A Mulher que Registrou Snowden
Laura Poitras. Crédito: Katy Scoggin

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A Mulher que Registrou Snowden

“Posso gravar?”, pergunto. Ela ri brevemente e consente. “Isso é muito respeitoso, dado o contexto”, diz.

Meu rosto é fotografado e impresso numa cédula temporária de identidade, que deposito numa fenda. Entro no elevador e atravesso um corredor. Sobre uma escrivaninha, avisto uma carta assinada com o selo do vice-presidente. Sou conduzido a um quarto sem janelas, e lá está a cineasta Laura Poitras. Numa mesa de centro, há um MacBook Pro com um adesivo que diz: "Agência Nacional de Segurança — Aparelho Monitorado". Atrás da cineasta, um pôster enquadrado do Ricky Gervais. Estamos nos escritórios da HBO, cujos executivos começaram negociações para adquirir os direitos do novo filme de Poitras, "Citizenfour", antes mesmo de ser concluído, não muito tempo antes da estreia no Festival de Cinema de Nova York, onde foi aplaudido de pé. Apertamos as mãos e mostro meu gravador. "Posso gravar?", pergunto.

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Ela ri brevemente e consente. "Isso é muito respeitoso, dado o contexto", diz.

O contexto é bem sério — um vídeo de 12 minutos feito por Poitras em junho de 2013, que atribuiu um nome e um rosto a revelações de enormes segredos, de um sistema de vigilância global legalmente dúbio. Um ano antes, Poitras tornou-se a primeira jornalista a se comunicar, de forma anônima, com o funcionário terceirizado da NSA Edward J. Snowden. Embora ela partilhasse da autoria de histórias publicadas nos jornais Guardian, NY Times e Der Spiegel, grande parte das reportagens foi escrita por Glenn Greenwald e outros jornalistas. A reportagem mais recente, no caso, é do portal The Intercept, do qual Poitras também é fundadora e editora. Ultimamente, ela anda reclusa, trabalhando no documentário, nos computadores de um estúdio de edição em Berlim que mais parece um bunker. Ela deixou Nova York e se mudou para Berlim em 2012, após anos de dificuldades em aeroportos. Sempre que tentava voar, era detida; começou em 2006, quando marcaram "SSSS" em sua passagem, abreviação inglesa para "Seleção para uma Vistoria de Segurança Secundária", sujeitando Poitras a inspeções adicionais nas fronteiras.

Poitras parou de ser detida, mas aposta que ainda é observada pelo próprio governo. Ela poupa o uso do celular e se tornou especialista em comunicação criptografada. "Eu realmente sinto que há pessoas poderosas muito irritadas, bravas com a reportagem que estamos fazendo", contou. "Creio que estão prestando atenção nas minhas conversas e companhias."

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No final arrebatador do filme, há uma revelação sobre a escala da lista de alvos terroristas do governo americano, para manterem sob escrutínio. Perguntei se ela achava que, por conversar com ela, eu também acabaria na lista.

Poitras sorriu. "Quando o Snowden conversou comigo, avisei meus amigos. Eu disse que, se for verdade, farão uma investigação colossal sobre o vazamento. E todas as pessoas que conheço ou com quem mantenho contato podem ser investigadas. Talvez nem saibam disso, talvez não sejam convocadas." Mas ela me assegurou: "Acho que você não está incluso nessa categoria".

Apesar da carga pesada, no entanto, alguns dos momentos mais poderosos de "Citizenfour" são trechos íntimos que Poitras capturou em meio à emergência e à tensão em torno do caso. Os momentos mundanos, entediantes. Os momentos surpreendetemente engraçados.

"Dica", Snowden diz à certa altura, sentado numa cama de casal desarrumada, ao descobrir que Greenwald deixou um cartão SD com documentos confidenciais no laptop. "Precisamos mudar isto de vez em quando." É um tipo nervoso de engraçado. É engraçado porque, na verdade, não é muito engraçado. É um cara de TI admoestando um jornalista por conta de um nível baixo de segurança – soa familiar. Mas as apostas são muito maiores, absurdamente maiores, e chega a ser engraçado.

