Como o zika vírus pode mudar a legislação sobre o aborto no Brasil
Crédito: Letícia Naísa

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Como o zika vírus pode mudar a legislação sobre o aborto no Brasil

Pouco se sabe ainda sobre a relação entre o zika e a microcefalia, mas o pânico entre as mulheres movimenta ações para lidar com a crise.

Na última segunda-feira (1), a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou estado de emergência devido à propagação de casos de microcefalia suspeitos de serem resultantes do zika vírus. De acordo com o Ministério da Saúde, o Brasil contabiliza mais de 4 mil casos. Aqui e em vários países que registraram casos similares, as mulheres foram aconselhadas a não engravidar enquanto a crise não passar.

A relação entre o zika e a microcefalia ainda é nebulosa. Epidemiologistas não sabem afirmar, de fato, se o vírus causa a doença e quais são os verdadeiros riscos. A declaração de estado de emergência da OMS, porém, serviu para que vários países acionassem o que têm de melhor na ciência para pesquisar o vírus.

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O que sabemos até agora, de acordo com Dr. Thomaz Gollop, professor livre docente em genética da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP), é que a microcefalia supostamente causada pelo zika é diferente da microcefalia que acontece de forma isolada por outras infecções ou causas genéticas. É pior. Segundo ele, a microcefalia associada ao zika está se mostrando muito mais grave, já que causa lesões no sistema nervoso central do feto.

"Isso é muito raro a gente ver, o que está se vendo no país são formas muito graves, não só da microcefalia, como também a lesão do encéfalo. As crianças normais com microcefalia, que não têm microcefalia causada pelo vírus, são diferentes", afirma o professor.

Um neurologista mede a cabeça de Luiza Arruda, nascida em outubro com microcefalia, no hospital Mestre Vitalino em Caruaru, Pernambuco. Crédito: Associated Press/Felipe Dana

Thomaz explica que a destruição do sistema nervoso é causada no momento em que o vírus atravessa a placenta, causando uma encefalite – inflamação grave no cérebro – e tem consequências bem sérias, como risco de surdez, cegueira e atraso mental. "São crianças muito prejudicadas", completa.

Como é de se esperar, os riscos de gerar uma criança com problemas graves e a falta de informações concretas causam pânico entre as gestantes. Na falta de orientações seguras sobre planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, vem à tona o velho debate sobre a legalização do aborto no país.

Ainda que a prática seja um crime pelo código penal brasileiro – salvo três exceções: gravidez provocada por estupro, risco de vida para a gestante e feto diagnosticado com anencefalia –, gestantes estão, segundo a Folha de S. Paulo, buscando o aborto clandestino para interromper a gravidez. Ao mesmo tempo, de acordo com o Estadão, assim que algumas mulheres pernambucanas recebem o diagnóstico de microcefalia em seus bebês, os pais da criança estão abandonando esposa e cria.

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O cenário é de medo e, para garantir a integridade da vida das mulheres que tentam abortar por causa da epidemia do vírus, um grupo de ativistas está redigindo uma ação ao Superior Tribunal Federal (STF) para alterar a lei referente à criminalização da prática no país.

"A nossa proposta de ação não é só uma discussão sobre aborto, é também de uma política social focada para essas mulheres e essas crianças que venham a nascer", diz a antropóloga Débora Diniz, responsável pela PNA. Ela também colaborou com o grupo que moveu uma ação em 2012 para descriminalização de aborto em casos de anencefalia, mesmo grupo que articula o projeto atual referente à microcefalia.

A antropóloga garante que o projeto cobrará políticas de proteção social e cuidado para as mulheres que não optarem pelo aborto, uma vez que o contexto de epidemia evidencia a negligência do estado brasileiro em conter a propagação do mosquito. (Em outras palavras, segundo o texto, o governo tem culpa, sim, por não conseguir fazer com que a doença não se alastre.)

O projeto deve passar por votação no STF e, caso aprovado pela maioria dos votos, passa a valer depois de divulgado no Diário de Justiça, como aconteceu em 2012 com os casos de anencefalia. A obrigação de dar continuidade à gravidez nesses casos foi considerada análoga à tortura, um crime segundo a Constituição Federal, pelo fato de causar sofrimento à gestante.

Solange Ferreira dá banho no filho José Wesley em um balde, na casa da família em Poco Fundo, Pernambuco. Créditos: Associated Press/Felipe Dana.

Ainda que a microcefalia por ora não possa ser associada à tortura, há exemplos internacionais que mostram que a legalização do aborto pode decorrer de uma epidemia. Nos anos 60, uma crise de rubéola pautou a legislação abortiva nos Estados Unidos. Semelhante ao que está acontecendo no Brasil, na época, milhares de crianças foram diagnosticadas com microcefalia e outras doenças neurológicas graves. Em 1972, a Suprema Corte americana decidiu que o aborto era um direito das mulheres e não poderia ser proibido durante o primeiro trimestre da gestação (12 semanas). O mesmo aconteceu no Reino Unido e na França.

