Como o Estado Islâmico usa apps criptografados para organizar seus ataques
Kik, WhatsApp, SureSpot, Telegram. A lógica do EI e apps de mensagens criptografadas é caótica: desconfie de todos, use o que der. Crédito: Eduardo Woo/Flickr

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Tecnologia

Como o Estado Islâmico usa apps criptografados para organizar seus ataques

Kik, WhatsApp, SureSpot, Telegram. A lógica é caótica: desconfie de todos, use o que der.

Em 1º de julho, cinco membros do Estado Islâmico invadiram a Holey Artisan Bakery, um café localizado em Dhaka, capital de Bangladesh, e mataram 28 pessoas durante 12 horas. Antes que o grupo terrorista clamasse a autoria do ataque, a agência de notícias deles, a Amaq News Agency, postou comentários sobre o atentado em tempo real por meio de seu canal no Telegram.

A primeira mensagem afirmou que "soldados" do EI atacaram o café, que era "frequentado por estrangeiros", e uma atualização postada minutos depois informou os seguidores do grupo que mais de "20 pessoas de diferentes nacionalidades foram mortas". Em seguida, a Amaq atualizou o número de mortos para 24 e o número de feridos para 40, encerrando a notícia com fotos da cena sangrenta que ocorria no interior do restaurante.

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Estava mais do que claro que os terroristas e a Amaq utilizaram algum app de mensagens para manter uma comunicação direta e ininterrupta. Cinco dias depois, o The Times of India noticiou que o aplicativo em questão havia sido o Threema, um app de mensagens criptografadas.

A confirmação do uso de mais um app de mensagens em um ataque terrorista trouxe à tona alguns casos anteriores. Sabe-se que os responsáveis pelos ataques em Paris se comunicaram pelo WhatsApp e pelo Telegram antes do dia do atentado, em 13 de novembro de 2015. Najim Laachraoui, fabricante de bombas e participante do atentado à Bruxelas em março desse ano, teria usado o Telegram, enquanto fugitivos envolvidos no supracitado atentado de Paris utilizaram o WhatsApp, o Viber e até o Skype para falar com líderes do EI na Síria antes que as autoridades os localizassem.

Policiais de Bangladesh vigiam o lado de fora da Holey Artisan Bakery durante um cerco armado em Dhaka, Bangladesh, 2 de julho de 2016. Crédito: zakir hossain chowdhury/Agência Anadolu/Getty Images

Enquanto recrutadores e combatentes do EI aliciam novos seguidores nas redes sociais, as verdadeiras discussões acontecem em apps de conversa, em grupos muitas vezes anunciados na internet. Entre os apps utilizados por grandes recrutadores do EI como Neil Prakash ("Abu Khalid al-Cambodi"), Mohamed Abdullahi Hassan ("Mujahid Miski"), e Farah Mohamed Shirdon ("Abu Usamah as-Somali") estão o Wickr, o Kik, o SureSpot, o ChatSecure, o Telegram e o WhatsApp.

Embora o grupo procure manter uma presença rigorosa e constante nas mídias sociais, o EI não é tão consistente no que diz respeito aos aplicativos de mensagem utilizados por seus seguidores. Mas por quê?

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Aplicativos diferentes, opiniões divergentes

Desde a catastrófica expansão do EI, em 2014, o grupo terrorista tem mantido uma presença complexa, porém organizada, nas redes sociais — começando por sua longa presença no Twitter, passando por estadias temporárias em plataformas como a Friendica e a Diaspora e terminando em sua recente adesão ao Telegram. Mas, quando o assunto é o uso de apps de mensagens criptografadas, essa organização se transforma em caos.

Os apps têm sido o principal meio de comunicação privada utilizado por combatentes, recrutadores e seguidores do EI nos últimos anos. Graças ao crescimento dos apps de mensagens criptografadas, os recrutadores, especialistas em tecnologia e combatentes do EI já utilizaram, aprovaram ou rechaçaram quase todos os apps que você possa imaginar. Entretanto, existem algumas contradições dentro dessa teia de mensagens e atividade. Embora muitos apoiadores do EI já tenham expressado desconfiança quanto à segurança de muitos desses apps, combatentes, agentes e recrutas do grupo continuam a utilizá-los.

Dentro do Estado Islâmico, não há nenhum consenso sobre qual aplicativo deve ser priorizado, seja para migração ou para coordenar ataques.

