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Tecnologia

As Artimanhas de Um Mestre Brasileiro da Micha

“A única coisa que te impede de abrir uma fechadura é entender como ela funciona. É a segurança por obscuridade”, teoriza Victor.
Um clipe, uma algema e muita prática e você pode bancar o MacGyver. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Victor tem um sobrenome digno de brasões, árvores genealógicas ramificadas e longas linhas hereditárias. Durante gerações, sua família guardou um cofre misterioso de segredo e conteúdo desconhecidos. Na semana passada o rapaz resolveu desvendar a herança. Ele confirmou a suspeita de que seu patrimônio não passava de um cubo de ferro vazio, mas não foi por isso que ele não me permitiu revelar seu sobrenome. Ele também confirmou que era capaz de abrir fechaduras sem usar chaves. Victor é um lockpicker.

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"A única coisa que te impede de abrir uma fechadura é entender como ela funciona. É a segurança por obscuridade", teoriza o jovem enquanto escolhe, como num pega-varetas, qual a ferramenta certa para o cadeado na sua mão esquerda. Com a mão direita, ele enfia uma barra chata de metal onde costumamos colocar a chave. "É a chave de tensão", explica. Com 10 centímetros e ponta curvada em 90 graus, ela faz uma pequena rotação na fechadura com a força do dedão da mesma mão que segura o cadeado.

Ainda resta um espaço vazio onde entraria a chave. Nele, entra um pedaço de metal menor que a chave empurrado pela mão direita. É o pick, ou micha. Ela tem uma ponta retorcida e uma base de plástico. Com a mão esquerda forçando a rotação da parte central do cadeado, Victor começa a cutucar o bicho por dentro com esse espeto que mais parece uma agulha de crochê. Sem dó, ele futuca, escuta, sobe e desce, dente a dente, clique a clique, clique-clique-clique, cliq-cliq-claque! Abriu.

Cada cadeado tem sua chave, mas se não tiver dá-se um jeito. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Essa é a principal técnica do lockpicking. Segundo Victor, a maioria das fechaduras funciona com o mesmo princípio. Um tubo, ou miolo, é atravessado transversalmente por quatro ou cinco tubos menores. Cada um deles tem um pino, um contra-pino e uma mola. Quando os pinos e contra-pinos de todos os tubos estão na mesma altura, o tubo principal não encontra obstáculos para girar em torno de seu eixo. "Cada sulco da chave define a altura em que ela empurra o pino. Pra girar o miolo ele tem de ter todos os pinos alinhados", me disse o Victor.

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No picking, cada um dos pinos é alinhado separadamente em um meticuloso trabalho que envolve tato, audição e paciência. Uma fechadura pode levar segundos, minutos ou muito mais tempo para ser aberta. "A primeira vez, eu abri um cadeado com um grampo de cabelo e uma chave de tensão que eu adaptei em casa", me falou o Victor. "Quando eu consegui, me deu uma sensação de poder e medo porque você pensa na quantidade de coisas que confia a uma fechadura."

São cinco anos desde que ele estreou nesse mundo. Hoje, o grampo de cabelo deu lugar a várias ferramentas. A maioria está disponível no galpão virtual chinês DealExtreme. "Com cinco dólares você compra um estojinho com tudo, é barato." Também há modelos mais caros, como a micha de titânio que sua namorada comprou por R$ 90 – um presente. Isso permite a Victor usar técnicas como o combing, em que uma haste em forma de pente empurra os pinos, e o raking, em que uma haste sinuosa é friccionada dentro da fechadura.

As ferramentas que o Victor usa. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Outras michas com pontas losangulares, triangulares ou redondas são usados nessas táticas. Já no bump key, uma chave é limada como um serrote na medida da chave original de um determinado cadeado. Ao ser inserido no miolo seguido de uma pequena porrada na base, o modelo genérico pode abrir várias fechaduras que sigam aquele molde. "Não é força, é jeito. Se você for ogro, você arranca o cadeado, pega um daqueles alicates", me contou o Victor enquanto eu parecia um primata com a língua de fora tentando abrir uma fechadura.

