Aproximação de Temer com Microsoft deixa em alerta movimento de software livre
Diante da polêmica, Ministério do Planejamento diz que “não há mudança" na política pública para o setor. Crédito: Anderson Riedel/ Flickr

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Tecnologia

Aproximação de Temer com Microsoft deixa em alerta movimento de software livre

Diante da polêmica, Ministério do Planejamento diz que “não há mudança" na política pública para o setor.

Santa Efigênia, Saara, Feira dos Importados. Não importa a metrópole, no Brasil sempre haverá uma multidão em volta de um sujeito sussurrando de soslaio nomes de programas de computador: "Windows! Photoshop! Office! Corel Draw!". Quando muitos brasileiros pensam em software livre, provavelmente esta seja a primeira imagem que venha à cabeça. Há também aqueles que, dotados de retidão moral, pensem em substituir seu próprio Windows por alguma versão de Linux. Por fim, há aqueles – e desconfio que seja a maioria – que não fazem a menor ideia do que seja um software livre. Hoje diferentes versões do Windows são responsáveis por mais de 90% do mercado, contra 5% do Mac OS X e apenas 2% do Linux.

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No Brasil, o software livre tem importância inversa ao seu desconhecimento pelo usuário final. Talvez por isso o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão tenha anunciado, sem alarde, a contratação de softwares e soluções da Microsoft para uso em órgãos do governo federal, no último dia 24 de outubro. O objetivo, segundo o governo Temer, é "padronizar" a tecnologia dos softwares utilizados pela administração pública federal e "evoluir as especificações técnicas dos softwares aplicativos a serem adquiridos, visando mantê-las alinhadas com o estágio mais avançado do mercado fornecedor".

Para um leigo, parece só mais um giro na roda da burocracia do governo com seus fornecedores. O significado dessa aquisição, porém, levantou a sobrancelha dos defensores dos softwares de código aberto: eles temem que, se concretizada, a compra seja o começo do fim da política de incentivo ao software livre que vinha sendo implementada pelo governo federal desde 2003.

"Todos os movimentos que o governo Temer fez até agora indicam que há uma reaproximação com fornecedores que nunca deixaram de ser presentes, mas que combatiam os poucos avanços do governo federal na política do software livre", diz Fabrício Solagna, membro da Associação Software Livre.Org e doutorando em governança da internet pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). "É um discurso bonito para dar passos para trás", afirma. Um abaixo-assinado contra a compra já foi divulgado e está circulando na rede.

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A implantação do software livre na administração pública federal foi uma marca das gestões do Partido dos Trabalhadores no Palácio do Planalto. Desde que Luiz Inácio Lula da Silva assumiu pela primeira vez a Presidência da República, mais de 150 órgãos de Estado já haviam implementado ou estavam estudando implementar soluções de software livre no seu dia a dia. O objetivo era economizar recursos públicos com o pagamento de licenças de uso (softwares livres costumam ser gratuitos) e permitir que o governo adaptasse o desenvolvimento dos programas, de código aberto ("open source"), às suas necessidades – o que não é permitido com softwares proprietários, como os da Microsoft, tidos como "fechados", inacessíveis para programadores que queiram aprimorá-los ou adaptá-los.

"A padronização se faz com padrões abertos – com software proprietário isso não ocorre em lugar nenhum do mundo. Está ocorrendo o contrário do que acontece em governos de vários lugares do planeta, e não falo de países como Rússia, China ou Venezuela", diz Solagna. "A Casa Branca acaba de abrir um repositório de códigos de vários softwares livres que eles já utilizam, e estabeleceram a meta de chegar a 20% de software livre no governo federal dos Estados Unidos", acrescenta.

Apesar da desconfiança, o governo Temer diz que a política de incentivo ao software livre segue inalterada.

A reportagem solicitou uma entrevista com Marcelo Pagotti, secretário de Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, órgão responsável pela publicação do Índice de Registro de Preços para a compra conjunta dos softwares da Microsoft. A pasta respondeu, por meio de nota, que "não há uma mudança na política pública de uso de software livre ou público". A resposta ainda diz que "esta compra conjunta é para atualização e ampliação das licenças já existentes e não para substituição de softwares livres. Lembrando que, para participar da aquisição conjunta, os órgãos ainda deverão justificar a necessidade, que será avaliada por técnicos da Secretaria de Tecnologia da Informação (STI)".

