​Carcinogênicos

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Tecnologia

​Carcinogênicos

Como todas minhas peripécias jornalísticas, o livro começou como um desafio vindo de meu editor.

O envio desta semana é sobre o futuro mundano que se desdobra diante de nossos olhos enquanto fumamos nossos cigarros eletrônicos sentados em nossas mesas, gerando conteúdo, atualizando nossos seguidores enquanto nos perdemos em filtros tão pequenos que a verdadeira ameaça e realidade do mundo escapa de nossa visão, até descobrirmos – tarde demais – que isto, literalmente, está nos envenenando.

— Os editores

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Como todas minhas peripécias jornalísticas, o livro começou como um desafio vindo de meu editor, confirmado pelas pesquisas e pré-compras de minha cada vez menor – porém fiel – massa de seguidores.

"Olha só, sabe aquela nova lista da Sociedade Americana do Câncer? Os verticais da FOX vão fazer uma grande –"

Corto ele no meio da frase com um gesto de minha mão, a ponta do cigarro eletrônico entre meus dedos, esperando ser tragado.

"Já consigo sentir o golpe aí." Traguei. Este novo sabor de framboesa mentolada artesanalmente gerava uma estranha névoa recíproca de meus tubos bronquiais em direção à mesa de Terry. Ele fazia aquela mesma cara que a Beyoncé em seu último clipe – um olhar sublime que ficava entre algo como "Alguém peidou" e "Sou extravagantemente rica e linda e sendo assim, não ligo" que, cristalizado como um sigilo infinito em formato GIF, dominava meu monofeed nas últimas doze horas. Terry se esticou para pegar seu desinfetante para as mãos, da marca Purell e com infusão de probióticos. Podia sentir seu desdém pelos perigos de nosso encontro anual em carne e osso.

"Bem, você vai ter que largar esse negócio." Terry olhava para meu cigarro eletrônico. Me recuperei da tosse a tempo de rir debochadamente e tragar mais uma vez. Terry tamborilava em sua mesa, me relembrando da quantidade insignificante de criptomoedas que ganhei com meu último livro – Pregado: Superando o Alcoolismo Com os Amish. O número refletia nos olhos sem rosto de Terry enquanto ele sussurrava, "O próximo livro tem que ser um sucesso. Precisamos resgatar nossa marca, certo? Senão seremos como Ahab e Ismael, nos afogando juntos".

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Engoli em seco. "Ismael sobrevive."

Terry jogou de escanteio minha fatia historicizada do feed de vendas da empresa e recostou-se.

"Não li."

No papel de cultivador de compartilhamentos trabalhando sob as fervorosas ambições de A.J. Jacobs, Timothy Ferris e da VICE, eu teria que aceitar a tarefa dada por meu editor, assim sendo, teria que reestruturar minha vida durante seis meses, transmitindo incansavelmente suas dificuldades e loucas ramificações, antes de entregar ao mundo disperso um conto digital que passou por cuidadosa curadoria deste "experimento" – completo com um final epifânico e ainda assim nada arriscado do tipo O que Eu, e Por Extensão: Você!, Aprendeu Com Tudo Isso. O mais importante, teria que fazê-lo pelo preço de um baqueadíssimo e velho Chevy Volt.

Enquanto Terry me conduzia rua abaixo, eu continuava repetindo para mim mesmo que escreveria um ótimo livro, um daqueles animais que se julgava estar em extinção, resplandecente em seu rigor e crítica; Marchei em direção a esta oportunidade de redenção ao passo em que Terry me tirava das terras congeladas da cosmópole e me pagava um café uma porçãozinha de croignets de chocolate de belga.

Abri a lista da Sociedade Americana do Câncer naquela tarde, e depois de botar pra dentro um espresso quádruplo, fui rolando a página. Sheila chegou no escritório, com um Zady suplicante e todo coberto atrás dela – "Mamãe: 'postors! 'postors!" – e disse, "Vamos ao subparque e depois no mercado. Quer alguma coisa?"

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Me virei, os dois dedos usados para rolar a página ainda contraindo no ar, e olhei para minha esposa. Ela tinha essa beleza que sempre estava ali quando me virava para ela. Uma graciosidade pós-cosméticos pela qual havíamos pago, de qualquer forma. Ela parecia cansada – nós dois sempre estávamos, mesmo com nossas dietas aquapônicas e estimulantes onipresentes, o recente jubileu dos regulamentos de luz e ruído da cidade não ajudavam em porra nenhuma – mas ela era paciente, comigo e com a criança, e por esse motivo eu lhe era imutavelmente grato. Tentei me comunicar com os olhos enquanto meus dedos moviam-se para cima e para baixo em minhas costas, e murmurei, "Cuidado com a luz UV lá fora – acabo de ler algo sobre uma mulher que foi queimada por uma série de luzes mal calibradas –"

Sheila assentiu com a cabeça e saiu. Ouvi Zady suplicar por uma caixa de Impostorz mais uma vez – eu sentia falta das maçãs Honey Crisp mais do que qualquer, mas ela não parecia se importar com o truque químico que aplicavam nas crianças – e então logo ouvi a porta da frente bater e travar. Me voltei para o tablet. Havia visto só um quinto da lista. Parei de prestar atenção e deixei que cada linha azul linkada borrasse, formando uma espécie de chuvinha, agora incerto de o que esta água faria crescer.

