Desconectado
​Art: Koren Shadmi.

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Tecnologia

Desconectado

“Eu sou uma pessoa”, respondo seca. “Androides teleoperados são reconhecidos pela FDA.”

"Você tá bem?"

O pulso de Daniel acompanha o ritmo da ressaca da noite de ontem, atravessando meu crânio. Mas eu aguento. Seu ciclo cardíaco é tão familiar quanto a topografia de minhas mãos, reconfortante como os muitos controles que me ligam ao geminoid. É uma conexão, uma linha de vida auditiva.

Ele enxuga a mandíbula com um lencinho bordado, os olhos em busca de um local para repousar. Movo uma alavanca e o olhar de meu avatar acompanha seu movimento.

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"Sim". Um tico de hesitação. "Só está um pouco quente."

"Não entendo como poderia ser assim." Coço o tecido grosso de minha bochecha direita.

Estamos em seu restaurante favorito, comemorando o fim de minha fisioterapia. Um bangalô reformado no coração de Kuala Lumpur, um endereço discreto, sem qualquer sinalização e decoração de mau gosto, popularíssimo entre celebridades que querem passar despercebidas e a elite malaia.

Tudo é natural aqui, dos chefs estrangeiros de pele morena e os mocassins de couro calçados pelos homens às pernas cor de creme de caramelo das mulheres, elegantes como um gato da Birmânia. Todos humanos, todos de carne e osso e medula, todos trazidos aqui a altos custos. Se há implantes ou polímeros no cômodo, são da melhor qualidade, reais o suficiente para serem invisíveis para meus módulos oculares.

"Nada para se preocupar." A costura do seu sorriso está um pouco puída nos cantos. "Só não tive a chance de me aclimatar ao tempo local ainda. Espere alguns dias querida. Vai ficar tudo bem."

Inflo os pulmões de meu geminoid com o toque de um botão, então deixo o ar escapar num silvo exasperado. Daniel desvia seu olhar, dando atenção a uma garfada de cabelo de anjo, espirais de carboidratos temperados com bacon embebido em uísque.

Por um tempo não conversamos nada de relevante, rebatendo os comentários inanes um do outro pela mesa, cada um diminuíndo cada vez mais minha paciência.

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Eventualmente, desisto. A frustração vem com um baque, escuto fibras de madeira se romperem sobre meu punho de metal, um som agudo e fraco, como a morte de um camundongo. Os talheres cambaleiam com o impacto, bem como seu sorriso diplomático.

Conversar costumava ser tão fácil.

Quero que ele admita estar chocado com o que vê, que o que sou contradiz seu senso estético. Mas ele é educado demais, estrangulado por suas próprias delicadezas para discutir o barulho distinto feito por carne queimando e os meandros de semanas de resmungos no psiquiatra.

"Daniel", tamborilo com os dedos. O microfone transmite um hino de estalos e rangidos. "Eu sei que há algo de errado."

Seu sorriso é desajeitado, tão destoante quanto um homem rico com um terno barato.

"O quê?", ele diz, em torno de um gole rápido demais da taça de Chardonnay.

"Meu equipamento de vigilância me diz que seus batimentos cardíacos em repouso chegam aos 110 bpm. Seus níveis de epinefrina, norepinefrina e cortisol estão batendo no teto, e–"

Ele levanta as mãos graciosamente. "Tenho culpa no cartório."

Junto da honestidade vem um sorriso triste. "É o braço, não é?"

"Você sabe que eu te amo, e não tenho preconceito nenhum com tecnologia de ponta." Ele bate na testa ao menor sinal de um implante caro. Uma peça de pura vaidade, mais do que tudo, feita para agilizar a comunicação a longas distâncias de maneira nada eficaz em termos de custo, "mas eu só – eu preciso de você como pessoa. Não como a máquina".

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"Eu sou uma pessoa", respondo seca. "Androides teleoperados são reconhecidos pela FDA."

"Eu sei", ele passa seus dedos por fios de cabelo oleosos e imaculados. "Eu lembro. Nós já falamos sobre isso. Você não precisa falar de novo. É só que–"

"Só que o quê?"

"Você não pode fazer isso consigo mesma. Conosco. Eu preciso de você, não desta… coisa. Eu quero te abraçar de novo. Você não sente falta de –?"

Pressiono os dedos contra meu peito, onde atuadores imitam as batidas de meu coração. "Você sabe que este corpo está equipado para isso, se você me abraçar, a interface traduzirá a pressão e–"

"Eu sei", o som no ar cheio de significados. Ele passa a línguas pelos lábios, "eu sei".

Voltamos às tapas dispostas ao acaso entre nós.

"Acho que só vou ter que me acostumar mesmo", diz.

Carne com crosta de nozes, mergulhada em pimenta preta e partículas de café. Crepes finos como papel, recheadas com purê de arando vermelho, cobertos com gelato de bacon derretido. Queijo halloumi vindo de diretamente de Chipre grelhado na brasa. Caranguejo de casca mole assado em açafrão e gema de ovo salgada, gorduroso o bastante para fazer você engasgar.

É uma tremenda extravagância; ambos sabemos que a latência e a paleta limitada de ésteres de meu geminoid dificultam a percepção de nuances mais sutis, o jogo entre especiarias e sal que define este tipo de excesso culinário.