Dicas: Snowden e Greenwald no quarto do hotel. Créditos: TwC/Radius

A expressão de Greenwald está numa linha tênue entre choque e ruína — devido à sobrecarga de informações, à importância da história, à dificuldade de compreender um jovem rapaz que PARECE se confinar a uma vida de dor.

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Então, Snowden cobre o próprio rosto e o computador com um gorro vermelho — para evitar inspeções visuais — e começa a digitar. É um momento de paranoia, beirando a loucura, uma autoparódia, difícil de acreditar. A câmera registra o semblante confuso e ansioso do Greenwald, que reflete a imensidão e o surrealismo da situação. ("Isto não é ficção científica", Snowden diz a Greenwald em determinado momento. "Está mesmo acontecendo.") Aqui, neste quarto, a história está sendo escrita, e estas pessoas estão envolvidas, e nós também. A expressão de Greenwald diz tudo, algo numa linha tênue entre choque e ruína — devido à sobrecarga de informações, à importância da história, à dificuldade de compreender um jovem rapaz que PARECE se confinar a uma vida de dor.

Snowden procurou Poitras, em partes, disse ele, porque assitiu a "The Program", um curtametragem que ela fez sobre Bill Binney, matemático da NSA, e as tentativas dele para acabar com a abordagem da agência pós-11/9 à vigilância doméstica, isso trabalhando "dentro do sistema". Em 2007, a casa de Binney foi invadida por agentes do FBI durante uma investigação sobre um artigo expositivo do New York Times, de 2005, a respeito de um programa da agência, de escutas sem mandato. "The Program" foi um filme incomum para Poitras. Em vez de conter ações, o filme consiste em entrevistas com um homem sentado numa cadeira e cenas de um canteiro de obras em Utah. Ainda assim, consegue ser dramático e prender a atenção do espectador.

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"Quando comecei a receber os emails, pensei: 'OK, isto encontrará um lugar, será um filme ou algum projeto artístico.' Mas estava claro que seria uma jornada, e seria dramática, por conta das coisas que ele estava me dizendo e dos riscos que corríamos." Apesar das longas peregrinações pelo Iraque e pelo Iêmen no ápice da Guerra Contra o Terror, que ela realizou para seus dois filmes anteriores, numa saga pós-11/9, "My Country My Country" e "The Oath", Poitras disse que, no fim das contas, "Citizenfour" pareceu "o filme mais perigoso que já fiz. E olha que filmei no Iraque quando havia bombardeios e decapitações. Logo percebi que o projeto irritaria pessoas bem poderosas."

Com Snowden de tema central, "Citizenfour" salienta o paradoxo da história. Para validar as provas que tem em mãos, Snowden precisa vir a público, e não "ocultar-se nas sombras", diz ele. Mas ao aparecer, ele arrisca ofuscar as provas que busca expor. Ele sabe que, assim, acaba virando o centro das atenções. O paradoxo de Snowden ecoa em Poitras também: como contar uma história sem se tornar o foco, sem distrair a atenção sobre o foco?

"Você quer saber por que escolhi você", escreveu Snowden logo no começo, numa missiva que soa poética quando ela lê, sussurrando. "Não escolhi. Você que escolheu. A vigilância que você passou indica que você foi selecionada pelo governo", e isso significa que, "a partir de agora, tenha em mente que, a cada fronteira que você for cruzar, toda compra que fizer, todo telefonema que discar, toda torre de celular que cruzar, amigo que mantiver, artigo que ler, assunto que digitar, pacote que enviar, tudo está nas mãos de um sistema cujo alcance é ilimitado, mas cujas proteções não são." Ele concluiu: "Esta é uma história que poucos poderiam contar."

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Still do vídeo "O'Say Can You See" (2011), de Poitras.