Levemos em consideração o WhatsApp, um programa de mensagens extremamente popular entre membros e recrutadores do EI. Não é de se surpreender que os responsáveis pelos ataques de Paris e Bruxelas tenham utilizado esse aplicativo (é bom acrescentar que os responsáveis pelo ataque em Paris usaram o app antes que ele fosse criptografado — ou seja, suas conversas poderiam ter sido interceptadas).

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Embora muitos desses indivíduos tenham compartilhado seus nomes de usuário do WhatsApp nos últimos anos, a comunidade digital do EI sempre foi contra esse aplicativo. Em janeiro, a conta do Twitter de "Al-Khabir al-Taqni", um jihadista e especialista em segurança, classificou 33 apps de mensagens entre as seguintes categorias: arriscado, moderadamente seguro, seguro e extremamente seguro. Na pior categoria estão o WhatsApp e mais 15 apps, todos os quais foram criticados por Al-Khabir. Em suas palavras: "Nós aconselhamos a todos que pensem bem antes de instalar esses aplicativos em seus celulares… pois eles representam um risco muito grande".

Al-Khabir alegou que o WhatsApp, além de outros aplicativos de fonte fechada e criptografia "fraca" ou inexistente, como o Viber, são "perigosos".

Apesar de todos os avisos, os combatentes do EI continuaram a usar o app. Em um post publicado em 27 de novembro de 2015, "Shams" (também conhecida como "Ave do Paraíso"), uma recrutadora do EI vinda supostamente da Malásia, afirmou ter utilizado o WhatsApp mesmo sabendo que "ele não é seguro".

(Tradução: Irmãs, por favor me passem seus contatos do whatsapp via mensagem para que eu possa entrar em contato com vocês. No momento eu não tenho o kik nem o surespot e o whatsapp é o app mais acessível para mim, mesmo sabendo que ele não é seguro. Por favor me perdoem. Eu só vou responder aqueles que confiam em Alá. Não posso responder pelo tumblr porque isso me faria gastar muito dinheiro, já que estou usando um pacote de dados. Barak'Allahu feekum minhas irmãs… Para aqueles que me mandaram mensagens e conselhos, amo todos vocês com a graça de Alá!)

Mesmo depois que o WhatsApp anunciou a inclusão de criptografia de ponta a ponta entre seus serviços, em abril, um canal pró-EI do Telegram chamado "Dicas de Segurança para Muçulmanos", afirmou que os membros do grupo "não deveriam confiar no programa":

Agora o WhatsApp criptografa as mensagens…nós não podemos confiar no WhatsApp já que o WhatsApp é o app mais fácil de hackear e um dos aplicativos comprados pelo programa israelense do Facebook!

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Mesmo assim, recrutadores do EI ignoraram esses avisos e continuaram a utilizar o aplicativo. Em maio desse ano, "A Vida de uma Muhajira", um canal do Telegram pertencente a uma mulher que narra a jornada feita por ela e seu marido da Alemanha até o Estado Islâmico, afirma que durante sua estadia na Turquia, seu marido entrou em contato com contrabandistas com a ajuda de vários aplicativos, entre eles o WhatsApp. Ela descreve a busca de seu marido por contrabandistas na Turquia, dizendo que, "Meu marido tentou conseguir o número de Irmãos que já estavam na internet, mais precisamente com ajuda do WhatsApp".

Mais tarde, ela menciona uma conversa entre seu marido e outro contato, dizendo que, "Ele deu seu número para meu marido, e eles conversaram através de mensagens de áudio no WhatsApp".

Essa discordância também se aplica a outros aplicativos de mensagens criptografadas. Entre esses estão o SureSpot e o Kik, amplamente utilizados pelos maiores recrutadores e combatentes do EI. Ambos aplicativos foram usados por Junaid Hussain ("Abu Hussain al-Britani"), recrutador do EI que manteve contato com o responsável pelo ataque do Texas, Elton Simpson, e o jihadista responsável pelo ataque de Boston, Usaama Rahim.

Na época de seu contato com Simpson, Hussain estava utilizando o Kik como forma de comunicação privada.

Hussain comentando sobre o ataque em Garland, Texas, enquanto o atentado acontecia, revelando assim seu envolvimento no atentado. Crédito: Reprodução

Um mês depois, Hussain incitaria seus seguidores a organizar ataques ao Ocidente, mas desta vez utilizando o app SureSpot.

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Dia 15 de julho de 2015, Hussain oferecendo dicas sobre a produção de bombas e organização de ataques.( Tradução: Se alguém precisar de aulas de confeitaria ou ajuda para conduzir operações me mande uma mensagem no surespot InshAllah.)

