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Tecnologia

O Uber e os Taxistas Brasileiros Estão No Meio de Uma Guerra Fria

A crescente startup norte-americana chega ao Brasil prometendo mudar a mobilidade das capitais brasileiras, mas antes precisa mudar a legislação.
Tem muito carro pra pouco espaço. Crédito: Zé Carlos Barretta/Flickr

Fiz as contas e deu que percorri 60 km pra fazer essa matéria. No ônibus eu tive que desempenhar a coreografia clássica no apertado cenário de mochilas, carteiras, bancos e pessoas. No táxi me coube anotar algumas informações em um papel de boleto ou descolar a grana do taxista. E usando o Uber, nem isso. Bastaram alguns toques no smartphone para que um luxuoso carro preto de vidros escuros surgisse na rua sob a direção de um motorista engravatado. Um pacote vendido como experiência para clientes, trunfo para investidores e ataque feroz para taxistas em cada uma dos países que o Uber chega — inclusive no Brasil.

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"Não somos uma empresa de caronas pagas", me disse Guilherme Telles, como se quisesse apagar um erro comum. Foi com essa declaração que o jovem chefe de operações da companhia em São Paulo me recebeu em seu escritório. Com as mangas da camisa levantadas e discurso apaixonado no tom do Vale do Silício, o rapaz conversou comigo sobre a ferramenta que, segundo ele, pode solucionar uma das maiores tretas da capital paulista: a mobilidade. "A gente tem a tecnologia, os recursos e as pessoas certas para esse problema."

Segundo o  último levantamento do metrô, São Paulo tem uma frota de 4,2 milhões de carros — um para cada quatro habitantes da região metropolitana. O porém: 70% das viagens realizadas por esses veículos são apenas com o motorista a bordo. Nos últimos cinquenta anos, a cidade virou um congestionamento paulatino. "A tecnologia conseguiu resolver nossos problemas, mas no trânsito isso está lento. Faixas de ônibus, obras e rodízio são soluções paliativas. A solução definitiva é trazer tecnologia", me disse o Guilherme.

De acordo com ele, o Uber Black seria o primeiro passo dessa onírica cidade com menos carros exclusivos ou parados. Outros estágios viriam com o crescimento da plataforma, como já ocorre em alguns dos 45 países onde a empresa atua. "Primeiro lançamos o serviço premium, o Black, depois lançamos o Uber X, que é mais barato. O próximo passo foi o Uber Pool [para compartilhamento de carros]. E se a gente usasse isso para entregar comida? É o Uber Fresh. Imagina esse serviço todo com carros que se dirigem sozinhos?", divaga.

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A tecnologia conseguiu resolver nossos problemas, mas no trânsito isso está lento

No Brasil, a única opção disponível é o Uber Black no Rio de Janeiro e em São Paulo. O aplicativo estreou no país em meados de junho, tempo mais do que suficiente para que eu bancasse o patrão com um dos motoristas do Uber. Além de se apresentarem na estica com um belo sedã, eles geralmente abrem portas, oferecem água gelada engarrafada e utilizam GPS. À exceção desse detalhe, não estava acostumado com essa mordomia. E ser chamado de senhor durante a conversa típica entre piloto e passageiro?

Quem dirige pelo Uber sabe que o serviço apurado é imprescindível para se manter no cargo. Ao fim de cada viagem o motorista recebe uma nota do passageiro e o corte para permanecer na plataforma é alto. "[O motorista] tem que ter uma avaliação de pelo menos 4,6 estrelas de 5, isto é, 92%. Eu tiro [do serviço] quem estiver abaixo de 4,6. O segredo é: motorista feliz, usuário feliz", me contou o Guilherme. Isso me levou a adaptar o dilema Tostines: os motoristas são simpáticos porque querem tirar notas boas ou tiram notas boas porque são simpáticos? Bem, em se tratando de dinheiro os dois motivos valem.

O pagamento de cada viagem é feito diretamente no cartão de crédito do passageiro cadastrado no serviço. A tarifa do Uber é a soma dos seguintes itens: quantidade de minutos da viagem multiplicada por R$ 0,42, quilometragem percorrida multiplicada por R$ 2,42 e uma taxa inicial R$ 5. Desse valor, 20% vai aos cofres do Uber e o restante vai pro bolso do motorista. Esse é um dos poucos vínculos entre os dois lados. O carro e um seguro que cubra acidentes pessoais de passageiros pertencem a quem está ao volante. O serviço não tem nenhum contrato com os motoristas.