"Citizenfour", assim como seu filme anterior, é um estudo sobre crise. Na primeira obra após o 11 de setembro, uma instalação de vídeo chamada "O'Say Can You See" (verso do hino nacional americano), rostos anônimos aparecem na tela, encarando algo. O ritmo do vídeo e da trilha sonora diminui, vira um rastejo esquisito, assustador. São imagens de turistas no Ground Zero, registradas em outubro de 2001 e adquadas ao som distorcido do hino nacional, de uma versão gravada numa final de baseball com o Yankees, no mesmo mês. A expressão profunda de Poitras às vezes parece esses rostos, encarando algo com melancolia e terror.

Desde 2001, ela fez três outros filmes, "Flag Wars", sobre as tensões entre comunidades gays e negras na cidade de Columbus, Ohio, uma cidade em processo de gentrificação, e os dois filmes pós-11/9. Poitras parece passar tanto tempo com as pessoas retratadas pelas obras, que até esquecem que ela está por perto, e nós quase esquecemos também. Em "Citizenfour", Poitras só aparece na tela rapidamente. Mas o filme é um ensaio mais pessoal que os demais, conforme o primeiro quadro já denuncia: um texto sobre a experiência de ser detida em aeroportos. Ela pode até ser uma mosca discreta na parede, mas em um mundo tomado por vigilância constante, a história que Snowden conta a ela é um drama do qual ela já faz parte.

Dado que Snowden se comunicou com a cineasta, ela disse: "O filme precisava ser subjetivo nesse sentido. Mas todos os meus filmes são assim, de certa forma. Eles seguem pessoas, e capturam as escolhas que as pessoas fazem no meio de conflitos, e como respondem a eles. È disso que se trata o drama."

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Em vez de mostrar e discutir os próprios documentos vazados, que quase não aparecem no filme, a câmera paciente de Poitras se debruça sobre momentos humanos breves e silenciosos, que expressam uma turbulência interna mal resolvida. Os trechos no quarto do hotel — o olho do furacão do filme — são um grande exemplo da abordagem metódica com que Poitras trata Snowden. São também as cenas mais tensas que vi em um documentário. Poitras captura o momento sem interrompê-lo — o que é muito difícil, no caso, porque ela também está envolvida.

O foco é o cidadão do título do filme, "Citizenfour", um codinome que Snowden usou em emails para Poitras, para apontar a linhagem de delatores da NSA que o antecedeu (Binney, Thomas Drake e J. Kirk Wiebe). Snowden é eloquente, ponderado, sagaz, resoluto, e é um cara legal, mas também expressa um lamento pela namorada que deixou em casa e uma preocupação com o desdobramento do próprio destino. Snowden escrevendo mensagens ocultas para a namorada, do quarto do hotel; Snowden vendo CNN enquanto as revelações emergem; Snowden se barbeando, tentando criar um disfarce de fuga. A câmera de Poitras é testemunha e protagonista de outros trechos da história em curso também: uma oficina sobre vigilância com Jacob Appelbaum, no Occupy Wall Street; o julgamento de um processo da NSA; e o aeroporto, com o restante da imprensa, depois que o marido de Glenn Greenwald, David, foi detido por acusações de terrorismo.

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"Estou mais interessada em estar com o Glenn no aeroporto, para buscar o David, quando tudo está acontecendo, do que em sentar com ele depois, ligar os refletores e perguntar como foi", disse ela. "Se você assistir a uma peça ou um filme de Hollywood, vai ver que, geralmente, tudo acontece ali na hora. É uma questão de ação. Ação. Que escolhas você faz agora, com os conflitos que tenta narrar? Não é sobre pessoas contando: 'Bem, cresci lá…' Há algo na forma como olhamos o passado, um senso de finalidade e encerramento, e a vida não costuma ser assim."

Dica: traga uma impressora

Na manhã de 3 de junho, Poitras e Greenwald se encontraram com Snowden em um restaurante em Hong Kong, e o seguiram até o quarto de hotel em silêncio. As filmagens começaram logo depois que a porta se fechou. O cubo de Rubik que ele usou para sinalizar sua identidade pode ser visto na mesa de cabeceira.

