​A Menina que Viverá para Sempre
Matheryn Naovaratpong, dois anos de idade. Imagem cedida pela família.

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Tecnologia

​A Menina que Viverá para Sempre

A história da pessoa mais nova a ser congelada criogenicamente.

Matheryn Naovaratpong tinha dois anos e dois meses de idade quando não acordou na manhã de 14 de abril de 2014. Ela foi levada às pressas a um hospital de Bangkok, na Tailândia, onde médicos descobriram um tumor de 11 centímetros de comprimento no lado esquerdo de seu cérebro.­ Matheryn – sua família lhe chamava carinhosamente de Einz – tinha um ependimoblastoma, um tipo raro de câncer cerebral que aflige crianças. O prognóstico era excessivamente nefasto: o índice de sobrevivência em até cinco anos é de 30%. Einz estava em coma.

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Na primeira cirurgia pela qual a menina passou, os médicos retiraram metade do tumor e perfuraram o crânio de Einz para aliviar a pressão sofrida pelo cérebro. Depois disseram aos seus pais, que também são médicos, que ela provavelmente nunca acordaria. Mesmo que acordasse, afirmaram, o câncer era incurável. O próprio hospital aconselhou que desligassem os aparelhos que mantinham Matheryn viva.

"Mas no decorrer de uma semana", o Dr. Sahatorn Naovaratpong, pai da menina, me contou via email, "Einz acordou e retomou sua consciência de dois anos, respondendo a estímulos e surpreendendo a todos".

O evento motivou a família a seguir adiante com o tratamento. "Decidimos lutar contra este câncer", disse Sarahorn. "Talvez não o derrotemos, mas sua vida pode levar a humanidade a dar um passo adiante na superação futura do câncer. Einz representa o valor da vida."

Ao longo de um ano, a menina de dois anos de idade passaria por 12 cirurgias cerebrais, 20 tratamentos de quimioterapia e 20 sessões de radioterapia. Einz perdeu 80% do hemisfério esquerdo de seu cérebro. O lado direito de seu corpo foi paralisado. Houve momentos de grandes esperanças e sofrimento agudo; Sahatorn descreveu a época como uma montanha-russa emocional.

"Einz conseguiu ficar de pé novamente e ver com ambos os olhos, como se tivesse sobrevivido a um câncer cerebral. Não pude deixar de querer que ela pudesse voltar a ter uma infância normal, mesmo só com o lado direito do cérebro." Com terapia, a menina começou também a mover algumas das partes do lado direito do corpo. Ela contrariava as estatísticas. De acordo com Sahatorn, a maior parte das vítimas de ependimoblastoma morrem antes dos dois anos. Einz sobrevivia e apresentava melhoras.

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A família Naovaratpong começou então uma campanha nas mídias sociais para trazer à tona a questão do câncer infantil, dando início a uma fundação de pesquisa em câncer genético. "Que Einz seja nossa primeira guia" era seu lema, afirmou Sahatorn.

Mas em novembro de 2014, o tumor se espalhou pelo cérebro de Matheryn, paralisando seu rosto e músculos."Percebemos então que aquele era o fim", disse Sahatorn. "Tínhamos que nos preparar para dizer adeus." Em 8 de janeiro de 2015, Matheryn Noavaratpong deixou o hospital. "Entre amigos e parentes, brincamos e abraçamos ela antes de desligarmos os aparelhos que a mantiam viva, às 18h18, tirando de seus ombros a carga pesada que até então levava", disse Sahatorn. As células cancerosas e demais células de seu corpo foram preservadas para estudos futuros. "Seu corpo foi preservado criogenicamente no Arizona, na espera de tecnologias vindouras", afirmou o pai da menina. Neste ano, Matheryn Novaratpong se tornou a pessoa mais jovem a ser congelada por meio de criogenia, o ato de conservar humanos e mamíferos em uma espécie de "bioestase", para ser revivida no futuro.

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"Antes de Einz, a mais jovem que tínhamos era uma moça de 21 anos", afirmou Aaron Drake, Diretor de Atendimento Médico da Alcor Life Extension Foundation. "A escala vai até os 102 anos, a pessoa mais velha que já preservamos."

A Alcor é uma das maiores organizações no ramo da criogenia,. Os principais objetivos da companhia americana são manter os pacientes atuais em bioestase, colocar membros atuais e futuros em bioestase (quando necessário) e eventualmente restaurar a saúde e reintegrar à sociedade todos os pacientes sob seus cuidados. Por uma taxa, a empresa afirma ser capaz de preservar corpos que deterioraram para além da capacidade da medicina atual de ajudá-los até o dia em que a ciência e a biotecnologia tenham melhorado o bastante para restaurá-los. Ao longo dos anos, os médicos e técnicos da Alcor conduziram mais de 130 processos de criopreservação. Matheryn é seu paciente mais recente.

