A vida de quem avalia jogadores de futebol para os games
Que nota Ibrahimovic merece de agressividade? E o Neymar? Os olheiros do Football Manager nos explicam como fazem seus cálculos. Crédito: Arthur Porto/ VICE

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

A vida de quem avalia jogadores de futebol para os games

Que nota Neymar merece no quesito 'agressividade'? E o Ganso? Os olheiros do Football Manager nos explicam como fazem seus cálculos.

Em parceria com VICE Sports

É possível traduzir a genialidade Lionel Messi em números? Seus chutes precisos valem uma nota maior do que os tirambaços de Lukas Podolski? Qual o risco de somar atributos positivos de um jogador mediano e transformá-lo em um craque mentiroso? No mundo inteiro, centenas de pessoas trabalham (assalariados ou não) para avaliar os jogadores de futebol de carne e osso a fim de tornar o mais realista possível games de futebol como Fifa Soccer, o Pro Evolution Soccer e, principalmente, o Football Manager, o mais detalhado da categoria. Parece um serviço simples: é claro que o Neymar do Barcelona merece notas muito maiores do que o Paulo Henrique Ganso do São Paulo. Mas, quando você pensa nos detalhes que envolvem a análise objetiva de critérios subjetivos de um esporte tão apaixonante, a coisa fica complexa. E é sobre essas complicações que o programador Celso Fernando Jung, de 25 anos, se debruça quase todos os dias.

Publicidade

Às terças, quartas, quintas, sextas, sábados e domingos, ele assiste a jogos de futebol. Pode ser um Corinthians x Atlético Mineiro decisivo, mas também um interminável Coritiba x Avaí. Celso precisa reparar se o goleiro usa as mãos trocadas para defender chutes difíceis, se o zagueiro é rápido, se diante de um cruzamento não muito bem feito o atacante arrisca para o gol ou recomeça a jogada. O resultado de suas avaliações, ao longo de um ano inteiro, é traduzido em planilhas que seguem para os escritórios da produtora Sports Interactive, em Londres, a responsável pelo FM. É com base no trabalho de vários Celsos que entram no game novos talentos, como o Gabriel, do Santos, e relíquias como Andrea Pirlo são reavaliadas na medida em que envelhecem.

Sem os voluntários que se dispõem a trabalhar como olheiros, seria impossível monitorar a evolução e decadência dos milhares de jogadores de centenas de clubes, de mais de 50 países diferentes, que são recriados nos ambientes dos games. Para um colaborador das antigas, como Celso, que vive em Joaçaba, em Santa Catarina, é palmeirense e faz o trabalho desde 2009, chega um ponto em que a rotina fica mais simples. "O trabalho é uma constante, então a maioria dos jogadores já está pronta e são poucas as adaptações que têm que ser feitas ao longo da temporada", ele conta. "Presto mais atenção em jogadores que acabaram de sair da base, aí tem mais informações pra completar."

Publicidade

As informações mais importantes para prestar atenção são bem específicas. "Tento ver qual pé o jogador prefere usar, se o jogador gosta de chutar fora da área, se cobra falta com força ou com jeito, se tenta muito passes longos, se prefere passar em vez de chutar, se não se aventura em usar o pé mais fraco nas jogadas."

As notas para os atributos são marcadas jogo a jogo, mas o voluntário precisa ficar atento ao quadro geral. "O que temos que aprender a diferenciar é se é apenas uma boa ou má fase de um jogador ou se é algo constante. Se o Neymar passar 10 jogos sem fazer gol, seria errado o pesquisador diminuir a nota de finalização dele, porque ainda é o Neymar", explica. "Agora, se ele ficar uma temporada sem fazer gols e sendo preterido por outros jogadores, é hora de olhar melhor suas notas."

O Pro Evolution Soccer conta com uma empresa especializada que fornece os dados sobre jogadores brasileiros. Já o Fifa Soccer, assim como o Football Manager, também usa colaboradores, ainda que o foco seja um pouco mais voltado para a aparência dos jogadores e dos uniformes, a exemplo da escolha de munhequeiras, novas tatuagens, o uso de camisas de mangas compridas em dias de jogos no frio ou debaixo de chuva. O Football Manager, por outro lado, é tão preciso nos aspectos técnicos dos atletas que vem sendo usado em softwares de análise de atletas para times reais de futebol. São mais de 250 mil atletas na base de dados. Vários profissionais, de técnicos a cartolas, assumem usar o game para encontrar talentos perdidos e testar táticas. Até mesmo emissoras inglesas utilizam o software para analisar jogadores. "Acredito que todos os jogos usam mais ou menos os mesmos critérios de avaliação, já que todos procuram reproduzir a mesma coisa, embora alguns jogos possam ser mais ou menos conservadores na hora de decidir os atributos", avalia Paulo Freitas pesquisador-chefe do Football Manager no Brasil desde 2005.