"Saquei a câmera bem rápido", disse ela. "Eu sabia que o Glenn começaria logo. Não queria chegar até ali e perder algo por educação, deixar de documentar o que estava acontecendo. E eu realmente queria documentar o encontro, porque imaginei que seria uma experiência rara. É o momento jornalístico que sucede o fato."

A programação foi acelerada, uma loucura. "Do desembarque à reunião, à retirada de documentos, à cobertura do Glenn, à visita da namorada, ao impacto na mídia, à gravação da entrevista, e edição da entrevista, e publicação, não havia muito tempo para segundas chances. Seguimos nossos instintos."

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Uma câmera "elevava o risco, mas… Snowden arriscou praticamente tudo. Então, argumentei que seria importante registrar. Não é todo dia que alguém se arrisca tanto."

Chegar àquele momento demandou um planejamento meticuloso e algumas discussões. Em abril, a fonte anônima de Poitras contou a ela que, no fim das contas, ele não gostaria de permanecer no anonimato: assim que as informações fossem reveladas, de qualquer forma, ele seria desmascarado pelo governo. "Minha vontade é que você pinte o alvo diretamente nas minhas costas", Snowden contou a Poitras em um dos primeiros emails que aparecem no filme. Em vez de deixar o governo identificá-lo ou alimentar as especulações de que suas ações são sinistras, Snowden insiste em "imediatamente ser pregado à cruz, em vez de ser uma fonte protegida." Quanto à ideia de vazar as informações anonimamente, Snowden diz: "Foda-se isso."

Depois que ele tomou essa decisão, Poitras propôs que ele aparecesse no filme. Snowden foi cético.

"Havia dois motivos", disse ela. "O primeiro é que ele não queria se tornar a história. Mas, além disso, ele estava preocupado por estarmos no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Se eles [o governo] aparecessem e encerrassem o encontro, como se certificar de que os riscos que ele correu para revelar informações não seriam em vão?"

Poitras, envolvida há mais de um ano no documentário sobre vigilância, insistiu. "Eu disse que era mesmo muito importante que ele articulasse as motivações, e que eu as compreendesse. É Importante porque as pessoas farão especulações." Edward Snowden", ela acrescentou, "correu todos os riscos possíveis." Uma câmera "elevava o risco, mas que risco era esse? Ele já havia arriscado praticamente tudo. Então, argumentei que seria importante registrar. Não é todo dia que alguém se arrisca tanto."

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Aparecer no filme demandou alguns ajustes. "Conforme você pode imaginar, normalmente os espiões evitam contatos com repórteres e mídia, então eu era uma fonte virgem — tudo era uma surpresa", Snowden contou ao Times ano passado. "Mas todos nós sabíamos o que estava em jogo. O peso da situação, na verdade, facilitou o foco sobre o interesse do público, em vez do nosso. Acho que todos nós sabíamos que não daria para voltar atrás depois que ela ligasse a câmera."

Poitras também prometeu excelentes condições de segurança para o material de base. Em Hong Kong, ela disse: "Tenho um contato local para entregas e drives criptografados com um backup dos arquivos. Destruí as gravações originais, porque não dá para encriptar na hora de filmar. Tenho drives de backup para o caso de alguém bater à porta."

Poitras também tinha ferramentas de criptografia, diversos computadores, uma câmera Sony FS-100 e um tripé. Quando nos encontramos, eu não queria que parecesse que eu estava com um arsenal de equipamentos, então só levei uma mochila, onde coube todo o meu equipamento", disse ela, apontando para uma mochila de couro no chão.

Ela também levou uma pequena impressora. "Eu queria elaborar perguntas e imprimi-las, em vez de precisar ir a locais aleatórios para imprimir, deixando rastros das perguntas que eu faria."

Poitras não mostra essa parte do jornalismo, o processo de tomada de decisões, a edição, ou as preparações legais prévias. (Poitras disse que os jornalistas queriam manter os nomes dos funcionários da NSA em segredo, e antes de se encontrar com Snowden, eles se reuniram com advogados em Nova York, especialmente por conta da inspeção recente, por parte do governo, dos repórteres James Rosen e James Risen em casos de vazamento.) A tensão daqueles dias está estampada no olhar desconfortável de Greenwald. A experiência de Hong Kong foi "como uma queda livre", ela disse. "Não sabíamos os rumos que isso tomaria ou o que aconteceria, só esperávamos que minhas habilidades cinematográficas e as habilidades jornalísticas do Glenn nos servissem bem para esse trabalho."

