As Cidades-Fantasmas Chinesas Não Estão Tão Mortas Assim

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As Cidades-Fantasmas Chinesas Não Estão Tão Mortas Assim

Ao contrário do que dizem por aí, tem muita gente morando pelas novas cidades chinesas. A questão é que falta uma década para os moradores da zona rural povoá-las por inteiro.

Dezenas de milhões de apartamentos vazios em cidades novinhas em folha, cinemas abandonados e parques silenciosos. As imagens das "cidades-fantasmas" chinesas se tornaram um tópico recorrente da mídia internacional. Mas o quão vazios são, de fato, esses ambientes?

O escritor norte-americano Wade Shepard foi atrás da resposta. Ele passou os últimos anos viajando por esses territórios para produzir seu novo livro Ghost Cities of China. No começo deste ano, Shepard foi a um evento lotado durante o Festival Literário da livraria Bookworm, em Pequim, para falar sobre seu projeto e, nos primeiros minutos, fez questão de dizer que o apelido que vemos por aí não é dos melhores.

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"O termo 'cidades-fantasmas' não é apropriado", disse Shepard. "Cidades-fantasmas são lugares que já estiveram vivos em algum momento e então morreram. Escrevo sobre locais pouco populados em que as casas ficam no escuro à noite."

Shepard comenta que, na verdade, a maior parte das cidades-fantasmas chinesas tem pessoas morando nelas. "Essas novas cidades pouco populosas são construídas por empreiteiras de luxo do mundo todo que estão construindo utopias urbanas por toda a China. Os residentes destas cidades vêm de vários locais. Alguns são pessoas interessadas em tendências que querem morar em uma cidade nova. Outros se mudaram de seus vilarejos natais. Vem muita gente do interior", disse.

"Nunca na minha vida tinha visto algo assim: um bairro novinho sem ninguém morando lá"

Até 2020, a China espera que 100 milhões de pessoas se mudem da zona rural para as cidades, o que seria a maior migração urbana da história. O empurrão em prol da urbanização é feito pelo governo chinês e faz parte da mudança na economia do país. O foco passará da exportação para a demanda doméstica. Novas cidades, com hospitais, estradas e centros esportivos, brotam por toda a nação.

O fascínio de Shepard pelas novas cidades chinesas começou há dez anos. "Vi uma 'cidade-fantasma' pela primeira vez em 2006, quando estudava perto de Hangzhou", disse. "Foi a cidadezinha de Tiantai. Entrei na rua errada depois de saltar do ônibus e esbarrei nessa parte nova da cidade sem ninguém. Nunca na minha vida tinha visto algo assim: um bairro novinho sem ninguém morando lá. Fiquei muito empolgado com aquilo. Meus professores depois me disseram que havia locais como esse por toda parte, não se impressionaram com nada. Mas fiquei com aquilo na cabeça. Bastava pegar qualquer ônibus e haveria uma nova cidade ou bairro em construção. Gostava de caminhar por essas áreas. Fui à Mongólia e esqueci delas por um tempo até voltar em 2012. Viajei e tentei entender o que eram estes locais. Eles são o novo panorama chinês."

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Shepard desbravou as novas regiões chinesas de bicicleta. "Meu objetivo era ir até lá e tentar fazer amizades. Um estrangeiro chegando por ali não é algo que se vê todo dia, então muitos querem saber o que você está fazendo. Não é difícil falar com as pessoas."

"As pessoas saem de uma estrutura de vila tradicional rumo a uma cultura de elevador"

Há um lado bom e um lado ruim da emergência das novas cidades chinesas. "Há pessoas felizes em irem morar ali. Como ganham um hukou urbano, sentem como se estivessem ascendendo."

Hukou é uma espécie de licença de residência urbana. Nas novas cidades chinesas, os moradores recebem uma licença diferente da do interior. O documento permite que eles trabalhem legalmente dentro das cidades e desfrutem de certos benefícios. Serviços de saúde, por exemplo, são melhores do que na zona rural. Para alguns idosos dessas regiões, mudar para a cidade pode salvar suas vidas.

O Ordos Museu, inaugurado em 2011. Crédito: Ma Yansong, Yosuke Hayano, Dang Qun/MAD Architects

Mas há um lado negativo nessa migração urbana, afirma Shepard. "Muitas pessoas saem de uma estrutura de vila tradicional, em que as pessoas criam conexões sociais diárias, onde perguntam uns aos outros o que farão hoje e o que vai ter pro jantar. Com esses prédios enormes, a estrutura muda; elas não fazem mais isso. É uma cultura de elevador. As pessoas vêm de tantos lugares diferentes que já não se conectam mais."

Algumas das pessoas que se mudam para a cidade se sentem como se tivessem perdido seu meio de vida. "São pessoas que moram nas colinas há milhares de anos. Assim que chegam nas cidades, veem-se às voltas com contas de água e luz. Têm que comprar coisas no mercado."

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"O bom comportamento é a resposta para que Ordos vire uma cidade civilizada"

As questões que acompanham as novas cidades da China também podem ser vistas em The Land of Many Palaces, novo documentário de Adam James e Song Ting. A obra se volta para Ordos (鄂尔多斯), uma cidade do século 21 nos desertos do interior mongol. Estima-se que a cidade tenha um sexto das reservas de carvão do país. Após a descoberta da riqueza, a região deixou de ser uma das mais pobres do país e saltou para uma das mais ricas.

A exploração do carvão criou muitos milionários que investiram em infraestrutura e no mercado imobiliário. O novo distrito da cidade, Kangbashi, surgiu no meio das areias desérticas e é fruto de tais investimentos. A obra se deu entre 2005 e 2010. Kangbashi conta com arranha-céus, estádios, teatro, museu e milhares de apartamentos. Está pronta para abrigar um milhão de futuros moradores.