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"O Uber é uma plataforma de tecnologia que conecta passageiros a motoristas", sentenciou Guilherme. Esse papo não barrou alguns motoristas norte-americanos de se manifestarem contra as políticas tarifárias da empresa. Na Califórnia, há uma  espécie de sindicato voltado a essa nova classe que batalha por direitos trabalhistas. Segundo um motorista com quem conversei, aqui no Brasil as operações recentes da empresa contam com apenas 300 motoristas (algo que a empresa não confirma) e eles não parecem dispostos a confrontar quem dirige o Uber. Já não dá pra dizer o mesmo quanto aos taxistas.

"Não vai haver nenhum tipo de facilitação para o trabalho do Uber aqui. A atividade é completamente ilegal", foi o que me disse o Antônio Donizeti. Ele é assessor jurídico do Departamento de Transportes Públicos de São Paulo, o DTP, responsável pela gestão dos táxis na cidade, entre outras funções. Conversei com o bacharel sentado a uma opulenta mesa de madeira na nem tão opulenta sede do órgão — um prédio no Brás onde centenas de taxistas diariamente se apinham à espera de documentos, alvarás, carimbos, burocracias e conversas sobre política.

"O Uber infringe a lei municipal 7.329 que regula através de uma autorização quais profissionais podem executar a atividade de transporte remunerado na cidade de São Paulo", afirmou. Esse dispositivo enquadra os taxistas sob uma série de normas: a CNH específica do Detran, que prevê exames de condução do veículo e avaliações psicológicas; o cadastro no DTP, que inclui um curso de 15 dias; e, por fim, o alvará de estacionamento, que permite ao motorista utilizar um carro para atividades econômicas.

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Não vai haver nenhum tipo de facilitação para o trabalho do Uber aqui. A atividade é completamente ilegal.

Atualmente, há cerca de 70 mil taxistas habilitados em São Paulo, quase o dobro dos 34 mil carros certificados com o alvará do DTP. "O carro só é certificado se estiver na categoria aluguel. E ele tem que passar por vistoria técnica. O Uber não tem nada disso", disse Donizeti. O Guilherme, por outro lado, afirmou que o Uber faz um treinamento de quatro horas com cada um dos seus motoristas e que os carros aceitos na plataforma também são verificados. "A gente não quer carro velho na rua: tem que ser de 2010 pra cima", disse ele.

Com placas cinzas em vez de placas vermelhas, próprias para a categoria de aluguel, os carros do Uber já estão no radar da fiscalização do DTP. Desde que a companhia chegou ao país, três veículos cadastrados na plataforma foram apreendidos e seus motoristas multados. Na sede do DTP, o Motherboard teve acesso aos autos dos casos em que se lê o motivo do flagrante: efetuar transporte de passageiros sem que o veículo esteja autorizado para esse fim em desacordo com a lei municipal de 1966.

"Essa lei aplica multa de R$ 1.800. A liberação de cada um desses veículos custou cerca de R$ 2.900 ao motorista com apenas dois dias no pátio do DTP", disse o Donizeti. O assessor jurídico vai além. "Ele pode tomar uma multa de trânsito também de acordo com o artigo 231 do Código Brasileiro de Trânsito. Se a fiscalização pegar o veículo e chamar a PM, o motorista pode tomar multa de trânsito com infração média, isto é, 4 pontos. O Sindicato dos Taxistas Autônomos pediu providências. A nossa fiscalização está atenta."

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Frota de carros do Uber nos EUA. Crédito: Uber

As questões legais, os casos de apreensão e a análise jurídica do Donizeti estão anexados ao processo movido pelo próprio órgão contra o Uber, aberto no dia 15 de agosto. Ainda em caráter administrativo, a ação notificou o Google e a Apple para que retirassem do ar o aplicativo para download justificando ilegalidade nas operações. Donizeti disse que o próximo a ser notificado é o próprio Uber. Caso as exigências do DTP não sejam atendidas, o caso vai para a justiça. "Se eles continuarem operando, nós encaminharemos o processo para a Procuradoria Geral do Município", pontua o representante do departamento.