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Acho que o argumento dela em defesa do Snowden frente à câmera ecoou o desafio do jornalismo num período em que os próprios jornalistas estão em crise — quantos riscos vale a pena correr para contar uma história? Quanto aos desafios em revelar informações confidenciais, e conduzir a vigilância: na balança, os benefícios pesam mais que os custos? E quem deve decidir isso?

Poitras não se opõe completamente à vigilância ou ao sigilo governamental, mas ela acredita que ambos são exagerados hoje. "A crítica que Snowden fez, que o Glenn fez, e com a qual eu concordo, é contra o domínio pesado e global sobre tudo, sem levantar suspeitas", disse ela. "Os perigos disso, os direitos que isso viola — e acho que essa expansão torna o processo mais difícil, de encontrar as pessoas preocupantes de fato."

Laura Poitras e parte do elenco de "Citizenfour", junto da família de Snowden, no Festival de Cinema de Nova York. Créditos: Alex Pasternack

A história em torno da história

"Citizenfour" não é apenas uma obra jornalística sobre um sistema gigante de vigilância e o homem que a revelou, história que o antigo delegado da CIA Michael Morell descreveu como "a transgressão mais séria de informações confidenciais na história da inteligência americana." Também é uma espécie de fonte primária, uma visão subjetiva de uma história histórica. E nesse conto dentro de um conto, também é sobre o jornalismo, e as maneiras novas e desconcertantes como ele é feito.

"Parte do impacto dessas histórias não é apenas o conteúdo das informações confidenciais, mas como ele se desdobrou de uma forma diferente", disse Poitras. "A velocidade com que o Glenn estava trabalhando, e a coragem de exibir o vídeo. Acho que o sistema ficou aos pés deles, em todos os sentidos. Todo mundo está alvoroçado com a nossa abordagem. E para nós, foi muito orgânico. Não tínhamos um grande plano, como publicar um documento ou outro. Não seguimos regras."

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Para Poitras e Greenwald, que revisaram alguns documentos no avião para Hong Kong, Snowden pareceu uma fonte confiável. Mas ele era muito mais novo — e muito mais calmo — do que poderiam imaginar. "Foi impressionante", disse ela. "Chegamos nervosos, desorientados, e também ficamos surpresos com a idade dele. E ele estava completamente calmo. Estava em paz. Tipo, OK, confio em vocês."

Uma centelha de ceticismo surgiu em forma de jornalista veterano do Guardian,Ewen MacAskill, que apareceu no dia seguinte para fazer o papel de "babá" e assegurar que Snowden era quem alegava ser. O carão que ele faz enquanto encara o delator e bota a caneta para trabalhar diz tudo. Depois que Snowden descreve parte do mecanismo britânico de vigilância, MacAskill diz: "Não sei nada sobre você." Há um leve tom de acusação na voz dele. "Sequer sei o seu nome."

"Passei duas horas tentando estabelecer quem ele era", MacAskill me contou. Só quando Snowden mostrou o RG é que MacAskill começou a acreditar nele. Mais tarde, depois que Snowden contou como quebrou as pernas no treinamento para as Forças Especiais dos EUA, MacAskill pensou: "Isto é um absurdo, esse cara é maluco." A confiança no Snowden "não era constante", até que ele e os editores do jornal receberam uma confirmação da NSA e da Casa Branca de que os documentos eram verdadeiros.

A tensão aperta com a postura descolada do Snowden frente à câmera, extremamente natural. "Estou mais disposto a arriscar o aprisionamento do que a restrição da minha liberdade intelectual", disse Snowden. "Lembro-me de como a internet era antes de sermos observados. Nunca houve algo semelhante."

