​Como um boato de 'World of Warcraft' levou um jovem brasileiro a Hollywood
Dark Portal, o trabalho de Guilherme Henrique, 22, que foi apropriado por um jogador alemão que espalhou o boato de que a imagem seria do filme de WoW. Crédito: Guilherme Henrique

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Tecnologia

​Como um boato de 'World of Warcraft' levou um jovem brasileiro a Hollywood

O artista 3D Guilherme Henrique, 22, criou uma imagem fictícia da adaptação cinematográfica do jogo e, meio que sem querer, teve seu trabalho exposto numa conceituada galeria dos EUA.

Se você joga World of Warcraft — ou ao menos está ansioso para o lançamento da sua adaptação pro cinema —, deve saber que, em meados de dezembro do ano passado, um burburinho sobre o suposto "vazamento" da capa oficial do filme tomou a internet. Para o lamento dos fãs, a imagem nada mais era do que um pôster feito por um fã de modo muito profissional. No entanto, duvido que você saiba que o autor original por trás do trampo de computação gráfica 3D que rodou o mundo — e não o do usuário que se apropriou da imagem e criou o cartaz numa tentativa de autopromoção falha — é um brasileiro de 23 anos que vive na Zona Norte da cidade de São Paulo. E mais: que por causa de toda essa treta, do seu talento e da vontade da comunidade em defender o verdadeiro autor do trabalho, ele conseguiu se destacar em um mercado dominado por estúdios de renome.

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Hoje Guilherme Henrique, o "Sepultura", como ficou conhecido, além de atuar da sua casa como diretor de arte de uma empresa australiana, foi convidado para expor seus trabalhos ao lado dos dez maiores artistas especializados em ambientes 3D do mundo na Gnomon Gallery de Hollywood, a galeria de arte da escola de computação gráfica mais reconhecida do planeta. "Parece mentira. Eu tava assistindo TV na sala quando recebi o e-mail. Fiquei uns dez minutos encarando a tela do notebook", conta. Era verdade. Suas telas estão impressas, enquadradas e expostas desde o dia 2 de abril e devem ficar assim por mais seis semanas. Ficam ao lado de trabalhos de pessoas como Alex Alvarez, creature artist do filme Avatar, de dois dos principais diretores da gigante Blizzard e alguns dos seus grandes ídolos do meio. "É surreal. Cresci estudando esses caras. Ainda parece mentira", afirma Guilherme Henrique, o "Sepultura", incrédulo do seu feito.

Trampos expostos nas galeria de arte Gnomon Gallery, em Hollywood. Crédito: Guilherme Henrique

Apesar da pouca idade, a relação de Guilherme com a computação gráfica começou há mais de década: em 2002, quando o filme O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel chegou aos cinemas. Fascinado pela qualidade dos efeitos visuais, o moleque, que sequer havia completado dez anos, passava suas tardes pós-escola na lan house em busca de notícias que contassem como o longa havia sido feito. "Eu imprimia tudo que conseguia sobre o filme, levava para casa e ficava lendo o dia inteiro", conta.

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Com o passar dos anos, começou a usar sua admiração pelo trabalho de computação gráfica, efeitos visuais e 3D como motivação para tentar produzir seu próprio trabalho. Começou como muitos: lendo tutoriais na internet e reproduzindo o que os principais profissionais da área faziam. Porém, em vez de abraçar logo de cara a ideia de que um dia iria trabalhar com isso, Henrique transformou a paixão em algo paralelo. Até hoje não sabe explicar o porquê.

Old Mill, trabalho que faz referência à obra Alice no País das Maravilhas. Crédito: Guilherme Henrique

Após se formar no Ensino Médio, passou um ano sem estudar ou trabalhar. "Fiquei de boa sem fazer nada. Era vagabundo pra caralho", diz. Depois desse período, ele, que também é músico, decidiu se dedicar à produção sonora. Foram três meses até desistir. Então, em uma decisão que assustou sua mãe, professora e grande companheira, o rapaz apostou na carreira de tatuador. Comprou a aparelhagem, fechou os dois braços e se arriscou na profissão. Mas, depois de conversar com Dona Elisabete, descobriu que só poderia seguir tatuando com uma condição: matriculando-se em uma faculdade — qualquer que fosse.