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"O processo para esta aquisição começou em maio de 2015, quando o ministério fez uma pesquisa com mais de 200 órgãos federais para verificar a necessidade de aquisição de soluções com licenciamento. Destes, 48 órgãos responderam, sendo que 20 incluíram necessidades para produtos da Microsoft", prossegue a nota. "O ministério realiza desde 2008 aquisições de Tecnologia da Informação por meio de aquisições conjuntas, que geram economia para os cofres públicos. É importante dizer ainda que o software livre continua sendo a primeira opção a ser considerada pela administração pública."

Preocupações com segurança e privacidade

O anúncio do Ministério do Planejamento ocorreu apenas cinco dias depois de Pagotti ter firmado uma carta de intenções com o Centro de Transparência da Microsoft, inaugurado em Brasília no dia 19 de outubro para "atender aos governos da América Latina e promover a segurança cibernética e a transparência no país". Políticos de vários Poderes prestigiaram a cerimônia – do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ao governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg (PSB), passando por Gilberto Kassab (PSD), Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. A iniciativa da Microsoft, disse Pagotti no evento, "vai diretamente ao encontro do que pensamos para estabelecer um governo digital".

A criação da unidade da Microsoft em Brasília foi negociada ainda pelo governo Dilma, conta Marcos Mazoni, diretor-presidente do Serpro (Serviço Federal de Processamento de Dados) de 2007 até a queda da presidenta Dilma Rousseff. O objetivo, diz, era "aumentar a sensação de segurança" do governo em relação ao software proprietário. "Eles queriam que o Serpro fosse hospedeiro do código deles, e eu neguei, porque aí nós estaríamos participando de um processo fechado – como você mantém sigilo se a ideia é não ter sigilo?", questiona.

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Já no governo Temer, o Ministério do Planejamento chegou a publicar uma nota sobre o lançamento do centro, intitulada "Governo e Microsoft unem esforços em favor da segurança cibernética".

"A padronização se faz com padrões abertos – com software proprietário não ocorre em lugar nenhum do mundo"

"Não faz sentido lógico isso", rebate Solagna. "O software livre é mais seguro porque ele é aberto e pode ser auditado por qualquer um", explica. "Com o centro, o objetivo da Microsoft é se aproximar da segurança do software livre, já que é impossível ser tão seguro quanto. Eles fizeram o centro para ajudar a dirimir essas dúvidas", pondera Mazoni.

Questionada a respeito, a pasta disse ter assinado "um acordo com o Inmetro em agosto deste ano para implantar o Programa Nacional de Certificação e Homologação de Ativos de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC). Com a medida, o governo federal somente fará a aquisição de produtos de TIC certificados por organismos acreditados pelo Instituto que sigam as regras estabelecidas pelo Sistema Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Sinmetro)".

O histórico recente de segurança da informação da Microsoft é alvo de duras críticas. Em 2013, quando Edward Snowden e o Wikileaks revelaram ao mundo que éramos (somos?) todos espionados pelo governo dos Estados Unidos, a Microsoft foi acusada de ter colaborado ativamente com a NSA (National Security Agency), órgão responsável por executar o monitoramento.

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Os documentos mostraram, dentre outras coisas, que a Microsoft ajudou a NSA a driblar a criptografia do Outlook.com para facilitar o trabalho de interceptação feito pela agência; que a Microsoft facilitou o acesso da NSA ao SkyDrive, seu serviço de armazenagem na nuvem; e que a NSA se vangloriou de ter triplicado a coleta de vídeos do Skype – apenas nove meses depois de o serviço ter sido comprado pela Microsoft. Após alguns meses, o governo da Alemanha alertou ainda os usuários do Windows 8 sobre potenciais riscos de privacidade causados pelo sistema operacional.

À época, a Microsoft se defendeu via comunicado. "Quando atualizamos ou fazemos upgrade dos nossos produtos, obrigações legais podem em algumas circunstâncias exigir que mantenhamos nossa capacidade de providenciar informações em resposta a um pedido da Justiça ou solicitação de segurança nacional", escreveram, acrescentando que a empresa não dá a nenhum governo "acesso direto" aos seus produtos. "Há aspectos deste debate que nós gostaríamos de poder debater mais livremente. É por isso que temos lutado por transparência adicional, que ajudaria todos a entender e discutir esses importantes problemas", afirmou a empresa.

O escândalo de espionagem – que, quando posto à tona, revelou que até o avião da presidenta Dilma Rousseff foi grampeado – resultou numa crise diplomática entre Brasil e Estados Unidos. "Dados pessoais de cidadãos foram indiscriminadamente objeto de interceptação. Informações empresariais – muitas vezes, de alto valor econômico e mesmo estratégico - estiveram na mira da espionagem", disse Dilma na ocasião, em discurso no plenário da ONU (Organização das Nações Unidas). "Pior ainda quando empresas privadas estão sustentando essa espionagem", afirmou.