A cria que a Sociedade Americana do Câncer concebeu no útero falacioso do Big Data era monstruoso. Este, o primeiro produto da organização em um "amplo esforço para monitorar de divulgar todas as substâncias, ambientes e atividades correlacionadas com diagnósticos de câncer ou múltiplos cânceres", gritava e choramingava, um documento horrendo e rigoroso de tudo notavelmente humano. Citados como possivelmente malignos pela lista estava: EXPOSIÇÃO À LUZ DE LED (> 60 MINUTOS DIÁRIOS); INALAÇÃO DIÁRIA DE "CHEIROS RUINS" (>2HRS DIÁRIAS); TRABALHO NO SETOR DE SERVIÇOS (LEIA MAIS).E eu li mais, inserindo-me gradualmente em minha boca mais do que poderia mastigar.

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Agir de acordo com os termos com os quais havia concordado digitalmente no Escritório do Skype de Terry – algo como: "O CONTRATADO deverá tentar, de boa fé, evitar todas as 'substâncias, ambientes e atividades' documentados no APÊNDICE B" – seria impossível. O único jeito pelo qual poderia começar a cumprir a lista seria abordar um punhado dos riscos correlacionados por vez.

Fiz umas contas, chutando generosamente minha tolerância para a omissão e cheguei a um número. Se eu cortasse cinco itens carcinogênicos por semana (incluindo o Amoxystatrig – remédio controlado contra infecções hiperbacterianas, pressão sanguínea e disfunção erétil que tomava, via pílula laranja oblonga, toda noite), precisaria de 4695.2 semanas para completar tal façanha. Encostei a cabeça no vidro frio da minha mesa e fiquei sonhando acordado com formas de passar a perna nos responsáveis pelo meu seguro de vida. Observei a tela novamente e abri uma tabela. Depois de organizar todos os químicos, recalculei. Olhei para o resultado. Fiz cara feia, então dividi por cinquenta.

Seriam necessárias quarenta semanas, ou quase um ano. Muito mais do que trâmite de seis meses redutores de vida esperados.

Havia prometido Twitentrevistas ao Terry a cada três semanas.


A primeira semana foi surpreendentemente fácil. Consistiu basicamente em sair mentindo para todo mundo – incluindo aí meus queridos Seguidores e Assinantes – sobre todos os produtos químicos que Sheila, Zady e eu já consumíamos mesmo sem saber. Ser o objeto imaginado de muitos em um período no inferno ou purgatório parental parecia valer o início do projeto, e Sheila concordava, ou quem sabe resignava, de tudo aquilo.

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Certa noite, depois de colocar Zady para dormir após botar para tocar os sons feitos sob medida do Histórias para Dormir – "Seu filho adormecido em trinta minutos ou menos. Reconforto mais rápido por meio de compras no aplicativo" – flagrei Sheila lendo à luz de velas.

Ri, mas logo percebi o cigarro eletrônico em minhas mãos. O meti no bolso rapidamente; será que ela tinha percebido? Sheila sorria; ela viu. "Vem cá", disse. A luz da vela, a gentileza em sua voz, a falta dos trechos de filmes no Netflix adequados ao ambiente: essa era minha deixa. O divórico era iminente, ou então minha morte.

Então sentei ao seu lado no sofá e nos beijamos. E nos beijamos de novo, de um jeito que não fazíamos com ninguém desde, sei lá, o ensino médio? Começo do casamento? Era esquisito, e eu me sentia como um adolescente escravo de uma série de sinais químicos que não eram exatamente de tesão, mas estranhos e deliciosos. Rimos, rimos do nada, juntos. Sheila, com suas mãos sempre quentes de alguma forma, segurou meu rosto e disse "Você sabe que pode desistir disso".

Olhei para baixo. Meneei. Silêncio no cômodo, com exceção do umidificador justificando sua existência com silvos curtos.

"Você gosta da iluminação?", perguntei, mirando seu sorriso. Ela passou os olhos pela diminuta sala de estar. "Achei que podia entrar no clima. Se acostumar a ficar sem… Coisas". Ela apertou minha mão, dizendo aquilo que pra mim era o mais doloroso da forma mais benigna possível. Eu ri – benigna.

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"O quê?"

"Nada, só uma piada ruim." Mudei de lugar no sofá, o cigarro eletrônico se enfiando no meu traseiro.