"Ao mesmo tempo eu me senti obrigado também. Parei para pensar que se continuasse naquela pegada eu ia ter uma vida de bosta", diz. Em outra atitude que hoje considera questionável, prestou vestibular para o curso de Arquitetura. "Achei que arquiteto podia ganhar bem. Que erro!". Passou um ano infeliz, frequentando as aulas com desgosto e criando conflitos com os professores. Nesse momento, passou pela sua cabeça – finalmente! – focar toda a atenção no que sempre esteve ali, mas nunca como protagonista: a computação gráfica. "Com a grana que estava pagando na facul, eu poderia investir no que eu realmente curtia. A real é que estava perdendo tempo ali naquela sala de aula", conta.

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Bitolado, socialmente renegado e premiado

Após tomar essa decisão, largou praticamente tudo para focar no aprendizado e no processo criativo do software open source Blender, estigmatizado entre os profissionais da área como "pobre" demais para produzir grandes trabalhos. Guilherme abraçou o programa e se lançou como "Sepultura" nos principais fóruns de digital art do mundo. A escolha do "nome artístico", se assim considerar, foi feita em decorrência de três fatores: achar seu nome impronunciável para gringos, ser um puta fã da banda e ainda fazer alguma referência ao seu país de origem. Mas não bastou sair da faculdade para conseguir focar nos novos projetos. Ele também diz que precisou abrir mão de sua vida social. "Deletei meu WhatsApp e praticamente deixei de falar com todo mundo. Tirando a minha mãe, você é o único brasileiro que falo em muito tempo. Eu decidi que ia bitolar mesmo nos trampos", conta.

Guilherme Henrique, o "Sepultura". Crédito: Guilherme Henrique

Dessa forma totalmente bitolada, Guilherme se inscreveu em um desafio da CGSociety, uma organização que presta serviços, oferece consultorias e reúne as principais informações de computação gráfica para os artistas 3D "amadores". O tema do desafio? Portas. "Portas? Nem pensei duas vezes, fiz um portal inspirado no WoW", conta. O trabalho, chamado Opening The Dark Portal, rendeu não somente o primeiro lugar em três diferentes categorias — incluindo a principal Best Model e as demais Best Environment e Best W.I.P —, mas também chamou a atenção de diferentes estúdios que utilizam o Blender no mundo e abriu as portas para oportunidades de trabalho. Além disso, o trampo atraiu um rapaz que se sentiu no direito de usar a imagem para criar o boato de que a capa do filme Warcraft - O primeiro encontro de dois mundos, a primeira adaptação do jogo para o cinema que estreia em 2016, havia sido liberada.

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Primeiros trampos e um boato na web

O responsável por se apropriar do Opening the Dark Portal feito pelo "Sepultura" e espalhar o rumor ao redor do mundo foi o user "Kelson1988", um designer alemão apaixonado por WoW. "Um cuzão", diz o brasileiro. No entanto, apesar do cara ter tentado ficar famoso em cima do seu trabalho, Henrique também acredita que foi um dos principais fatores para a sua arte ser mais reconhecida na rede. Foi assim que o pôster rodou o mundo, afinal. 9Gag, Reddit, Blizzard Watch e até mesmo um site chinês publicaram o trabalho fan made. Mais do que isso, o próprio Duncan Jones, diretor do filme, compartilhou no seu Twitter a imagem, com elogios ao jovem Kelson – o que gerou ainda mais treta. É comum na comunidade online dos artistas 3D a galera descrever o passo a passo dos seus trampos. E foi exatamente isso que o "Sepultura" fez com seu Dark Portal. Então, quando o mundo começou a creditar o alemão como dono do imagem, o pessoal que acompanhou todo o trabalho do brasileiro ficou furioso e começou a reagir. Basta olhar os comentários no tuíte do diretor.