Publicidade

"Lembro que o Rooney em 2003/ 2004 era horrível no Everton, mas ninguém lembrava disso, então ele praticamente não existia ali"

Carioca que vive no Rio de Janeiro, Paulo assiste a, em média, dez partidas por semana. Também coordena a equipe brasileira, formada por 25 pessoas espalhadas pelo país. A empresa usa pesquisadores totalmente dedicados para os times mais importantes, enquanto que outros cuidam de grupos de times – "clubes catarinenses, por exemplo", exemplifica Paulo. "Eles me enviam as alterações dos times que pesquisam". Pelo mundo, há outras 60 pessoas com o cargo de Paulo. Ele não diz quando recebe para a função, mas afirma que divide o tempo com seu emprego de advogado.

Já os colaboradores não recebem salário e são convocados na base da disposição. Se acompanham os jogos e têm bom conhecimento do esporte, possuem boas chances de integrar o time. Por mais que o trabalho seja traduzido em notas objetivas, o aspecto subjetivo do esporte ajuda a entender algumas diferenças cruciais entre os atletas de cada jogo. No PES, por exemplo, o zagueiro Dedé e o atacante D'Alessandro são mais bem cotados do que no Football Manager, que leva em consideração que Dedé vem de lesões e D'Ale não vem rendendo tudo o que seu talento permite – o mesmo vale para Giuliano, muito mais bem avaliado no Fifa Soccer do que no Football Manager.

Muitas vezes, o sistema matemático dos joguinhos não funciona, claro: em 2013, por exemplo, o PES elegeu Pablo Armero como o melhor lateral esquerdo do mundo! Por outro lado, na lista de melhores times brasileiros de 2015, o PES acertou: Corinthians em primeiro, Atlético Mineiro em segundo. Goiás e Vasco, que acabaram rebaixados para a série B, são os dois piores.

Publicidade

No caso do Football Manager, uma franquia que detalha aspectos técnicos há décadas (existe sob este nome desde 2005 e, antes disso, quando havia outra empresa no desenvolvimento do game, a Eidos, teve sua primeira versão lançada em 93 com o nome de Championship Manager), há incontáveis exemplos de jovens craques que não vingaram – ou que, no fim das contas, eram melhores do que as tabelas diziam. O caso recente mais engraçado foi quando, no começo do ano, o diretor do game, Miles Jacobson, afirmou ao jornal britânico Daily Mirror que havia se desculpado ao atacante Kane, principal jogador do Tottenham, por não ter dado boas notas ao jogador nas versões anteriores do jogo. "Lembro que o Rooney em 2003/ 2004 era horrível no Everton, mas ninguém lembrava disso, então ele praticamente não existia ali", diz Celso.

Mas nem é preciso dizer que os acertos são maiores do que os erros no FM. O empenho global para atualizar o futebol de cada país cria, a cada versão, um jogo cada vez mais realista. O processo para achar os melhores olheiros ajuda bastante. "Prefiro pecar pelo menos do que pelo mais. Sou mais precavido com os das bases. Não gosto de criar mitos", diz Celso. "Lulinha, do Corinthians, foi refletido com craque aos 17 anos nas versões anteriores. Ele ia pra seleção e tudo. Isso nunca ocorreu, foi um aprendizado pra todos."

Para trabalhar como olheiro, o interessado precisa entrar nos sites das produtoras e abrir um cadastro. Em geral, os voluntários começam avaliando poucos jogadores, por algumas partidas, para testar seu desempenho – não é fácil, afinal: não basta dar nota para a qualidade do passe longo, é preciso reparar na agressividade do jogador ou na capacidade mental de liderança quando o time está atrás no placar.

No caso do Fifa e do Football Manager, é comum que voluntários se tornem editores de dados e, assim, o hobby se torna emprego. Quem quer chegar lá precisa de duas características: dedicação e paciência para aguentar as muitas partidas horrendas que qualquer campeonato nacional com mais de 30 rodadas tem. E também é preciso imparcialidade para não puxar a brasa para a sardinha do seu time do coração. No caso do Celso, por exemplo, por mais que seu foco sejam os jogadores do futebol catarinense, ele chegou a revisar algumas informações de seu clube de coração, o Palmeiras. Ele garante que não há chance de clubismo durante o processo. "Temos um fórum de discussão interno. Algo exagerado ou pior a gente comenta", diz. "Verificamos bastante os números por sites como Footstats, o Goal, o próprio Cartola. Não há como ser exagerado ou corneteiro demais."

É muito mais difícil, ok, mas o impensável já aconteceu no Azerbaijão: um analista de dados para o Football Manager, o estudante Vugar Huseynzade, de apenas 21 anos, se mostrou tão bom no serviço que foi contratado como técnico de um time de futebol de verdade, o Baku. Quem sabe Celso ou outro brasileiro acabe não saindo do voluntarismo para um emprego real no futebol? A vida imita o jogo, afinal.