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Tecnologia

​A Tecnologia Não É Projetada para Mulheres

Se você é mulher com um problema de coração, melhor não contar com a tecnologia pra te salvar, pelo menos por enquanto.
Crédito: Shutterstock

Se você é um cara com um problema de coração, então graças aos avanços da tecnologia na medicina, o futuro parece promissor. Se você é uma mulher com um problema de coração, talvez você tenha que esperar mais um pouco.

Recentemente, o futurista Zoltan Istvan escreveu uma artigo para o Motherboard sobre a animadora perspectiva de implantes de coração e outros estilos transhumanistas de consertar a saúde dos outros. Com o avanço da tecnologia, nós teremos mais e mais soluções para condições que antes eram fatais. Mas elas não são igualmente acessíveis a todos.

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Muito tem sido escrito sobre a desigualdade que conjuntamente cresce devido aos custos proibitivos dos dispositivos de melhoria de vida, mas a tecnologia pode discriminar em outros níveis também. Quando eu olhei para além do coração sobre o qual Istvan escreveu, feito pela empresa francesa Carmat, eu me deparei com essa espantosa realidade: enquanto esse dispositivo revolucionário serve para 86% dos homens, serve apenas para 20% das mulheres.

A enorme discrepância se resume a uma restrição física básica: mulheres são geralmente menores do que os homens. Caroline Carmagnol, uma representante da Carmat, me disse por email que "o coração artificial tem dimensões fixas e a cavidade torácica dos homens tem um pouco mais de espaço para receber adequadamente o dispositivo. Por exemplo, em nossos dados, nós descobrimos que a distância interna da espinha (costas) para o esterno (frente), que é fundamental para receber o dispositivo, é 2,3 centímetros menor em uma mulher comparado a um homem."

Ela confirmou que a empresa não está trabalhando em um modelo menor, algo que "implicaria um investimento significativo e recursos ao longe de vários anos".

No caso do coração artificial, os homens são normalmente mais afetados por falhas no coração e portanto mais propensos a precisar do dispositivo. Claro que é fantástico que eles estejam tendo acesso a esse produto com potencial de salvar vidas. Mas doenças do coração ainda estão liderando as causas de mortes de mulheres nos EUA, então há uma clara demanda por uma versão feminina equivalente do dispositivo.

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Em alguns casos, fazer um dispositivo menor requer necessariamente uma espera por avanços tecnológicos; apenas pense em como os smartphones diminuíram com o passar dos anos com o refinamento da tecnologia (antes que os phablets os levassem a outra direção). Mas especialmente quando se trata de dispositivos implantados no corpo, isso tem um impacto desproporcional em pessoas de estatura menor – o que significa que as mulheres são mais deixadas de lado.

Corações artificiais são um exemplo impressionante disso, e o modelo da Carmat não é o único que favorece pacientes homens. Por exemplo, o coração artificial da SynCardia – usado temporariamente antes de um transplante em um paciente com um certo tipo de doença – foi aprovado pelo FDA (Administração de Alimentos e Drogas dos EUA) em 2004 e é "projetado para uso em pacientes com uma superfície corporal de 1,7m² ou maior," o que a companhia descreve como adequado para uma "maioria de homens e algumas mulheres".

O SynCardia fez uma versão menor, que diz ser adequada para "muitas mulheres e adolescentes," mas só foi aprovada pelo FDA em 2013 – quase uma década depois do projeto original.

MESMO QUANDO OS MATERIAIS ESTIVEREM DISPONÍVEIS, A TECNOLOGIA É CLARAMENTE PROJETADA PARA HOMENS. O RESULTADO DESSA VARIEDADE VAI DE INTENSAMENTE IRRITANTE PARA FRANCAMENTE EXCLUDENTE.

Ninguém pode fazer nada sobre o fato de os corpos das mulheres serem geralmente menores, e Carmagnol disse que ela pensou que as mulheres teriam igual acesso "assim que novos materiais menores estivesse disponíveis para esse tipo de aplicação".

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Mas o simples fato é que, mesmo quando os materiais estiverem disponíveis, a tecnologia é claramente projetada para homens. O resultado dessa variedade vai de intensamente irritante (dispositivos feitos para grandes mãos gigantescas) para francamente excludente (tecnologia de melhora de vida inacessível para mulheres).

Um trabalho de 2010 escrito por pesquisadores dinamarqueses para as Nações Unidas afirmou que "as premissas básicas para desenvolver produtos eletrônicos avançados como uma TV, um sistema de alta qualidade, um celular ou um GPS, parecem estar em grande escala dominados pelo pensamento masculino".

Não é difícil ver os efeitos. A socióloga Zeynep Tufecki reportou sua irritação ao não conseguir documentar gás lacrimogênio usado na Turquia porque o celular dela era muito grande para que ela conseguisse tirar fotos com uma mão só. "Todas as minhas fotos daquele evento obviamente não puderam ser usadas por uma simples razão: bons smartphones são desenhados para mãos masculinas", ela escreveu um post no Medium e explicou que ela não conseguiu achar um smartphone menor que alcançasse suas outras necessidades.

"Eu fique brava porque o que foi dado como certo pelos designers homens e usuários homens de um celular moderno simplesmente não estava disponível para mim," Tufecki ponderou. É uma frustração que eu tive muitas vezes, e eu não sou pequena – dentro dos padrões femininos. É só que as mãos das mulheres são em média 17 milímetros menores que as dos homens.

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Os projetos normalmente falham em levar em conta essa limitação física básica e imutável de corpos menores (e, portanto, mais frequentemente de mulheres); muitos gadgets aparentemente unissex podem carregar uma etiqueta "para homens". Isso é, sem considerar as diferentes necessidades e desejos de mulheres quando se trata de uma funcionalidade técnica de fato, sem mencionar a falha da maioria das empresas de tecnologia em levar as mulheres em conta em seus esforços publicitários. Um produto que uma mulher possa usar fisicamente confortavelmente não parece muito a se pedir.

Voltando aos corações artificiais, mesmo quando não há motivo físico para que uma mulher não possa usar um dispositivo, as evidências sugerem que elas não terão igual acesso. Carmagnol me apontou um estudo que mostrou que mulheres eram mais propensas a se beneficiar de um tipo particular de marcapasso – mas com menos probabilidade de obtê-lo.

Os pesquisadores do FDA explicaram que a única razão para isso era que as regras desse tratamento com o marcapasso eram baseadas em tentativas clínicas, e que essas tentativas eram feitas principalmente em homens. Mas as mulheres se beneficiaram de um dispositivo em um nível diferente de função cardíaca dos homens, então as regras não refletiam suas necessidades. Apesar do design ser ostensivamente unissex, ele foi claramente orientado para os homens.

Tudo isso mostra como as diferentes necessidades dos sexos devem ser consideradas em cada passo do design, para evitar o risco de negar a metade da população a oportunidade de se beneficiar de uma inovação tecnológica. Eu não posso evitar de pensar que se um dispositivo aparentemente universal não fosse adequado para o uso de mais de 50% dos homens, ele seria simplesmente considerado fora de propósito.

xx é uma coluna sobre casos do mundo da tecnologia, ciência e internet que têm a ver com mulheres. Abrange o bom, o ruim e outros lados interessantes dos empreendimentos do mundo no Motherboard.

Tradução: Letícia Naísa