Christmas in Mordor, trampo com elementos de Senhor dos Aneis e da festa de Natal. Crédito: Guilherme Henrique

Com toda essa reação, alguns sites até mesmo corrigiram e deram os créditos corretos para o artista brasileiro. Ao mesmo tempo, Guilherme se deparava com as primeiras propostas de freelancers para empresas gringas. Antes mesmo de todo o rolo com o boato, os prêmios da CGSociety o posicionaram no mercado e fizeram com que representantes da CGMasters, uma empresa que produz e vende tutoriais de 3D, procurassem o jovem para que ele pudesse fazer parte da comunidade de colaboradores do site. "É um bom alerta pra galera perceber como essas competições são importantes. Todo mundo que trampa no exterior em empresa grande que eu conheço foi por esse caminho."

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Depois disso, recebeu a proposta para produzir seu primeiro freela para a Blender Guru — empresa na qual se tornaria diretor de arte mais tarde —, criada pelo jovem australiano Andrew Price, também conhecido por defender o software no meio. Por US$ 300, produziu seu primeiro trailer para a empresa: um estonteante avião pousando ao lado de uma casa à beira-rio em meio ao pôr-do-sol. Impressionado com a qualidade, a Blender Guru continuou contratando "Sepultura" para novos trabalhos. "A comunidade defende que o trabalho de computação gráfica também é arte. E eu concordo 100%. Precisa ter tesão para sentar e trabalhar em uma imagem por um mês sem parar."

Um anônimo em Hollywood

Menos de um ano depois da primeira proposta de trabalho do australiano Andrew Price, também conhecido por seu canal de tutoriais no YouTube, "Sepultura" recebeu outro convite: assumir o cargo de diretor de arte da Blender Guru, coordenando os tutoriais e gerenciando os plug-ins do Blender vendidos pela empresa. Seu trabalho, hoje, consiste em coordenar a equipe de freelas que Price contrata ao redor do mundo.

Snow, trabalho para o canal de tutorial do Blender Guru. Crédito: YouTube

Mas, para o lamento do jovem que sempre quis trabalhar com o cinema, o timing das propostas que chegaram a sua caixa de e-mails não foi dos melhores. Uma semana após assinar o contrato com a Blender Guru, surgiu em sua caixa de mensagens um e-mail do setor de recursos humanos da Base FX, estúdio parceiro da Lucasfilm e da Industrial Light & Magic — empresas criadas somente por George Lucas — com os seguintes dizeres:

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Olá, prazer em conhecê-lo.

Estamos muito interessados na sua experiência. A Base FX é o principal estúdio de efeitos visuais da Ásia, com uma equipe fixa de 400 artistas.

A empresa tem uma parceria estratégica com a Lucasfilm e a Industrial Light & Magic, e os nossos serviços vêm crescendo no meio do cinema independente e de séries de televisão ao redor do mundo. Conheça os projetos que fizemos parte:

As Tartarugas Ninja

Transformers: Era da Extinção

Capitão América: O Soldado Invernal

Círculo de Fogo

True Detective

The Last Ship

Black Sails

Recentemente, ganhamos o nosso terceiro Emmy pela primeira temporada de Black Sails. E a nossa sede de Beijing está precisando urgentemente de artistas especializados em ambientes 3D.

Se estiver interessado, nos procure.

Abraços.

Guilherme recusou a proposta por ter assinado o contrato com a Blender Guru. "Foi foda. Me destruiu. Eu tinha dois sonhos na vida: trampar com Senhor dos Aneis, que já não dá mais, e Star Wars, que fui obrigado a recusar." Ele diz isso por que a Base FX foi responsável pela produção de efeitos visuais de Star Wars: Rogue One.