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Embora o filme deixe vários aspectos da história inexplorados — a vida de Snowden na Rússia, preocupações sobre a extensão das revelações, a discussão sobre o que merece ou não merece ser sigiloso —, documentar o Snowden ao vivo permite com que Poitras aborde questões sobre o caráter e os motivos dele. Ela também o humaniza de uma maneira que resiste aos tons enaltecedores e vilipendiosos que colorem o retrato dele na mídia.

"Ela o transformou numa personalidade agradável, alguém que se importa com princípios", MacAskill disse. "Ele tem um senso de humor, e ele faz parte dessa geração, vivendo na era digital."

Lonnie Snowden, pai de Edward, compareceu à premiere do documentário no Festival de Cinema de Nova York. Perguntei se ele achava que o filme acrescentaria uma nova dimensão à compreensão pública do filho dele.

"Só o tempo dirá", ele disse. Mas adicionou: "Não há uma nova dimensão, por assim dizer. Edward Snowden é consistente e estável. Por isso é que quase todos nós sabíamos, desde o início, que fazer isso, fazer o vídeo para o Guardian, deixaria Snowden exposto a um risco moral, um risco que ele não poderia suportar. Não restavam dúvidas. Toda o discurso de 'busca por fama' — qualquer pessoa que o conhece daria risada do personagem narcisista."

"Agora estamos aqui, neste debate — neste falso debate", ele disse. "'Snowden é um herói, um patriota ou um traidor?' Gostamos de usar termos como 'delator'. Ele diz a verdade. Estão perseguindo o Snowden porque ele contou a verdade."

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"Documentários são um canal de distribuição poderoso para verdades", acrescentou. "Quando pessoas poderosas da sociedade temem a verdade, temos um grande problema."

Travessia de fronteiras

Poitras nasceu em Boston, Massachusetts, e se mudou para São Francisco depois do colegial, para trabalhar como chef, fazendo comida francesa em restaurantes sofisticados. Depois que funcionários de restaurantes foram sindicalizados, os longos dias de Poitra encolheram para oito horas, e sobrou tempo para estudar no Instituto de Arte de São Francisco. Ela fez aulas de cinema com os cineastas avant-garde Ernie Gehr e George Kuchar. Em 1992, ela se mudou para Nova York, para estudar ciências políticas e cinema documental na universidade New School. No dia 11 de setembro de 2001, ela estava em Manhattan. Intrigada com as consequências daquele dia, ela começou a viajar para o Iraque em 2004, para filmar "My Country My Country". Em 2006, ela foi detida e revistada na fronteira. Foi a primeira de mais de 40 instâncias.

"Quando me detiveram pela primeira vez, fui ingênua", disse ela, a respeito dos problemas nas fronteiras. "Quando comecei todos esses filmes, eu era ingênua, e pensava: 'Isso vai melhorar, vai mudar. Escolhemos o caminho errado, mas as coisas vão mudar.' Mas, com o passar dos anos, continuaram me detendo a cada viagem, perguntando as mesmas coisas. Ficou claro que eu era barrada por um sistema, e que o sistema não era racional. E era uma conversa que eu precisava ter sem passar pelo devido processo, sem transparência."

O governo suspeitou de Poitras quando ela acompanhou um tiroteio no Iraque, entre insurgentes e soldados americanos. Ela supostamente filmou o ocorrido, levando militares a especularem que ela teve aviso prévio. Ela confronta o relato, e também a noção de que o governo a retaliava por fazer retratos verdadeiros da Guerra Contra o Terror. Ela não faz ideia de como foi parar na lista de interesse do governo, e esse branco forma o grosso de suas preocupações.

"Não acho que virei alvo necessariamente por conta dos filmes. Acho que nenhuma autoridade policial disse: "Ih, ela está fazendo um filme sobre a guerra no Iraque, precisamos ligar o botão e começar a importuná-la na fronteira." Acho que foi o crescimento das agências de inteligência. Se você desencadeia algo, não há saída. É meio kafkiano. A partir do momento em que você está na lista, é um processo completamente irracional."