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Por alguma razão, comecei minha introdução no lockpicking com um par de algemas policiais que estava sobre a mesa. O Victor tinha me dito que ela funcionava como um cadeado mas, em vez de pinos, ela tem uma catraca por onde a haste que cerra o punho passa em sentido único. Isso dispensa a chave de tensão, então meti a micha entre a catraca e a haste. Cutuquei, busquei alguma resistência, empurrei e puxei. O estreito espaço que havia ali parecia gigante. Tentei por minutos. Tudo em vão. Apelei pra algema de sex shop. Consegui.

Ao menos de uma enrascada eu consigo me livrar, pensei. Aí percebi que o brinquedinho com o rosa felpudo tinha um botão do tipo anti-pânico – provavelmente para casais que se desentenderam no intercurso. Minha habilidade recém-adquirida foi pro saco ao mesmo tempo em que o Victor abria a algema de verdade com um clipe de papel. E ele chamou minha atenção para um agravante: "Essas algemas tem um pino [na base]. O policial empurra esse pino e trava a catraca, mas pelo que eu ouvi eles geralmente não fazem isso".

O Victor cortou esse cadeado para ficar mais fácil de entender como ele funciona. Crédito: Felipe Larozza/VICE

O Victor nunca precisou se livrar de uma situação dessas, mas o bom moço ensinou a sua namorada essa técnica. Segundo ele, houve poucas situações em que o lockpicking foi mais que passatempo. Uma vez ele precisou abrir o portão da sede antiga do seu clube hacker e outra vez ele teve de acessar o mesmo prédio por outra entrada, já que a fechadura da porta principal estava obstruída por uma chave quebrada. "Se você tiver esse pick e uma chave de tensão, você abre quase todos os cadeados", me disse ele.

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Ficou difícil acreditar que isso era tão fácil depois que tentei, embora fosse compreensível. Abrir fechaduras de maneira escusa é algo tão velho quanto cadeados, mas, diz a lenda, o primeiro encontro entre hackers e michas foi no Massachusetts Institute of Technology (MIT). Um manual intitulado Guia do MIT para Lockpicking leva a crer que a história é real. O livro abre da seguinte maneira: "O grande segredo do lockpicking é que é fácil. Qualquer um pode aprender como abrir fechaduras desse jeito".

Victor é um dos poucos lockpickers do Brasil. Ele ensina o que sabe durante encontros hackers na esperança de aumentar a comunidade por aqui. Nos Estados Unidos e na Europa existem grupos consolidados em lockpicking que espalham tutoriais e trocam informações pelo multidimensional mundo da internet. Victor deve um bocado do seu conhecimento a isso. É preciso prática, mas uma pesquisa no Google traz resultados como exibições de lockpickers famosos e até competições em eventos como a Defcon.

Uma tranca de cofre e uma algema. Crédito: Felipe Larozza/VICE

Como não se trata de uma atividade que rende uma grana, muito embora esteja no currículo dos chaveiros, o lockpicking atrai pouca gente aqui no Brasil. Pelo menos o Victor acredita nisso. Ele também lembra da questão judicial. Cada país trata a sua maneira a fabricação, o porte e o uso de michas. Na Hungria, elas são consideradas de uso militar. No Brasil, a lei prevê detenção e multa de "300 mil réis a três contos de réis". Também lê-se o termo gazua – isso deve fazer sentido para o Leonardinho de Memórias de Um Sargento de Milícias.

A primeira memória de Victor com lockpicking é mais recente. "Sempre lembro do jogo Splinter Cell. Você via a fechadura, tinha a chave de tensão e você mexia no pick." Ele também não se preocupa com a lei porque as regras do seu passatempo não permitem que cadeados usados por outras pessoas sejam violados. E Victor não está interessado em bancar o espião ou ladrão. "As pessoas confiam em fechaduras e chaves, mas não adianta fazer pavor. Pra um criminoso, é mais rápido arrancar um cadeado que ficar agachado tentando abrir o negócio."