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O campo da criogenia tem passado por uma espécie de renascença. Na última década, uma carta aberta declarando a criogenia como "um esforço com base científica legítima" coletou 63 assinaturas de médicos e pesquisadores, tornando a prática essencial ao movimento transhumanista, com seus principais nomes aos poucos se aproximando dos holofotes da grande mídia. O setor ganhou o apoio de gente grande; a lenda do baseball Ted Williams chegou a ser preservado pela Alcor.

No decorrer desse processo, a empresa se viu às voltas com acusações de improbidade – em um livro e entrevista com a ABC, um ex-funcionário da Alcor declarou que a empresa usou martelo e cinzel para remover a cabeça de um paciente, e também de possivelmente ter ministrado um medicamento em dose letal para um membro ainda vivo. A Alcor nega tais alegações e deu início a um processo contra o indivíduo.

As grandes organizações de criogenia seguem com base apenas nos EUA (o Cryonics Institute, por exemplo, é possivelmente o maior rival da Alcor). Além da filial da Alcor no Reino Unido, a outra única empresa internacional séria é a novata russa KrioRus. Mas graças ao interesse renovado no assunto e o alcance crescente das mídias sociais, o tema tem recebido destaque em todas as partes do mundo.

A família de Matheryn conheceu a Alcorn pela internet. A companhia concordou em aceitar a garota como sua paciente e a matriculou como um de seus membros. O plano inicial era levar Einz aos EUA ainda viva para que a equipe da Alcor pudesse fazer todo o procedimento domesticamente. Tal procedimento é bastante complexo e invasivo; a BBC se refere a ele como "intenso".

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Instalações da Alcor em Scottsdale. Crédito: Xavier Aaronson

O processo consiste em colocar o paciente em uma cama de gelo, cobrindo-o com uma série de produtos congelantes, fazer o coração bater artificialmente com o uso de um ressuscitador cardiopulmonar, drenar o sangue e o substituir por anticongelante de uso médico, abrir a caixa torácica para ligar os principais vasos sanguíneos a uma máquina que retira o resto do sangue e então, aos poucos, diminuir a temperatura do corpo no ritmo de 1˚ Celsius por hora. (Após duas semanas, o corpo chega ao estado de criogenia profunda, na temperatura de -196˚ C.)

A Alcor escolheu um hospital pediátrico americano bem equipado para desempenhar a tarefa. "Infelizmente, a respiração da garota piorou mais rápido do que seus médicos esperavam e, dois dias antes de sua viagem para os EUA, ela passou a usar um respirador artificial, essencialmente eliminando a possibilidade de uma viagem de avião", declarou Drake via e-mail. A Alcor teria que ir até ela."Decidimos enviar um medico. Quando você está diante da vasculatura de uma criança pequena como aquela, é tudo muito diferente. E esta era uma criança com diversos tumores cerebrais."

Então a Alcor levou Drake e o Dr. Jose Kanshepolsky, um neurocirurgião aposentado, à Tailândia. Eles passaram dois dias em "standby", o termo usado pela Alcor para designar a etapa do processo de criogenia em que médicos ficam próximos do enfermo, esperando por seu falecimento e posteriores preparativos para o procedimento. Kanshepolsky examinou a menina no hospital antes que fosse levada para casa e descobriu uma complicação alarmante: já que uma parte considerável de seu cérebro havia sido removido, seu crânio havia sido preenchido com fluido cefalorraquidiano, o que dificultaria o procedimento.

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"Normalmente fazemos dois furos no crânio para vermos o cérebro. Se o cérebro começa a se contrair, é porque tudo corre bem", disse Drake. Isso porque o anticongelante médico utilizado pela Alcor seca o cérebro e o reduz de tamanho. Os técnicos da Alcor também inserem instrumentos essenciais por meio das perfurações. "Nestes buracos inserimos engates termais e sondas de temperatura para monitorar o cérebro", afirmou Drake.

Por conta da quantidade de fluídos inesperados em Matheryn, Kanshepolsky decidiu deixar para depois a extração cerebral, dando início ao processo de preservação do corpo em seu lugar.