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Após a divulgação do escândalo, a presidenta chegou a pedir aos Correios para desenvolver um sistema de email 100% nacional, mas a ideia não avançou. O governo brasileiro também passou a exigir, nos processos de compra, que até mesmo os softwares proprietários pudessem ser auditados como medida de segurança diante de novas tentativas de espionagem, explica Solagna. "O software livre também é menos suscetível às ameaças mais comuns do mercado, até pelo tanto de gente que trabalha para aprimorá-los; já os softwares proprietários têm muitos buracos abertos para invasões", diz.

À frente do Serpro, Mazoni foi responsável pela criação do Expresso, ferramenta de e-mail de código aberto do governo federal. "Fizemos uma análise de vulnerabilidade com 11 universidades federais. Isso restringe o software proprietário porque com ele não temos como fazer esse tipo de análise", diz.

"Em muitos sistemas e locais o uso do software livre já está consolidado. Ninguém vai mandar tirar 7 mil estações de trabalho do Serpro com 12 anos de Linux, nem os funcionários vão aceitar"

"Em 12 anos, não tivemos um caso sequer de vírus se espalhando nas estações de trabalho do Serpro, que roda com 7000 estações de trabalho GNU/Linux", diz Deivi Kuhn, servidor concursado do órgão e ex-secretário-executivo do CISL (Comitê Técnico de Implementação do Software Livre) nos governos Lula e Dilma, onde fazia a ponte entre as demandas de programas por parte dos órgãos públicos e sua implementação.

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A reportagem questionou a Microsoft sobre as vantagens dos softwares proprietários da empresa em relação ao software livre, estimativas de custos, relacionamento com o governo federal e sobre como seus produtos poderiam contribuir para a soberania das informações do governo brasileiro. "As perguntas devem ser encaminhadas ao Ministério do Planejamento", respondeu a empresa, acrescentando que "a relação da Microsoft com o software livre mudou e ela é hoje uma empresa totalmente aberta e integrada a outras plataformas".

E a economia de recursos em tempos de corte de gastos?

Desde 2003, a administração pública federal economizou aos brasileiros mais de R$ 1 bilhão substituindo softwares proprietários por outros de código aberto, estima Kuhn, ex-secretário-executivo do CISL. Em 2010, a última estimativa oficial disponível dizia que, entre 2003 e 2010, mais de R$ 500 milhões haviam sido economizados com o uso de software livre. Questionado, o Ministério do Planejamento não soube precisar os gastos com os dois tipos de aplicativos.

Na Europa, um paper apresentado pelo pesquisador italiano Carlo Daffara no Open Forum Academy, instituição pró-software livre, estimou que o open source contribui anualmente com ‎€ 450 bilhões para a economia de todo o continente, considerando não só a redução, mas também custos de manutenção menores e reinvestimento dos valores economizados em produtividade e eficiência.

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O mercado brasileiro de open source movimentou US$ 1,4 bilhão em 2015, segundo estudo da ABES (Associação de Empresas Brasileiras de Software). Desse total, 57,3% são movimentados por compras governamentais. O documento prevê que, em 2016, o mercado de TIC (tecnologias da informação e comunicação) terá crescimento de 2,6% no Brasil.

Passado, presente e futuro do software livre no Brasil

Mazoni resume a visão das gestões Lula e Dilma para o setor. "A política de software livre servia para desenvolver conhecimento brasileiro, e não só para sermos meros compradores de produtos feitos nos 5 países mais ricos do mundo", explica. "O que é lamentável é que, com essa nova política, nós deixamos de ser um país com projeto nacional e passamos a ser um país dependente".

A nuvem do Serpro foi feita por programadores brasileiros em Curitiba. Só ela gerou uma economia de R$ 20 milhões por ano, segundo Mazoni. "Isso desenvolve o conhecimento local, porque são brasileiros que dominam a tecnologia. O programa distribuído aos contribuintes do Imposto de Renda, por exemplo, é feito em software livre", diz. "Não é uma questão de qualidade do produto, software proprietário também tem muitas coisas boas; a questão é que a gente coloca nas nossas mãos o poder de decidir sobre o nosso futuro. Temos inteligência, temos que liderar pelo conhecimento", afirma.

"O mercado de software livre no Brasil é composto sobretudo por micro e pequenas empresas nacionais sem poder financeiro", explica Kuhn. "Já o mercado proprietário é super concentrado em poucas transnacionais com muito poder econômico", diz o especialista.

