Na última segunda-feira (1), a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de emergência devido à propagação de casos de microcefalia suspeitos de serem resultantes do zika vírus. De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil contabiliza mais de 4 mil casos. Aqui e em vários países que registraram casos similares, as mulheres foram aconselhadas a não engravidar enquanto a crise não passar.A relação entre o zika e a microcefalia ainda é nebulosa. Epidemiologistas não sabem afirmar, de fato, se o vírus causa a doença e quais são os verdadeiros riscos. A declaração de estado de emergência da OMS, porém, serviu para que vários países acionassem o que têm de melhor na ciência para pesquisar o vírus.
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O que sabemos até agora, de acordo com Dr. Thomaz Gollop, professor livre docente em genética da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP), é que a microcefalia supostamente causada pelo zika é diferente da microcefalia que acontece de forma isolada por outras infecções ou causas genéticas. É pior. Segundo ele, a microcefalia associada ao zika está se mostrando muito mais grave, já que causa lesões no sistema nervoso central do feto."Isso é muito raro a gente ver, o que está se vendo no país são formas muito graves, não só da microcefalia, como também a lesão do encéfalo. As crianças normais com microcefalia, que não têm microcefalia causada pelo vírus, são diferentes", afirma o professor.
Thomaz explica que a destruição do sistema nervoso é causada no momento em que o vírus atravessa a placenta, causando uma encefalite – inflamação grave no cérebro – e tem consequências bem sérias, como risco de surdez, cegueira e atraso mental. "São crianças muito prejudicadas", completa.Como é de se esperar, os riscos de gerar uma criança com problemas graves e a falta de informações concretas causam pânico entre as gestantes. Na falta de orientações seguras sobre planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, vem à tona o velho debate sobre a legalização do aborto no país.Ainda que a prática seja um crime pelo código penal brasileiro – salvo três exceções: gravidez provocada por estupro, risco de vida para a gestante e feto diagnosticado com anencefalia –, gestantes estão, segundo a Folha de S. Paulo, buscando o aborto clandestino para interromper a gravidez. Ao mesmo tempo, de acordo com o Estadão, assim que algumas mulheres pernambucanas recebem o diagnóstico de microcefalia em seus bebês, os pais da criança estão abandonando esposa e cria.
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O cenário é de medo e, para garantir a integridade da vida das mulheres que tentam abortar por causa da epidemia do vírus, um grupo de ativistas está redigindo uma ação ao Superior Tribunal Federal (STF) para alterar a lei referente à criminalização da prática no país."A nossa proposta de ação não é só uma discussão sobre aborto, é também de uma política social focada para essas mulheres e essas crianças que venham a nascer", diz a antropóloga Débora Diniz, responsável pela PNA. Ela também colaborou com o grupo que moveu uma ação em 2012 para descriminalização de aborto em casos de anencefalia, mesmo grupo que articula o projeto atual referente à microcefalia.A antropóloga garante que o projeto cobrará políticas de proteção social e cuidado para as mulheres que não optarem pelo aborto, uma vez que o contexto de epidemia evidencia a negligência do estado brasileiro em conter a propagação do mosquito. (Em outras palavras, segundo o texto, o governo tem culpa, sim, por não conseguir fazer com que a doença não se alastre.)O projeto deve passar por votação no STF e, caso aprovado pela maioria dos votos, passa a valer depois de divulgado no Diário de Justiça, como aconteceu em 2012 com os casos de anencefalia. A obrigação de dar continuidade à gravidez nesses casos foi considerada análoga à tortura, um crime segundo a Constituição Federal, pelo fato de causar sofrimento à gestante.
Ainda que a microcefalia por ora não possa ser associada à tortura, há exemplos internacionais que mostram que a legalização do aborto pode decorrer de uma epidemia. Nos anos 60, uma crise de rubéola pautou a legislação abortiva nos Estados Unidos. Semelhante ao que está acontecendo no Brasil, na época, milhares de crianças foram diagnosticadas com microcefalia e outras doenças neurológicas graves. Em 1972, a Suprema Corte americana decidiu que o aborto era um direito das mulheres e não poderia ser proibido durante o primeiro trimestre da gestação (12 semanas). O mesmo aconteceu no Reino Unido e na França.
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No Brasil, independentemente da doença, a questão do aborto é urgente. A estimativa é de que sejam feitos cerca de um milhão de abortos clandestinos por ano no país. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) aponta que pelo menos uma em cada cinco mulheres já passou pela experiência do aborto. Dados os números, é fácil deduzir que, mesmo criminalizado, o procedimento é uma prática consolidada em terras brasileiras. Quem pode pagar, faz. (Em São Paulo, um aborto clandestino feito por um médico em uma clínica razoável pode custar de 3 a 15 mil reais. Outra opção é o uso de medicamentos, como o misoprostol – popularmente conhecido como cytotec – que também têm o comércio criminalizado em território nacional.)O problema está nas mulheres que não têm acesso a um bom sistema de saúde: o aborto, muitas vezes mal executado, é considerado a quinta maior causa de morte materna no mundo, segundo a OMS, além de encarcerar mulheres brasileiras por até três anos.
