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Tecnologia

Como 180 Horas de Privação de Sono Afetam o Corpo Humano

"Quando alguém é proibido de dormir por tanto tempo ele se torna psicótico, com alucinações e perdas de funções cognitivas básicas."
​Crédito: Paco Burrola/Flickr

Uma das "técnicas avançadas de interrogatório" utilizada pela CIA e mencionada extensamente no relatório lançado ontem pelo Comitê de Inteligência do Senado é a privação de sono.

Segundo a síntese do rel​atório, a técnica de privação de sono envolve "manter os detentos acordados por até 180 horas seguidas, normalmente em posições exaustivas, e muitas vezes com as mãos algemadas acima de suas cabeças".

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Cento e oitenta horas equivalem a sete dias e meio, e o relatório aponta que a privação de sono era "frequentemente administrada" junto de tapas, nudez forçada e empurrões que jogavam os detentos contra a parede mais próxima — ou "emparedadas", se quisermos usar o termo da CIA.

Abu Hudhaifa, um dos prisioneiros mencionado no relatório, foi submetido a banhos gelados e 66 horas de privação de sono, antes de "ser liberado porque a CIA descobriu que ele provavelmente não era a pessoa que eles procuravam", de acordo com o relatório.

Imagem retirada da 16ª página do relatório

Já no Brasil, no ​relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade, o comitê criado para analisar os anos da ditadura no país, é possível encontrar referências ao uso de privação de sono em torturas:

Ainda que a Anistia Internacional e o Comitê Anti-Tortura afirmem que a privação de sono por longos períodos é cruel e ilegal, o relatório sugere que este método é visto como uma forma comum e eficaz de "destruir a vontade própria de um detento".

Eu entrei em contato com David M. Schnyer, professor da Universidade do Texas e psicólogo que publicou artigos sobre o impacto da privação de sono, para descobrir o que acontece quando alguém é forçado a ficar acordado por horas a fio.

Schnyer me contou que "quando alguém é proibido de dormir por tanto tempo ele se torna psicótico, com alucinações e perdas de funções cognitivas básicas".

Os sintomas nem demoram tanto para aparecer. No começo do ano, um grupo de pesquisadores alemães e ingleses descobriram que apenas 24 horas de privação de sono podem "levar pessoas saudáveis a apresentarem sintomas similares à da esquizofrenia."

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Após ficarem acordados a noite inteira, os objetos do estudo ficaram mais sensíveis à luz e à cores; apresentaram déficit de atenção, distorção da noção de tempo, dificuldade de reconhecer odores e até mesmo alterações visuais. De acordo com a síntese do estudo, "muitos daqueles que passaram a noite em claro tiveram a impressão de poder ler pensamentos, e notaram uma percepção corporal alterada" — mais uma vez, tudo isso ocorreu em apenas 24h de privação de sono.

Imagem retirada da 3ª página do relatório

Considerando que eles foram proibidos de dormir por seis dias e meio ou mais, os detidos pela CIA também apresentaram esses sintomas. "Pelos menos cinco dos prisioneiros tiveram alucinações perturbadoras durante a privação de sono, e, em pelos menos dois dos casos, a CIA prosseguiu com a tortura", afirma a síntese do relatório.

"É improvável que as pessoas não tenham dormido nem um pouco durante todo esse período", disse Schnyer. "Seria necessário monitorá-los durante 24h e acordá-los continuamente, especialmente se eles não estivessem cooperando. É mais provável que a CIA tenha dificultado o sono dos prisioneiros, mas eu desconfio que eles tenham cochilado algumas vezes, mesmo quando estavam em pé."

A CIA pode não ter sido capaz de manter alguém acordado por tanto tempo, e a maioria dos especialistas em sono não ousaria fazer esse tipo de coisa, mas um pesquisador intrépido decidiu se submeter voluntariamente a essa técnica específica de tortura.

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O período mais longo de privação de sono em um ambiente controlado foi de 11 dias. Em 1965, um estudante de 17 anos chamado Randy Garner ficou acordado por 252 horas para uma experiência de sua feira de ciências.

Durante sua jornada até o recorde, os olhos de Garner começaram a perder o foco. No segundo dia, ele apresentou dificuldade para assistir TV e parou de indentificar objetos com o tato, uma condição conhecida como astereognose. No terceiro dia, Garner ficou mal-humorado, perdeu grande parte da sua coordenação motora e passou a reclamar de uma "forte náusea".

No quarto dia, sua memória começou a falhar e ele ficou irritadiço; ele apresentou dificuldade de concentração, passou a ver uma névoa envolvendo os postes da rua e pensou que uma placa de trânsito era uma pessoa. Foi então que, de acordo com um artigo sobre a experiência de Garner, o jovem "imaginou que era um grande jogador negro de futebol americano, dando opiniões sobre sua habilidade e a raça negra".

É FÁCIL COMPREENDER PORQUE A CIA AFIRMA PUBLICAMENTE QUE ESSAS TÉCNICAS SÃO INÚTEIS

A falta de sono já foi ligada ao desenvolvimento de doenças crônicas e outros distúrbios, incluindo diabetes, depressão, obesidade e doenças cardiovasculares. Schnyer disse-me que a privação de sono traz consequências permanentes, já que ela "cria uma série de reações metabólicas, muitas delas ligadas ao estresse e portanto tóxicas para nosso cérebro".

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O exército dos EUA autorizou o uso da privação de sono por até 72 horas em um memorando lançado pelo Departamento de Defesa em 2002, uma regra que a CIA se permite ignorar. A própria agência já admitiu que a tortura não é um modo eficaz de conseguir informações, e o fato da agência ter admitido que torturou pessoas inocentes não ajuda muito.

É fácil compreender porque a CIA afirma publicamente que essas técnicas são inúteis. Outros estudos recentes sugerem que a privação de sono aumenta a suscetibilidade à memórias falsas e prejudicam a auto-percepção.

Arsala Khan sofreu alucinações perturbadores após 56 horas de privação de sono, depois das quais a CIA determinou que ele "não parece ser o alvo envolvido em… planos e atividades contra as forças e instalações americanas", como descrito na síntese do relatório.

Janat Gul também teve alucinações "assustadoras" após horas de privação de sono. Sobre o assunto, o líder do centro de detenção escreveu: "não há nenhuma prova conclusiva que nos permita continuar o emprisionamento de [Janat Gul] em um local como o [LOCAL DE DETENÇÃO CENSURADO]."

Tradução: Ananda Pieratti