O documentário começa com uma cena que mostra a Sra. Yuan, administradora da comunidade, guiando pessoas em suas novas casas. Algumas delas nem mesmo sabem como usar sanitários, fornos ou aquecedores modernos. A Sra. Yuan as ensina. O novo ambiente é um contraste gigantesco ao vilarejo próximo, em que um agricultor trabalha na terra em meio a um cenário de casas abandonadas. "Todo mundo se mudou pra cidade nova", diz. "No interior, dá pra viver meses sem gastar dinheiro."

The Land of Many Palaces mostra que se mudar para uma das 'cidades-fantasma' chinesas é uma questão de inversão de estilo de vida. Os agricultores têm que se acostumar a morar na cidade e a lidar com todas as coisas que vem junto disso. Funcionários da comunidade vão a locais públicos ensiná-los "como se tornar uma pessoa civilizada"; eles dizem às pessoas que o bom comportamento é a resposta para que Ordos vire uma cidade civilizada.

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"Se os empreiteiros da cidade nova precisarem das suas terras, tomarão-as de qualquer jeito"

Emprego é um problema sério nas novas cidades chinesas. Muitos agricultores têm ampla experiência em criar porcos e cultivar a terra, mas isso não vale nada no ambiente urbano onde se precisa mais de cabelereiros e vendedores em lojas. A falta de trabalho é um dos principais motivos pelos quais os agricultores hesitam em mudar para a cidade grande.

Trailer de The Land of Many Palaces, 2015.

Uma cena do documentário mostra uma vila em que moram apenas dois agricultores. O restante já foi para a cidade. A administradora da comunidade de Ordos visita ambos para convencê-los a trocarem suas casas de barro por um apartamento. Quando negam, ela diz: "Se os empreiteiros da cidade nova precisarem das suas terras, tomarão-as de qualquer jeito".

"Quando visitamos Ordo pela primeira vez em 2011, esperávamos encontrar uma cidade-fantasma. Em vez disso, encontramos um lugar que estava se transformando em uma cidade"

Após recente exibição do documentário em Amsterdã, Adam Smith descreveu como o projeto teve início. "Quando visitamos Ordo pela primeira vez em 2011, esperávamos encontrar uma cidade-fantasma. Em vez disso, encontramos um lugar que estava se transformando em uma cidade", falou.

Muitas das supostas cidades-fantasmas chinesas parecem sonhos ambiciosos que viraram pesadelos. "Quando demos início ao projeto, meio que estávamos doutrinados pelos relatos da mídia europeia e norte-americana sobre como este tipo de urbanização e construção de cidades de cima pra baixo é errado. Mas quanto mais ficávamos ali, mais começamos a pensar como as pessoas dali", disse Smith. "Ninguém parecia achar que havia algo de errado. Elas estavam animadas com o plano."

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Smith explica ainda que muita gente, ironicamente, foi levada das cidades ao campo durante a Revolução Cultural. Em muitas dessas regiões, o cultivo era complicado. Grande parte da população lutava para sobreviver. De certa forma, ser levado à cidade é, para muitos, como ser salvo. "Conhecemos pouquíssima gente, se é que teve alguma, que se opôs", afirma.

Por mais que as cidades-fantasmas sejam de interesse geral, quando elas se tornam populosas, caem no esquecimento da mídia. "Quando uma 'cidade-fantasma' ganha vida, mal ouvimos falar dela", escreveu Shepard. Ele cita alguns exemplos em um artigo recente: Dantu (Zhejiang), Wujin (Changzhou), e talvez aquela que seja a mais famosa, Pudong, distrito de Xangai.

"Nos últimos anos tenho caçado relatos de cidades-fantasmas pela China, mas raramente encontro uma merecedora do título. Por mais que a mídia internacional afirme que a China está construindo cidades para ninguém, muitas vezes encontro algo bem diferente ao chegar", escreveu Shepard.

No começo desse ano, os jornais Global Times e China Daily publicaram uma declaração do prefeito de Ordos na rede social Sina Weibo: "Não somos uma cidade-fantasma". No ano passado, 10.000 casas foram vendidas. Mas ainda assim, restam 34.000 residências vazias.

"Eles compram para vender, mas nenhum dos ricos mora ali", disse um internauta. "O prefeito só não quer que fique feio pra ele."

Outros internautas afirmaram gostar de Ordos. "A cidade é bonita, o ar é bom de se respirar", disse '392'. "Acabo de voltar de Ordos e não é ruim como a mídia diz", outro usuário escreveu. "A cidade é bem construída, o ar é bom e é segura."

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Outro usuário do Weibo elogiou a cidade quase vazia: "Finalmente um lugar na China que não está lotado ainda".

Talvez as "cidades-fantasmas" chinesas não sejam tão ruins ou fantasmagóricas, no final das contas. Só precisam de mais uma década para ganhar vida de verdade.

Uma versão deste artigo foi publicada originalmente no site What's On Weibo.

Manya Koetse é a editora-chefe do What's On Weibo, site que oferece informações culturais, históricas e políticas nas maiores redes sociais chinesas. Ela é especialista na China e pesquisadora de PhD em Relações Sino-Japonesas na Universidade de Leiden, na Holanda.

O banco de dados dos pesquisadores continha bilhões de pontos de dados localizacionais de 770 milhões de usuários do Baidu – a China tem uma população de 1.36 bilhões – coletados entre setembro de 2014 e abril de 2015. Os dados foram usados na criação de um mapa interativo das cidades-fantasmas chinesas.

Tradução: Thiago "Índio" Silva