Conversamos durante algumas horas, nos ligando de uma forma totalmente esquisita. Na maior parte do tempo ela levava Zady à escola com seu FaceTime ali no meu monofeed, eu no tablet, escrevendo rascunhos de merda totalmente hiperbólicos, postando trechos em 18 diferentes redes sociais que conhecia de forma mais íntima que nosso apartamento – mas esta ligação, com olhares e palavras saindo de nossos lábios, parecia forte e correta o suficiente para durar temporada atrás de temporada.

Antes de deitarmos, desliguei meu celular – apertar e segurar, deslizar, Você quer desligar TODAS as notificações? clicar em sim, inserir código de quatro dígitos, então verificação digital – pela primeira vez em anos.


Passaram-se dois meses e eu estava hesitante.

Havia cortado quase todos os químicos na lista. Milagrosamente, ou talvez naturalmente, minha pressão sanguínea e flora e fauna intestinal estavam melhores sem todas aquelas estatinas e o anti-hiperbacteriano. No finalzinho da primavera, abandonamos poderosos produtos de limpeza e entramos na onda do vinagre e óleo de sabugueiro. Éramos pungentes e terrosos e continuávamos juntos. Zady, é claro, nem ligava.

"O que é isso, papai?", ela perguntava.

"Ah, é um suco novo, Zade. Um suco novo de verdade"

Zady olhava a garrafa de vidro e seu líquido laranja.

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"Faz algum mal?", perguntou, franzindo a testa, encarando o suco e depois a mim.

Adicionei o custo mensal do suco – e o fato de ser embalado à frio e enviado – junto com o crédito de carbono obrigatório.

"Não faz mal nenhum, filhota".

Eu poderia ter escrito: passaram-se dois meses e eu estava hesitante, espiritual e financeiramente. Mas a cidade de hoje é uma catedral testificando um único corpo, separável somente por tergiversação.


"Como cê tá, brés?" Terry, em seu Escritório do Skype.

Por um instante, havia esquecido do termo. Daí sua origem e espalhamento voltaram com tudo – aquele clipe bobo ultracondensado com seções cônicas, bastões e joias do tamanho de arranha-céus – um meme, como tantos outros, o qual rezava para esquecer todas as noites.

"Bem, bem". Mordia a ponta de uma grafite que tive que comprar no eBay. Largar o cigarro eletrônico foi difícil, mas me arrependia mesmo de ter sacrificado o café. "Olha só, Terry: tenho dois minutos só aqui e então terei só 75 segundos por mídia para atualizar se quiser ficar abaixo do limite de ris-"

"Pare". Terry parecia impaciente, e não da forma como todos nós, com monofeeds a um toque de distância, ficamos impacientes ao fazer contato visual com outra pessoa. "O projeto precisa ser levemente modificado".

Mordi a ponta da grafite. O que isso significava? Eles conseguiram uns estagiários para cuidar das minhas redes sociais? Podia parar de usar um casaco de botão de lã virgem orgânica por cima de minhas roupas de baixo e meias esburacadas só pra entrar no Skype com meus fãs? Poderia trapacear ainda mais, talvez até mesmo ignorando aquele temido item: TEMPO SOZINHO (>3 HRS DIÁRIAS – LEIA MAIS)?

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E aí veio o soco no estômago.

Gaguejei: "Estou sendo substituído?" Em uma era em que um oceano sem-fim de freelancers está disposto a trabalhar por salários dignos de escravos (ou seja, nada) – alguns com público maior e que cresce mais rápido que a população de metrópoles do Séc. XIX – impulsionou a capacidade de tudo que é empresa de arrancar lucros durante o frear global e draconiano dos motivos por trás do lucro em si, era uma pergunta patética. Então perguntei de novo: "Eu estou sendo substituído, Terry?"

Esperei – mirando a tela, a imagem replicada de Terry, o nada. Me questionando: por que me angustiava a ideia de abandonar uma existência à la Santo Antônio, livre de tudo exceto minha esposa, filha, couve, e água fervida eletronicamente?

Terry respondeu, cortado brevemente por uma falha no stream, seus caninos brilhando por baixo de seu bigode: "Não, você não está sendo substituído. Seus seguidores querem reverter a premissa, só isso".

Meu escritório, um pequeno ponto em uma vasta rede, estava, de alguma forma, silencioso

Terry revirava uma gaveta. "Você estava evitando todas as coisas cancerosas, certo? Agora você só tem que… Abraçar aquilo tudo". Terry colocou nas bocas um cigarro eletrônico, sua ponta subitamente brilhando em vermelho-fogo.

E eu ri dele, que nem mais parecia ser uma pessoa: um monte de memes amontoados que não conseguia nem mesmo deixar de ser clichê.

Mirei a tela e pressionei com força o botão de ligar e desligar do tablet. Terry não pareceu perceber nada disso enquanto sua imagem borrava e desaparecia, restando uma calma escuridão lítica.


Este texto integra o T​erraform, nosso lar para a ficção futurista. Arte de Gustavo Torres.

Tradução: Thiago "Índio" Silva