​Como lidar com revenge porn na Justiça?
Um pequeno guia jurídico para crimes relacionados ao revenge porn e vazamentos de nudes. Crédito: Bárbara Scarambone

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​Como lidar com revenge porn na Justiça?

Um pequeno guia jurídico para crimes relacionados aos vazamentos de nudes e vídeos íntimos.

Aos 16 anos, Júlia Rebeca dos Santos, moradora da cidade de Parnaíba, no Piauí, tirou a própria vida depois que teve vazado um vídeo íntimo nas redes sociais. Quatro dias depois, Giana Fabi, de 17 anos, de Veranópolis, no Rio Grande do Sul, também se suicidou ao saber que circulava pela internet uma foto íntima sua.

Ocorridos em 2013, estes são dois episódios emblemáticos de revenge porn. Com desfechos trágicos, ficaram famosos por causa da repercussão na mídia e, por algum tempo, serviram para ilustrar a urgência do assunto.

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À época muito se falou que, quando uma foto íntima cai na rede, não há muito o que fazer. Uma vez na internet, afirmaram muitos especialistas, o conteúdo se replicará até se tornar eterno. Muito por causa dessa cobertura, de lá para cá, incontáveis vítimas do revenge porn se limitaram a se isolar ou mudar de identidade.

Mas será que não há mesmo o que fazer no âmbito legal, jurídico?

Foi o que a pesquisadora Mariana Valente, do InternetLab, um centro de estudos da área de direito e internet, buscou responder no livro "O Corpo é o Código". Disponível de graça em formato digital, o documento reúne estratégias jurídicas de enfrentamento ao revenge porn no Brasil. O princípio do livro, diz Mariana, foi analisar casos de divulgação não consentida de imagens íntimas que ocorreram no estado de São Paulo com o objetivo de oferecer uma resposta não só à comunidade acadêmica e jurídica, mas também a ativistas, feministas e ao público.

"Acabamos descobrindo que soluções jurídicas existem, sim, mas elas podem ser problemáticas de vários pontos de vista", diz Mariana. "O livro, além de ser um material útil para aplicadores do direito, legisladores e formuladores de políticas públicas, pode servir às vítimas também, na medida em que indica essas possibilidades."

O trabalho foca no fato de que o revenge porn é mais uma faceta da violência contra a mulher. Mariana fala que, na maioria das decisões judiciais sobre disseminação de imagens íntimas de casais heterossexuais, são as mulheres que movem a ação. "Não é difícil ver à nossa volta que é isso mesmo que acontece – é só sob condições muito específicas que a disseminação de intimidade acaba com a vida de um homem, enquanto com as mulheres isso parece ser a regra."

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Isso acontece, afirmam os autores do livro, porque ainda há uma enorme disparidade entre as expectativas de comportamento entre os gêneros. O grande estigma que envolve a imagem da mulher sexualizada, dizem, possibilita que as imagens íntimas se tornem objetos de chantagem e extorsão, e o seu vazamento, uma punição.

Nas conclusões, os pesquisadores ainda ressaltam um problema que é ainda menos óbvio e não menos importante: a conduta de quem pratica esses tipos de crimes está atrelada à frustração com a ruptura dos papéis de gênero. "É um paradoxo: a mesma sociedade que incentiva a exposição dos corpos femininos julga e condena uma exposição considerada desviante dessas convenções, que são, aliás, pautadas pela desigualdade", diz Mariana.

Como nem todo mundo fala juridiquês fluente, ilustramos como diferentes crimes são praticados a partir do fenômeno do revenge porn, e como o Código Penal e legislações complementares podem ser acionados em favor das vítimas.

Crédito: Bárbara Scarambone

Crimes contra a honra

Injúria (artigo 140 do Código Penal): Para que se configure o crime de injúria, não é necessário que outras pessoas fiquem cientes das ofensas proferidas contra à vítima. Ele se refere à dignidade da pessoa, e não à sua reputação. Um dos exemplos que o livro traz é o cyberbullying, em que a interação ocorre somente entre a vítima e os agressores.

Difamação (art. 139 CP): No caso de difamação, diferente de injúria, o fato ofensivo deve chegar ao conhecimento de terceiros, e não só até à vítima. Os casos de disseminação de imagens íntimas (revenge porn, vazamento de nudes) se enquadram aqui.

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Crimes contra a liberdade pessoal

Ameaça (art. 147 CP): Ameaçar alguém de causar-lhe mal grave pode ser feito por meio de palavras escritas ou faladas, gestos ou qualquer outro meio simbólico. Aqui, a vítima vira refém das imagens íntimas, muitas vezes fazendo coisas que não quer, com medo que elas sejam divulgadas.

Extorsão (art. 158 CP): A extorsão acontece quando alguém é constrangido, mediante ameaça ou violência, com intuito de obter vantagem econômica. Os autores do crime de extorsão podem pedir dinheiro ou bens materiais em troca da não divulgação das imagens íntimas.

Crimes contra a liberdade sexual

Estupro (art. 213 CP): O estupro se caracteriza pelo ato de constranger alguém mediante violência ou grave ameaça, a praticar ato libidinoso. A vítima do estupro, no contexto em que estamos falando, pode ser obrigada a manter relações sexuais com quem ameaça a divulgar suas imagens íntimas.

Quando acionar a Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha pode ser mobilizada quando os casos de violência ocorrem no ambiente doméstico, familiar ou em relações íntimas ou de afeto, independentemente da coabitação. Ela age como um agravante de penas já existentes (cada crime prevê uma pena diferente) e também possibilita que medidas mais amplas de proteção à vítima sejam acionadas. Quando aplicada, a Lei Maria da Penha pode proibir que o autor do crime entre em contato com a vítima e seus familiares e frequente certos lugares, por exemplo.

Quando a vítima é menor de idade

No caso de menores de idade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é normalmente aplicado. Há regras específicas sobre a posse de material com conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes com o objetivo de combater a pedofilia online.

O artigo 241-B do ECA criminaliza as condutas de "adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente".

"O Corpo é o Código" está disponível em formato exclusivamente digital e para download gratuito (licenciado em Creative Commons). O livro traz ainda um modelo de carta para pedidos de remoção de conteúdos de nudez não consentida na internet e um compilado de links onde se pode pedir a remoção dessas imagens em diferentes sites e redes sociais.