Assim como o Whatsapp, o Kik e o SureSpot não haviam sido recomendados pelos especialistas em tecnologia do EI. Alguns membros do EI postaram diversos avisos sobre esses aplicativos. "Abu Suleymaan", um especialista em segurança do EI, disse ter grandes reservas acerca do Kik. Em seu Tumblr, intitulado Abu Suleymaan Security News, Suleymaan escreve:

Após um drone americano ter matado Hussain na cidade síria de Raqqa em agosto de 2015, simpatizantes do EI continuaram a expressar suas ressalvas acerca do SureSpot. Entre os críticos mais enfáticos estava "Abu Suleymaan", que postou uma série de avisos dizendo que, "Irmãos e irmãs…O SureSpot matou Abu Hussain. Tomem cuidado e se preparem. Esse é meu último aviso. Que Alá nos proteja".

Enquanto isso, "Qa'qa al-Baritani", um dos mais experientes recrutadores do EI, refutou tais preocupações:

1) No que diz respeito aqueles que dizem que o surespot e outros aplicativos não são seguros, nós ajudamos centenas de irmãos e irmãs usando..

2) ..esses mesmos aplicativos que você insistem em criticar. O problema não são os aplicativos, mas sim vocês!

Em maio de 2015, um membro britânico do EI publicou um guia sobre a vida dentro do Estado Islâmico, apresentando-a como uma experiência enriquecedora sob um "império em crescimento". No guia, o autor diz o seguinte:

(Tradução: Dentro do Estado Islâmico você terá acesso a gadgets como laptops, tablets, celulares e, é, claro, internet. Tenha em mente que as redes telefônicas ainda estão em construção, mas que aplicativos como o Skype, o Kik, o WhatsApp e o Telegram, para citar alguns, são uma ótima opção.)

Os exemplos são abundantes, mas a ideia é bem clara: dentro do EI, não há um consenso sobre quais aplicativos criptografados devem ser utilizados, seja para migração ou para coordenar ataques.

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Embora seja razoável considerar que essa desorganização possa ser uma tática para confundir as agências governamentais encarregadas de desmantelar o EI, ou para não chamar atenção para um aplicativo específico, esse não parece ser o motivo. Nós sabemos que jihadistas e membros do EI são incentivados a usar meios de comunicação seguros para evitar a vigilância de outros países. Suas prioridades, entretanto, estão muito mais voltadas às circunstâncias individuais e à conveniência.

A grande diferença entre aplicativos e outros meios de comunicação online é o fato de que todos membros da célula devem usar o mesmo app. No passado, a Al-Qaeda e outros grupos jihadistas se comunicavam através de emails, utilizando provedores como o Yahoo e o Hotmail. Como resultado, esses grupos podiam enviar ou receber emails mesmo utilizando provedores diferentes. Por outro lado, o uso de apps exige que todos os membros da célula terrorista baixem o mesmo aplicativo.

Essa exigência dificulta ainda mais a comunicação entre células do EI localizadas em diferentes partes do mundo, posto que nem todos apps são utilizados (ou mesmo disponibilizados) em diferentes países. Embora o WhatsApp seja o aplicativo mais popular em países como a Alemanha e a Grã-Bretanha, o Messenger do Facebook é amplamente utilizado em países como os EUA e a Austrália. Alguns governos já tentaram se unir a provedores de internet locais, que podem controlar o acesso da população à internet, para bloquear certos aplicativos (isso nem sempre funciona; Bangladesh havia supostamente bloqueado o Threema antes do ataque ocorrido em Dhaka).

Considerando estas variáveis, assim como a predileção de terroristas procurados pelo Skype e pelo (então não-criptografado) WhatsApp, é justo conluir que os jihadistas não estão tão preocupados com a segurança de seus apps de comunicação.

Esse espírito "qualquer-app-serve" adotado pelo EI e seus seguidores dificulta ainda mais a luta contra o terror na era dos smartphones, além de dar força para argumentos vazios a favor da regulamentação de plataformas de comunicação criptografada. A medida que o EI evolui e causa mais estragos, algo se torna mais claro: o mundo digital é complexo demais para soluções baratas e ineficazes como a quebra de sigilo de aplicativos de mensagens e a regulamentação do acesso à internet. Se a abordagem do EI em relação à comunicação nos ensina alguma coisa, é que precisamos primeiro entender o que acontece sob nossos narizes para depois compreender o que está acontecendo longe de nossos olhares vigilantes.

Tradução: Ananda Pieratti