O procedimento de Matheryn foi aquilo que a Alcor chama de "neuro" – no final, somente o cérebro é extraído e preservado

De acordo com Drake eles decidiram "realizar a perfusão crioprotetora do cérebro de Matheryn na Tailândia". A equipe decidiu realizar o processo sem separar seu cérebro do resto do corpo. "Acabou que esta foi uma forma eficaz de passar pelo processo de repatriação e retorno aos EUA", escreveu Drake em uma sinopse pós-procedimento escrita em parceria com o CEO da Alcor, Max More.

No segundo dia, a morte de Matheryn foi anunciada por um médico presente no leito. Uma sala de operações já havia sido preparada no cômodo ao lado para estabilização da paciente e a perfusão foi imediata. O sistema de crioproteção de campo da Alcor foi testado ali mesmo e se provou muito eficaz. A cirurgia seguiu sem incidentes. Mas como o caso estava bem longe do quintal da Alcor, algumas medidas tiveram que ser tomadas para transportar o corpo de Matheryn até o Arizona.

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"Temos que seguir a regulamentação da indústria funerária", disse Drake. "Existem regras de aviação que tratam diretamente sobre o transporte de restos mortais. Neste caso, entramos em contato com uma funerária inglesa. Eles nos forneceram todos os documentos que precisávamos preencher. Certificados de óbito na Tailândia e nos EUA, e mais um monte de coisas." Então chegava a hora de preparar o corpo para a viagem.

"Normalmente, retiraríamos a cabeça do corpo", disse Drake. "Não sabíamos como seria a reação da família, da funerária, dos agentes na fronteira; isto teria que passar por uma série de locais durante o envio, a alfândega, e por aí vai. Uma cabeça congelada em uma caixa deve acionar alguns alertas por aí. Nos EUA não é exatamente um problema, mas lá talvez eles não estejam costumados." Decidiram então manter o corpo intacto e congelado. "A paciente inteira foi colocada em um container especial de gelo seco e a redução na temperatura até atingir a de gelo seco foi feita no local (-79 graus C)", escreveram Drake e More. O cálculo foi astuto; o container passou pela inspeção.

Após a embaixada dos EUA na Tailândia ter aprovado o envio, o container foi coberto por gelo seco e enviado via aérea ao LAX para passar pela aprovação da alfândega. De lá, a Alcor recrutou seu agente funerário de Buena Park para levar o container. Drake e outro operativo da Alcor foram até lá buscá-lo no que chamam de "veículo de atendimento Alcor". Cobriram o container com gelo seco, colocaram na caminhonete, obtiveram as permissões necessárias, e levaram a carga até Scottsdale. "A neuro separação foi realizada na Alcor após a chegada e Matheryn se tornou nossa 134ª paciente", disseram os representantes da empresa no comunicado oficial.

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O procedimento de Matheryn foi aquilo que a Alcor denomina "neuro" – no final, somente o cérebro é extraído e preservado. Seu cérebro agora está guardado em um "Bigfoot Dewar", um receptáculo de aço inoxidável, isolado à vácuo e preenchido com nitrogênio líquido, mantido a uma temperatura de -196˚C, com outras dezenas de massas de matéria cinza. A essência da menina de dois anos de idade agora descansa em criogenia no Arizona, à espera de uma cura e meios de reconstruir seu corpo. "Foi necessário grande planejamento logístico, mas sim, estamos muito felizes com os resultados", disse-me Drake.

O cérebro de Matheryn agora reside em um Dewar destes. Crédito: Xavier Aaronson

O desejo de uma vida eterna – ou ao menos outra chance – é universal. Não é de surpreender, então, que a criogenia tenha começado a atravessar fronteiras internacionais. A Alcor recebe muitos pedidos, porém ainda não dispõe dos recursos ou infraestrutura para atender a todos. As despesas são proibitivas.Tornar-se membro, que garante o direito de ser posto em "standby" (e também uma tag de Emergência Alcor), custa 770 dólares por ano. Fora isso, é necessário provar que medidas financeiras foram tomadas para a realização do procedimento final. A criopreservação custa entre 80 mil dólares ("neuro") e 200 mil (para o corpo inteiro), dependendo do quanto de si o cliente deseja manter. A Alcor sugere que possíveis membros façam um seguro de vida para cobertura dos custos.

"Nosso mercado está crescendo", disse Drake. Ele atribui o interesse à crescente atenção por parte da mídia, à ascensão das redes sociais e a uma juventude de mente aberta. "A geração mais jovem está mais acostumada a ver mudanças tecnológicas. Qualquer coisa que você crie terá um aplicativo seis meses depois. A geração mais nova vê isso e pensa 'claro, por que não?' Eles sentem que isso é algo meio que inevitável."