O Donizeti também disse que o Uber nunca procurou o DTP ou a Secretaria de Transportes. Tampouco sabe de algum contato feito na prefeitura de São Paulo. Já o Guilherme afirmou que sua companhia tem buscado conversar com os homens da lei. "O Uber tem uma postura pró-regulação. A gente já está em contato com legisladores do Brasil inteiro pra mostrar que é um serviço em que os passageiros estão contentes, os motoristas estão contentes e nosso processo é rigoroso."

Para além de São Paulo ou Rio de Janeiro — onde vigora uma lei municipal similar à capital paulista —, as preocupações do Uber são legítimas em todo o território porque a lei federal 12.468 também pode barrar a atuação da empresa no Brasil. Ela regulamenta a profissão de taxista no Brasil, como lembrou o André de Oliveira. Candidato a deputado federal pelo estado do Rio de Janeiro, o "André do Táxi" conversou comigo sobre a vinda do Uber ao país e, como era de se esperar, ele não está muito contente.

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"Nos últimos anos a gente não tinha percebido baixa entre agosto e setembro, mas esse ano, bem na chegada do Uber, voltou a despencar. É uma concorrência desleal", me disse ele. Antes disso, no começo de junho, o André e cerca de 300 taxistas realizaram uma carreata contra o Uber que trombou dois veículos a serviço do aplicativo. "Chamamos a polícia e os passageiros foram conduzidos a táxis e os motoristas foram a delegacia." Ele também disse que a Secretaria de Transportes do Rio de Janeiro encaminhou uma denúncia para a Delegacia de Repressão aos Crimes Informáticos contra a companhia.

André não usa o Uber, mas usa outros aplicativos que conectam passageiros a motoristas como o 99Taxi ou EasyTaxi. "Esse tipo de aplicativo continua dentro do mesmo segmento. Ninguém deixa de pegar táxi. Isso não interferiu. Muito pelo contrario, até contribuiu", afirmou ele. Em São Paulo, o pessoal do DTP também não tem problemas com esse esquema. "Esses aplicativos operam com táxis registrados e vistoriados pelo DTP. É legal. Não temos nada contra a operação desses aplicativos", me disse o Donizeti.

Chamamos a polícia e os passageiros foram conduzidos a táxis e os motoristas foram a delegacia.

As cooperativas de táxi, por outro lado, não gostaram muito desse sistema quando ele começou a pintar no país, mas tanto o André quanto o Donizeti não acreditam que essa história se repita para o Uber — com os taxistas no lugar de conservadores. "As cooperativas se adaptaram, mas o Uber não é uma questão de adaptação. Esse serviço choca diretamente com a atividade do taxista, uma atividade econômica que ele desenvolve. Prejudica a categoria economicamente", disse o representante do DTP.

Guilherme não acredita que o serviço do Uber seja uma concorrência aos taxistas. Ele também acredita que há um desencontro entre as leis e o serviço oferecido pela empresa. "A legislação não é feita para barrar o progresso, mas para apoiá-lo. Acho que é assim que as coisas mudam, mas mudança é algo difícil. É normal que os reguladores tentem encaixar o Uber dentro de uma lei que já existe. O nosso trabalho é educar, explicar o que é o Uber e trabalhar junto com eles para atualizar ou criar uma regulação específica que controle essa tecnologia que já está no mundo inteiro."

Enquanto essa Guerra Fria nos transportes se instaura em São Paulo e Rio de Janeiro, Guilherme pensa na expansão do serviço no Brasil. Belo Horizonte é a mais nova empreitada do Uber que, no país, também encontra dificuldades no meio essencial de comunicação entre seus clientes e seus motoristas. "Nosso maior problema é a rede de celular. E aqui a gente configurou a transação do pedido para ser mais devagar que em outros lugares do mundo", me disse ele.

Nem o sinal, nem a legislação, nem o Donizeti, nem o André: ninguém parece intimidar o Uber. "Não existe nada no Brasil que seja diferente de tudo que a gente já viu", afirmou o diretor paulistano. Atualmente, o Uber está avaliado em US$ 18,2 bilhões, o melhor índice desde o Google em 2001. Não seria de se espantar se eles dobrassem a legislação ou até implantassem um serviço de helicópteros, como ouvi ao conversar com um motorista e como ocorreu no Rio de Janeiro no dia 12 de julho. Guilherme joga alto. "Meu objetivo é mudar a mobilidade. É uma tarefa difícil, mas é viável."