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"Hoje o governo não tem um centro que incentive o software livre. Com o golpe, o Ministério do Planejamento parou de atuar mesmo que minimamente na questão.

"No Governo Federal há casos de sucesso de open source em muitos órgãos, como Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), ITI (Instituto Nacional de Tecnologia da Informação), ministérios da Cultura, Desenvolvimento Agrário e Desenvolvimento Social, Cobra Tecnologia (atual BB Tecnologia e Serviços) e Serpro, dentre outros", diz Kuhn. "Neles, temos inúmeros softwares livres, mais do eu poderia enumerar. Mas dá para dizer que a maior parte das aplicações é em servidores de rede que rodam plataformas com Linux, Apache, Jboss, e parte considerável dos banco de dados com PostgreSQL e outros", explica.

Para Solagna, o software livre "teria de ter avançado muito mais do que avançou" nos governos Lula e Dilma. "O open source nunca chegou a ameaçar grandes estruturas, grandes editais" diz. O governo federal, acrescenta Mazoni, "foi muito livre" na utilização de software de código aberto. "Não houve restrição de compra de software proprietário", afirma. "Se precisar pagar uma licença, tudo bem – ninguém defende pirataria. Mas nós temos capacidade de fazer."

Um dos desafios nesse processo foi confrontar comportamentos enraizados. "Você mexe com uma cultura organizacional muito forte, a secretária que gosta de fazer planilhas no Excel. E há entraves jurídicos também em alguns lugares. A pessoa diz 'não pode abrir uma licitação para contratar software livre'. Na verdade, pode, mas às vezes se colocam esses entraves e as coisas não avançam", afirma Solagna. "Quando se percebeu que brigar com a licença de software na ponta, com a secretária que fazia relatório no Word, que a economia disso era pequena…. Lógico que tem trocar, mas começar por aí dava muito trabalho e pouco resultado", explica. "Essa lógica foi se alterando, passando a priorizar a migração em bancos de dados, servidores de hospedagem, serviços de base. Esse foi talvez o grande acerto para o sucesso do software livre no governo federal", complementa. Para o especialista, quando o Ministério do Planejamento passou a intervir ativamente nessa política, a promoção do software livre ficou mais horizontal. "Para o gestor ficou mais fácil, porque ele viu que estaria respaldado juridicamente."

"Nos mandatos da presidenta Dilma houve um arrefecimento das políticas de software livre sobretudo porque pessoas-chave foram deslocadas, e não havia uma leva de novos programas na área", diz Solagna. Deivi Kuhn faz análise semelhante. "No governo Dilma, houve uma continuidade na condução geral da política, mas um enfraquecimento com a composição mais conservadora na montagem do governo", afirma.

"O Comitê Técnico de Implementação do Software Livre foi encerrado em 2015 pelo então secretário-executivo do Ministério do Planejamento (Dyogo Oliveira), que hoje é o ministro", diz Mazoni. "Hoje o governo não tem um centro que incentive o software livre. Com o golpe, o Ministério do Planejamento parou de atuar mesmo que minimamente na questão. O grupo interministerial de auditoria de software para proteção da segurança nacional simplesmente parou de se reunir", critica Kuhn.

Um estudo encomendado em 2007 pela Comissão Europeia a pesquisadores da Universidade de Maastricht, na Holanda, e da Universidade das Nações Unidas afirmou que softwares de código aberto são "fundamentais para a competitividade de TI" da Europa. "Dada a histórica menor capacidade da Europa em criar novos negócios de software na comparação com os EUA, devido à restrição de capitais de risco e de tolerância ao risco, a alta proporção de desenvolvedores europeus de software livre cria oportunidade única para que a Europa se torne a mais competitiva economia do conhecimento até 2010", afirma o estudo.

"Eu não acho que a Microsoft esteja preocupada com o Open Office", avalia Solagna. "O que ela quer começar a pautar é a política de aquisição de softwares. Eles querem começar a influenciar no pregão e na ata de registro de preços porque são mecanismos que facilitam a compra por parte de vários órgãos de uma só vez. Essa tentativa acontecia também no segundo mandato da Dilma. Eles querem começar a orientar os novos gestores".

Ainda que haja uma política deliberada nesse sentido, acabar com o software livre na administração pública não parece tão simples. "Em muitos sistemas e locais o uso do software livre já está consolidado. Ninguém vai mandar tirar 7 mil estações de trabalho do Serpro com 12 anos de Linux, nem os funcionários vão aceitar", diz Kuhn. "Mas em outros lugares, se não houver gestão e apoio, podemos ter uma reversão", afirma.