Apesar do choque, algo muito bom aconteceu após o convite. Uma revista britânica pediu autorização para publicar "Snow", um dos seus trabalhos mais famosos nos tutoriais do Blender Guru, com quase 100 mil visualizações. Isso foi em setembro de 2015. Três meses depois, em 22 de dezembro, "Sepultura" recebeu um e-mail que o "recolocou" em Hollywood. Na mensagem, estava um convite dos organizadores da Gnomon Gallery de Hollywood, galeria de arte da principal escola de computação gráfica do mundo, criada por Alex Alvarez, creature artist dos filmes Avatar, Super 8, Prometheus e Lanterna Verde. No convite, a galeria dizia que havia escolhido os dez principais artistas especializados em ambientes do mundo para expor seus trabalhos ao lado de Alvarez – e que o brasileiro estava entre eles. "Não acreditei. Pensei que era algo para se inscrever… Daquele tipo de coisa que não dá em nada. Li o e-mail e nem respondi."

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Um dia depois, Guilherme Henrique recebeu mais uma mensagem da organizadora, agora reforçando o convite. "Parei para prestar atenção e era verdade. Eu ia expor junto com os caras que me ensinaram essa porra. Com meus ídolos. Respondi na hora qualquer coisa. Só queria confirmar. Levei minha mãe no restaurante japonês. Gastei uns R$ 500 pau só em comida. Foda-se, se ficasse pobre, eu nem ligava."

"Meu primeiro trampo fiz numa máquina de R$ 300 que comprei no Mercado Livre"

A exposição Territory: Exploring the Art of 3D Environments ocorre desde o dia 2 de abril e segue até 11 de maio. "A coleção desta exposição mostra como artistas de CG são capazes de oferecer e criar mundos fantásticos e naturais utilizando software 3D", diz a sinopse da mostra no site oficial. Ao lado do brasileiro, estão os artistas Toni Bratincevic, Francesco Corvino, Marek Denko, Devon Fay, Dragos Jieanu, David Lesperance, Stefan Morrell, Nicolas Pierquin e Helder Pinto. "Só sênior da computação gráfica", diz "Sepultura".

Guilherme, que não tem visto americano e, portanto, não pôde ir, lamenta: "Porra se eu não tive vontade. Imagine conversar cara a cara com todos esses artistas incríveis? Mas não ia dar tempo de tirar, então vou fazer o quê?". Agora resta a ansiedade de ver suas imagens expostas na galeria. "Tem até gente servindo chá. É surreal pensar nisso."

Sobre seu futuro, o jovem diz que pretende se alocar fora do país. Para isso, quer esperar a mãe se aposentar. No Brasil, professores o procuram para tirar dúvidas – vi em um inbox um professor do Senac pedindo que atualizasse seu canal no YouTube. E o jovem já teve até proposta para dar aula. "R$ 8,00 a hora. Não dá pra aceitar." Enquanto isso, ele usa o dinheiro que ganha para investir nos seus equipamentos: está montando um computador de R$ 20 mil. "Engraçado que meu primeiro trampo fiz numa máquina de R$ 300 que comprei no Mercado Livre", brinca.

Com a exposição, Guilherme confessa que espera novas propostas. "Sem dúvidas, é uma vitrine e tanto. Espero que possa ajudar a minha carreira."

Mesmo com tanto acontecendo em sua vida, "Sepultura" ainda faz questão de divulgar nos fóruns todos os passos dos seus trabalhos. Seu usuário segue muito ativo. Sempre tira as dúvidas do pessoal que o acompanha. "Eu aprendi a trabalhar lendo o passo a passo de outros artistas. Seria muito cuzão da minha parte se não fizesse o mesmo", diz. "Contar com o apoio da comunidade sempre deu o gás necessário para que eu pudesse fazer o meu máximo. Espero poder influenciar outras pessoas."