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No Brasil, independentemente da doença, a questão do aborto é urgente. A estimativa é de que sejam feitos cerca de um milhão de abortos clandestinos por ano no país. A Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) aponta que pelo menos uma em cada cinco mulheres já passou pela experiência do aborto. Dados os números, é fácil deduzir que, mesmo criminalizado, o procedimento é uma prática consolidada em terras brasileiras. Quem pode pagar, faz. (Em São Paulo, um aborto clandestino feito por um médico em uma clínica razoável pode custar de 3 a 15 mil reais. Outra opção é o uso de medicamentos, como o misoprostol – popularmente conhecido como cytotec – que também têm o comércio criminalizado em território nacional.)

O problema está nas mulheres que não têm acesso a um bom sistema de saúde: o aborto, muitas vezes mal executado, é considerado a quinta maior causa de morte materna no mundo, segundo a OMS, além de encarcerar mulheres brasileiras por até três anos.

"O que estamos vendo no país são formas muito graves, não só da microcefalia, como também a lesão do encéfalo"

Não à toa, muitos médicos veem nesse cenário de epidemia um bom meio de legalizar o aborto no Brasil – ainda que seja só em casos de risco de microcefalia. Thomaz Gollop é um deles. Ele afirma que a negligência do Estado é o maior argumento favorável à aprovação da medida de alteração da lei. "Não é responsabilidade da grávida, não é justo fazer com que ela tenha que arcar com as consequências", diz. Uma autorização judicial, afirma, não significa que toda mulher tenha que interromper a gestação. "O que está se colocando é que ela deve ter o direito de decidir, na medida em que essas crianças terão um comprometimento neurológico extraordinariamente grave, para o qual você tem muito pouca ferramenta para resolver esse problema."

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No cenário atual, a busca de mulheres brasileiras pelo aborto é quase como uma medida preventiva movida pelo medo, uma vez que, em pessoas adultas – mesmo grávidas –, a infecção por zika dura poucos dias e não costuma deixar grandes sequelas. Só é possível saber se o feto será prejudicado quando a gravidez já está avançada, por volta da 28° semana. O período ideal para um procedimento de interrupção da gravidez, é bom ressaltar, é de até 12 semanas. Quando feito após isso, a tentativa de aborto pode ser de alto risco de vida para a mãe e também para o feto, que já apresenta um desenvolvimento mais avançado.

O apoio estrangeiro e o impasse pró-vida

Enquanto há o impasse judicial, o suporte para gestantes brasileiras terem a opção de abortar tem vindo até de fora do país. Nessa semana, a ONG holandesa Women on Web voltou a enviar ao Brasil pelo correio comprimidos de mifepristona e misoprostol, duas substâncias que, combinadas, causam aborto. Junto da medicação, é inserido um folheto explicativo que detalha o procedimento e o que pode acontecer depois de ingerir o remédio.

"Esperamos que essa emergência de saúde pública faça os órgãos brasileiros não confiscarem os pacotes, que eles possam ver o quão importante isso é para a saúde pública e o quão importante é as mulheres terem acesso a serviços de aborto seguro", disse Rebecca Gomperts, médica e fundadora da ONG, ao Motherboard. "As mulheres tentarão qualquer coisa para fazer um aborto, todo mundo sabe disso, e quando não têm acesso a um meio seguro, as mulheres morrem por nada." Ano retrasado, os pacotes começaram a ser interceptados na alfândega brasileira, obrigando o grupo a parar de enviá-los. Agora com o zika vírus, porém, a prática voltou a todo vapor e a organização espera compreensão para que os pacotes cheguem ao país.

Se médicos e especialistas em saúde pública do mundo todo acreditam que a escolha do aborto em casos de microcefalia é algo válido e importante, qual a dificuldade? Bem, entramos no velho debate que costuma pautar quase toda decisão eleitoral: a briga entre os "pró-vida" e os "pró-escolha" no Brasil. A bancada religiosa tenta aprovar projetos como o Estatuto do Nascituro, que nega o aborto em casos de estupro, e o PL N°5069/2015 que restringe o acesso à pílula do dia seguinte, de autoria do deputado Eduardo Cunha, inimigo número um das feministas.

"As mulheres tentarão qualquer coisa para fazer um aborto, todo mundo sabe disso, e quando não têm acesso a um meio seguro, as mulheres morrem por nada."

Simone Tavares, mãe em tempo integral de duas paratletas com microcefalia, está agitando no estado do Mato Grosso do Sul e em suas redes sociais uma campanha contra o aborto nos casos de microcefalia. "Defendo o direito da mulher decidir o que fazer do corpo dela, mas aí eu vi com o olhar de mãe essa história da microcefalia. Acredito que todo mundo tem direito de nascer, cada um tem sua missão e precisa passar por certos entendimentos, independentemente da deficiência", contou ao Motherboard.

O Dr. Gollop acredita que a procura pela interrupção da gravidez pode aumentar caso o projeto seja aprovado, mesmo com as campanhas desfavoráveis à prática. As estatísticas dos países que legalizaram o aborto, no entanto, mostram o contrário. Desde que foi aprovado o aborto no Uruguai em 2014, nenhuma morte por tentativa de abortamento foi registrada e a porcentagem de mulheres que levaram a gravidez adiante inclusive aumentou. Ano passado, aconteceram alguns ataques a clínicas de aborto nos EUA, mas as estatísticas ainda apontam que a legalização foi a melhor solução, uma vez que a medida é considerada questão de saúde pública. Uma coisa é certa: chegou a hora da questão ser discutida a sério na nossa legislação.