Em 'Chokepoint', um curtametragem de Katy Scoggin e Laura Poitras, o repórter Marcel Rosenbach informa aos funcionários de uma empresa alemã de comunicações que foram alvos de vigilância por parte de espiões russos.

Há uma chance de Poitras e Greenwald serem implicados em um caso governamental contra Snowden, que foi acusado de violar a lei federal de espionagem, mas ela está otimista. "Tenho certeza de que o governo sentou para conversar sobre todas as possibilidades, mas fazer isso teria uma repercussão violenta entre nossos colegas da imprensa. Há um consenso geral de que esta é uma história importante, e de que outros portais de notícia nos defenderiam." Ela disse que planeja passar mais tempo em Nova York, e espera lançar mais gravações do quarto do hotel, inclusive uma longa entrevista técnica com Snowden. Mas ela disse que manterá as imagens fora do país, para protegê-las contra o longo braço da lei americana.

"Estou muito interessada em como um indivíduo se sente quando vira alvo", ela comentou. "As consquências humanas. Sabemos, por exemplo, que pessoas estão em Guantánamo há mais de uma década. Mas como é sentir isso na pele? Eu me pergunto se há como enxergar o processo. O que acontece se enxergarmos? Isso mudaria a opinião pública? O mesmo com tortura. Vejamos as fitas de vídeo das torturas. Não quero investigar só o reconhecimento do problema, mas as consequências humanas."

O encalço do governo claramente a fortaleceu, em termos tecnológicos e físicos, para trabalhar sem se sentir intimidada. Antes dos documentos de Snowden, as vistorias no aeroporto mostraram a ela evidências de uma máquina de vigilância falha. Sugeri que a experiência dela tornou a questão íntima e pessoal, pois sempre tivemos conhecimento dessa máquina secreta, mas às vezes é difícil pensar nisso. "Ou se importar com isso", ela acrescentou.

Edward Snowden e a namorada, Lindsey Mills, na Rússia. Crédito: "Citizenfour"

Na maior parte do filme, o semblante de Snowden, assim como os demais, permanece bastante inexpressivo — uma cara de equanimidade em crise. Numa cena do fim, gravada este ano na Rússia, vemos Snowden em repouso através de uma janela, cozinhando — surpresa! — ao lado da namorada, que agora passa períodos de meses com ele. E no trecho final, um Greenwald mais relaxado aparece sentado ao lado de Snowden, no que aparenta ser outro quarto de hotel. Snowden explica uma nova revelação, que obteve de uma nova fonte do governo. Greenwald parece entusiasmado com o estado de espírito do delator, "destemido, tacando o foda-se". Para evitar escutas, ele escreve algo num pedaço de papel e entrega ao jornalista. Percebemos, então, que ele anotou o número de pessoas contidas na lista governamental de alvos terroristas para escrutínio — 1,2 milhão; relatos anteriores indicavam cerca de 700 mil pessoas —, além de uma informação que ajudaria a identificar a fonte do vazamento.

"Isto pode elevar a visibilidade da situação política com denúncias a um novo patamar", diz Snowden. A expressão no rosto dele indica excitação e choque.

É excitante e chocante para o público também, e não só por causa da revelação aparente. É chocante ver Snowden chocado — ver, de uma vez por todas, como um homem que parece saber bastante está desconcertado com o sistema onisciente do qual ele já fez parte. Ainda não somos capazes de ver o que ele vê. Rasgam o papel no final, acabando com a possibilidade de mais conteúdo disponível. Agora, na tela, nos resta apenas a base humana de metadados, o rosto de Snowden. Assim como o restante do filme, há muita coisa que ele não diz, mas isso é justamente uma pista preciosa. A câmera de Poitras nos força a encarar e confrontar o vazio e o caos de um segredo sendo revelado — a sensação de digerir a informação, de perceber o quanto não sabemos, de não saber o que nos aguarda. No rosto de Snowden — contorcido de uma maneira que ainda não tínhamos visto —, podemos encontrar um lampejo de reconhecimento humano, um choque com o qual todo mundo pode se identificar.

Tradução: Stephanie Fernandes