Não à toa, muitos médicos veem nesse cenário de epidemia um bom meio de legalizar o aborto no Brasil – ainda que seja só em casos de risco de microcefalia. Thomaz Gollop é um deles. Ele afirma que a negligência do Estado é o maior argumento favorável à aprovação da medida de alteração da lei. "Não é responsabilidade da grávida, não é justo fazer com que ela tenha que arcar com as consequências", diz. Uma autorização judicial, afirma, não significa que toda mulher tenha que interromper a gestação. "O que está se colocando é que ela deve ter o direito de decidir, na medida em que essas crianças terão um comprometimento neurológico extraordinariamente grave, para o qual você tem muito pouca ferramenta para resolver esse problema.""O que estamos vendo no país são formas muito graves, não só da microcefalia, como também a lesão do encéfalo"
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No cenário atual, a busca de mulheres brasileiras pelo aborto é quase como uma medida preventiva movida pelo medo, uma vez que, em pessoas adultas – mesmo grávidas –, a infecção por zika dura poucos dias e não costuma deixar grandes sequelas. Só é possível saber se o feto será prejudicado quando a gravidez já está avançada, por volta da 28° semana. O período ideal para um procedimento de interrupção da gravidez, é bom ressaltar, é de até 12 semanas. Quando feito após isso, a tentativa de aborto pode ser de alto risco de vida para a mãe e também para o feto, que já apresenta um desenvolvimento mais avançado.O apoio estrangeiro e o impasse pró-vidaEnquanto há o impasse judicial, o suporte para gestantes brasileiras terem a opção de abortar tem vindo até de fora do país. Nessa semana, a ONG holandesa Women on Web voltou a enviar ao Brasil pelo correio comprimidos de mifepristona e misoprostol, duas substâncias que, combinadas, causam aborto. Junto da medicação, é inserido um folheto explicativo que detalha o procedimento e o que pode acontecer depois de ingerir o remédio."Esperamos que essa emergência de saúde pública faça os órgãos brasileiros não confiscarem os pacotes, que eles possam ver o quão importante isso é para a saúde pública e o quão importante é as mulheres terem acesso a serviços de aborto seguro", disse Rebecca Gomperts, médica e fundadora da ONG, ao Motherboard. "As mulheres tentarão qualquer coisa para fazer um aborto, todo mundo sabe disso, e quando não têm acesso a um meio seguro, as mulheres morrem por nada." Ano retrasado, os pacotes começaram a ser interceptados na alfândega brasileira, obrigando o grupo a parar de enviá-los. Agora com o zika vírus, porém, a prática voltou a todo vapor e a organização espera compreensão para que os pacotes cheguem ao país.Se médicos e especialistas em saúde pública do mundo todo acreditam que a escolha do aborto em casos de microcefalia é algo válido e importante, qual a dificuldade? Bem, entramos no velho debate que costuma pautar quase toda decisão eleitoral: a briga entre os "pró-vida" e os "pró-escolha" no Brasil. A bancada religiosa tenta aprovar projetos como o Estatuto do Nascituro, que nega o aborto em casos de estupro, e o PL N°5069/2015 que restringe o acesso à pílula do dia seguinte, de autoria do deputado Eduardo Cunha, inimigo número um das feministas.
Simone Tavares, mãe em tempo integral de duas paratletas com microcefalia, está agitando no estado do Mato Grosso do Sul e em suas redes sociais uma campanha contra o aborto nos casos de microcefalia. "Defendo o direito da mulher decidir o que fazer do corpo dela, mas aí eu vi com o olhar de mãe essa história da microcefalia. Acredito que todo mundo tem direito de nascer, cada um tem sua missão e precisa passar por certos entendimentos, independentemente da deficiência", contou ao Motherboard.O Dr. Gollop acredita que a procura pela interrupção da gravidez pode aumentar caso o projeto seja aprovado, mesmo com as campanhas desfavoráveis à prática. As estatísticas dos países que legalizaram o aborto, no entanto, mostram o contrário. Desde que foi aprovado o aborto no Uruguai em 2014, nenhuma morte por tentativa de abortamento foi registrada e a porcentagem de mulheres que levaram a gravidez adiante inclusive aumentou. Ano passado, aconteceram alguns ataques a clínicas de aborto nos EUA, mas as estatísticas ainda apontam que a legalização foi a melhor solução, uma vez que a medida é considerada questão de saúde pública. Uma coisa é certa: chegou a hora da questão ser discutida a sério na nossa legislação."As mulheres tentarão qualquer coisa para fazer um aborto, todo mundo sabe disso, e quando não têm acesso a um meio seguro, as mulheres morrem por nada."