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Enquanto organização, a Alcor tem hesitado se promover, disse Drake. "Creio que a diretoria teme que tentaríamos 'vender' imortalidade. Mas as redes sociais crescerão conosco." E é daí que saem os clientes dos lugares mais distantes.

Como reanimar um corpo humano morto? Até mesmo o CEO da Alcor não afirma saber

Aqueles que ouviram falar da Alcor na rede e passaram a buscar serviços de extensão de vida na Europa ou em outros locais fundaram clubes,sociedades e se voltaram para fóruns na internet. Pais também estão colocando seus filhos na jogada — mesmo estes não estando doentes. "Nosso membro mais jovem tem três meses de idade", disse Drake. O processo todo é legal se os pais comprovarem serem guardiões legais dos menores. "Os pais podem tomar decisões por seus filhos quando ainda são a menores. Estes então podem abandonar a iniciativa se quiserem." Matheryn, a mais nova a ingressar nas fileiras da Alcor, também foi sua primeira paciente a receber o tratamento em campo na Ásia. E se seu otimismo indicar alguma coisa, haverá mais.

"A Alcor dá a Einz a oportunidade de respirar novamente quando a tecnologia adequada para lidar com a doença for fornecida", disse o pai de Matheryn. Sua família é grata à Alcor, mas eles não são idealistas cegos. São médicos, e a lição aprendida da batalha de sua filha contra o câncer é que ainda existem fronteiras consideráveis a serem examinadas quando falamos de medicina e fisiologia humana. A vida de Matheryn só foi possível por conta da ciência moderna, disse Sahatorn. Ela foi gestada por uma barriga de aluguel porque a sua mãe havia perdido o útero ao dar à luz a um menino.

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"O tratamento do câncer precisa mudar", afirmou Sahatorn. "Os métodos convencionais não conseguem tratar o ependimoblastoma e diversos outros tumores. Precisamos de mais pesquisas sobre cânceres genéticos. Sem pesquisa, não haverá mudança". Para tanto, os pais de Matheryn continuarão a promover a iniciativa de pesquisa de câncer infantil criada por eles, que será administrada pela Rama Foundation. Parte do motivo pelo qual se voltaram para a Alcor foi poder continuar o avanço nestas pesquisas.

"Eles não queriam que a vida de sua filha terminasse em vão", disse Drake. "Esperam que, ao preservar as células de tecido deste câncer em especial, possam criar um plano de tratamento mais eficaz e talvez até mesmo curá-lo. Se você olhar o panorama global do que estão tentando fazer, é muito altruísta."

Claro que o lance da Alcor é esperança. É uma gigantesca incerteza se a ciência um dia descobrirá uma forma de consertar os corpos danificados do passado. James Lovelock pode ter muito bem reanimado ratos congelados, mas isso está a anos-luz de distância de reviver humanos que passaram décadas em uma estase gélida. É uma esperança que depende que muitos fatores futuros se alinhem.

"Claro que precisamos descobrir uma cura para o câncer", disse Drake. "E aí pensamos que teremos que arranjar um jeito de regenerar um corpo novo. O termo ultrapassado seria clonar um novo corpo, mas não é como fazem isso mais". Ele comenta avanços na impressão em 3D de órgãos e desenvolvimento de tecidos, ao passo em que admite que todo o empreendimento talvez nunca funcione — pode ser em essência, um "experimento científico em progresso constante", tendo Matheryn como sua cobaia mais nova.

"Nós sabemos que podemos regenerar um órgão pequeno e cultivar um novo coração", disse. "Sabemos que podemos imprimir em três dimensões, órgãos e corações. Logo, em algum momento teríamos que regenerar seu corpo inteiro, ou pelo menos seus órgãos, e montar tudo. Então precisaríamos transplantar seu cérebro para um corpo novo."

Como reanimar um corpo humano morto? Até mesmo o CEO da Alcor não afirma saber –, junto de milhares daqueles que aguardam vivos e esperançosos, ele tem fé na ideia de que a ciência dará um jeito de descongelar e reviver o cérebro de uma garotinha de dois anos.

"Ao menos dedicamos seu corpo e vida ao progresso e desenvolvimento da ciência", disse-me Nareerat, a mãe de Matheryn, na única vez em que nos falamos. "Isso também é outra coisa boa para nossa família, sabemos que ela está viva apesar de estarmos separados".

Se chegar o dia em que os humanos poderão ressuscitar seus mortos, Matheryn não estará só. Seus pais também se comprometeram a serem membros da Alcor. Sonham ser reanimados em um futuro melhor ao lado de sua filha.