Ainda assim, é o pensamento.

"Tem algo mais que você queira me dizer?"

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"Não", responde Daniel, sem hesitar. Seus batimentos aceleram. "A não ser que você queira saber mais sobre o trabalho no hotel."

"Se você quiser me falar, eu gostaria de ouvir."

Independente de seus outros defeitos, Daniel é excelente para se conversar, ligado nos altos e baixos naturais da interação humana, sinto uma pontinha de amor enquanto ele me leva em uma narrativa que pareceria banal se feita por qualquer outra pessoa. Espontaneamente, meus dedos serpenteiam em direção aos seus, ansiando por transmitir afeição.

Então vislumbro a mim mesma na janela escurecida, uma imagem fantasmagórica de ferro, não pele, me retorço para atrás, segurando firmemente então a taça de vinho.

Ele não diz nada, seus olhos ilegíveis enquanto observam os nós das minhas mãos, suas leituras químicas estabilizando em um neutro cordial.

Em meio a uma anedota sobre um homem do Oriente Médio e seu harém querelante, o telefone de Daniel toca.

"Trabalho?"

Seu sorriso não se altera, mas seus batimentos pulam uma contração, uma irregularidade suspeita. "Temo que sim. Com licença, querida."


Ele se levanta, dando um beijo gelado em minha bochecha antes de se afastar. O observo em silêncio. O geminoid registra sua partida com um olhar brando, sem piscar.

Com um pulsar ínfimo de culpa, passo pelos campos de NFC e frequências de celulares, filtrando as conversas alheias, até ouvir a voz de Daniel, baixa e doce. Ele está pedindo desculpas para alguém, para – Ah.

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Ela é jovem, esta mulher do outro lado da linha, sua dicção veloz, suas palavras um tremular sem pausas que poderia ser esmagado na palma da mão. Sua infidelidade não me surpreende. Os meses após minha cirurgia foram marcados por súbitas excursões, novas contas pessoais e tímidas ligações telefônicas conduzidas do santuário que é o banheiro.

O que me surpreende é como o afeto entre eles não me causa nada de ciúme. Apenas uma fraca melancolia.

Escuto por um tempo, enquanto Daniel a relembra gentilmente como ainda estou no centro de seu coração, e que ele decidirá quando chegar ao ultimato imposto a si mesmo. Ela não o implora para me exorcizar de sua vida. Ao invés disso, ela lhe confere uma benção. De amor, de felicidade e de sua amizade caso se vejam divorciados desta união clandestina.

Interrompo a conexão, estranhamente envergonhada.

Daniel volta, seu rosto sereno, enquanto ainda penso sobre a minha falta de raiva. A única indicação de sua culpa é uma súbita melancolia em seu sorriso.

"Espero que você esteja entendiada", outro beijo leve, desta vez de encontro com meus lábios e língua.

"Não", respondo, me afastando, enrolando mechas de cabelo com os dedos. Como sempre, o contato parece esquisito, importuno. Minha embocadura não traduz bem beijos. "A comida me fez companhia."

Ele senta à mesa novamente, apoiando seus cotovelos, com uma bochecha inclinada sobre uma mão aberta. "Então, onde estávamos?"

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As palavras são como migalhas se prendendo no maquinário de minha garganta. "Nós íamos falar sobre nosso futuro juntos."

"Íamos?", seus olhos cheios de dúvidas. Nenhum cuidado, só um pensamento gentil, tentador em sua inocência.

"Sim." Porque estou triste pela outra mulher em sua vida, que parece tão cansada de esperar. "Eu tenho uma coisa boa acontecendo aqui, e bem, você tem sido tão paciente."

A confusão dá lugar à alegria, um raio de sol dourado que transforma sua melancolia em cinzas. "É que, bem, eu não–"

"Já estamos juntos há sete anos, acho que devemos falar sobre, você sabe."

"Sim." Sua felicidade borbulha como champanhe sobre o plástico. "Sim, hm, devíamos. Eu estava pensando…" No fim das contas, aconteceu aquilo que esperava. Ele queria a mim e não este simulacro. Para abraçar, beijar, amar.

"Mas eu não…"

"Tudo bem", ele me diz. "Podemos te consertar."

Sua frase me faz hesitar. Me consertar. Como um brinquedo quebrado, uma bicicleta com uma roda a menos. Me consertar, não a situação, ou a forma como ele tremeu ao passar os dedos pelas cicatrizes em minhas costas. Consertar este elo vacilante e despedaçado, voltando à como era antes.

"Eu…"

"Você?" Seu rosto radiante, dedos quentes.

"Eu–" Liberar algo é mais fácil do que eu imaginava, mais fácil do que reaprender a estrutura da sua face. Mais fácil do que pilotar um fantasma de si mesmo "–eu acho que você deveria ligar para Jennifer e dizer a ela que vocês tem minha benção".

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Seus olhos cheios de contradição, pânico e maravilhamento em iguais medidas. Pela primeira vez em muito tempo, me vejo ansiando por um toque, pelo intimidade reconfortante de pele sobre pele.

Dou um tapinha em sua mão, não de forma hostil.

"Coma. Sua comida está esfriando."

"Alette, espere–"

Eu me desconecto.


Este conto faz parte do Terra​form, nosso novo lar online para ficção futurista.

Tradução: Thiago "Índio" Silva