes e amigos, conversam com o médico, descansam no sofá.

Qualquer uma dessas coisas – repouso, conversa, dieta, ingestão de líquidos, o conforto de sentir o foco da atenção de amigos e do médico – pode ser tão ou mais importante que o remédio para a recuperação da saúde. Os testes a que medicamentos são submetidos servem para separar o efeito real, substantivo, do remédio dessas interferências de fundo. E o que meta-análises como a da "Lancet" mostram é que, quando melhor a qualidade do teste, mais o efeito dos produtos homeopáticos se confunde com as interferências de fundo.

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Alguns homeopatas se queixam da natureza dos testes: a homeopatia, dizem, é personalizada, com tratamentos específicos para o paciente. Testes clínicos envolvem grandes grupos de voluntários. Portanto, não são um método justo de avaliação.

O problema é que isso não faz sentido. Um grau de personalização como o proposto pelo argumento homeopático simplesmente inviabiliza a prática da medicina: toda a ideia de que é possível receitar remédios – incluindo os homeopáticos, como o Oscillococcinum – depende do conceito de que certas substâncias curam certas doenças na população em geral ou, ao menos, numa fração específica dela. Essa fração pode até ser um recorte pequeno (os portadores de um gene raro, digamos), mas mesmo essas especificidades minúsculas são detectáveis em testes clínicos.

Em sua nota sobre o Dia da Homeopatia, o Ministério da Saúde diz que a prática é um "sistema vitalista (que vê o paciente como um todo, não em partes)". Só que a definição dada pelo Ministério não corresponde a "vitalista", e sim a "holista". No Dicionário Houaiss, "vitalista" quer dizer outra coisa: "relativo ao vitalismo". E "vitalismo" é a "ideia de que os fenômenos relativos aos seres vivos (evolução, reprodução e desenvolvimento) seriam controlados por um impulso vital de natureza imaterial". Trata-se, portanto, de uma doutrina mística. Nada a ver com ciência. Nem médica, nem qualquer outra.