Por que a medicina moderna não consegue explicar a sincronia menstrual?
Crédito: Arthur Porto/ VICE

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Por que a medicina moderna não consegue explicar a sincronia menstrual?

Desde 1971 pesquisadores tentam entender a conexão misteriosa que existe entre as mulheres que menstruam ao mesmo tempo, mas sem muito sucesso científico.

Caso você seja uma pessoa com útero e ovários em pleno funcionamento que sangra todo santo mês, a tal da sincronia menstrual talvez já tenha acontecido em algum ponto da sua vida e de alguma amiga próxima nas mesmas condições. Aqui na redação da VICE isso aconteceu ano passado: a maioria das repórteres menstruava na mesma época do mês. Mas por quê? Seria coincidência? Matemática? Evolução? Hormônios? Aposto que até quem não menstrua também tem curiosidade de saber.

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A psicóloga Martha MacClintock foi a primeira pessoa a estudar esse assunto a sério. Em 1971, ela cursava psicologia na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, e percebeu que cerca de 135 mulheres que dividiam dormitório no campus tinham datas de menstruação muito próximas. Martha resolveu investigar: dividiu as mulheres em dois grupos, um de amigas muito próximas e outro de colegas de quarto, isto é, não necessariamente amigas próximas. Ela encontrou evidências de que as datas em que cada uma menstruava ficavam cada vez mais próximas conforme o tempo passava. Quando o ano letivo começou, as estudantes menstruavam, em média, com 6,4 dias de diferença. Seis meses depois, a média caiu para 4,6 dias. Para ela, as causas poderiam ser químicas e comportamentais.

"A evidência da sincronização e supressão do ciclo menstrual é bastante forte, indicando que em humanas existe um processo fisiológico interpessoal que afeta o ciclo menstrual", concluiu no artigo "Menstrual Synchrony and Suppression" ("Sincronia Menstrual e Supressão", em tradução livre), publicado na revista Nature.

Depois de jogar essa bomba, a semente da curiosidade foi plantada na comunidade médica. Outros pesquisadores tentaram reproduzir seus estudos nas décadas seguintes. Martha também seguiu na investigação. Anos depois, em 1998, ela apontou em outro artigo na Nature que os feromônios poderiam ser uma das causas da sincronia menstrual entre as mulheres. "Há uma abundância de animais que mostram um fenômeno semelhante e, com os animais, você pode mostrar claramente que é mediado por estes os feromônios, esses produtos químicos transportados pelo ar", explicou a própria McClintock em entrevista à ABC, uma rádio australiana, em 1998.

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Feromônios são substâncias químicas que o corpo exala e estão relacionadas à atração sexual entre as pessoas. Ainda existe muita dúvida na medicina sobre a atuação deles no corpo humano porque não se sabe se temos mecanismos receptores para eles. "Acredita-se que os feromônios sejam responsáveis pela sincronia pois os seres humanos são capazes de captá-los sem perceber e eles atuam modificando o ciclo natural das mulheres, por isso, depois de um tempo, elas passam a menstruar no mesmo período", explica a médica ginecologista Heloisa Brudniewski, do Centro de Endometriose de SP da Faculdade de Medicina do ABC. "Mas não há evidência científica", completa.

Nos anos 80, uma equipe do departamento de psiquiatria de Yale, também nos Estados Unidos, tentou provar a teoria de McClintock, mas não chegou à mesma resposta. Eles observaram um grupo de 144 mulheres e notaram que em 86 delas não havia sincronia de fato, e sim algum indício. Para os pesquisadores, a variabilidade do ciclo menstrual depende da personalidade da mulher e de fatores biológicos e psicossociais de cada uma.

O enigma persistiu na década seguinte. No decorrer dos anos 90, Leonard e Aron Weller, pai e filho, antropólogo e psicólogo, respectivamente, publicaram mais de 10 artigos investigando o "efeito McClintock", como ficou conhecido o fenômeno. Em 1992, eles observaram 20 casais de mulheres lésbicas e perceberam que a sincronia acontecia com uma média de 2 dias de diferença entre as parceiras. "Os fatores relacionados ao grau de sincronia incluíram atividades mútuas, amizade e regularidade menstrual", concluem os autores. Mas como? "Possivelmente por meio de mecanismos sociais e feromonais", escreveram.

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Poucos anos depois, em um dos últimos artigos sobre esse assunto, publicado no Journal of Comparative Psychology, em 1999, os Weller encontraram o que consideraram um alto grau de sincronia entre mães e filhas e entre irmãs que não dividiam o mesmo quarto: 51% das 73 famílias observadas apresentaram sincronia. Entre amigas, a porcentagem caiu para 30%. A conclusão deles foi de que não é preciso dividir um quarto para acontecer a sincronia menstrual.

A jornada dos Weller foi lida como uma comprovação da teoria de Martha McClintock. No entanto, uma pesquisa de 1992 do antropólogo H. Clyde Wilson apontou erros metodológicos na pesquisa de McClintock, o que, para muitos, invalidou o estudo. No ano anterior, ele havia tentado replicar o estudo e encontrou algumas falhas. Um ex-colega de McClintock, Jeffrey Schank, também tentou reproduzir a pesquisa em 2006 com 186 estudantes chinesas vivendo juntas, mas concluiu que tudo não passava de uma percepção. "Mostramos que a variabilidade do ciclo produz convergências e divergências posteriores ao início do ciclo e pode explicar a percepção de sincronia", escreve.

"Quando mulheres sincronizam a menstruação, não estão competindo. Elas estão sendo no mínimo mais solidárias umas com as outras."

Schank foi além: escreveu um artigo de 15 páginas desmentindo a pesquisa de McClintock logo no título: "Women Do Not Synchronize Their Menstrual Cycles" ("Mulheres Não Sincronizam Seus Ciclos Menstruais", em tradução livre). Página por página, ele desconstrói os argumentos matemáticos e metodológicos da análise de McClintock e conclui que nada disso existe. E ainda diz mais: "Ao evitar sincronia, a competição entre as fêmeas por machos de alta qualidade foi reduzida". Ou seja, acreditar que a sincronia menstrual seria uma característica evolutiva entre as mulheres para atrair o sexo oposto está bem errado.

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Segundo a ginecologista Lívia Martins Carneiro, do Instituto Ânima em Goiânia, ele tem razão. "Não seria uma competição entre as mulheres porque, quando elas sincronizam, elas não estão competindo. Elas estão sendo no mínimo mais solidárias uma com a outra. A competição não existiria, porque a tendência da competição é antagonizar. Sincroniza quando tem sintonia", afirma. "É mais fácil cada semana uma ficar fértil e ir atraindo os homens alternadamente porque senão essas fêmeas vão se digladiar do jeito que tem pouco homem disponível. É até perigoso", brinca.

Crédito: Arthur Porto/ VICE

Depois de ter refutado a teoria de McClintock, Schank publicou outro artigo para destruir os argumentos dos irmãos Weller. "Francamente, não entendo este argumento. Se a sincronia é um fenômeno real, então a replicabilidade deveria ser maior que 50%", afirmou, no texto. No mesmo artigo, ele também questiona os métodos da pesquisa de Cynthia Graham, publicada no Journal of Comparative Psychology em 2002 que confirmava as descobertas de McClitock e dos Weller.

Com o intuito de alfinetar os colegas, Schank afirma que 30 anos de pesquisa sobre o assunto não produziram evidências suficientes para confirmar o fenômeno. "De fato, na ciência, enquanto pesquisadores, nós tomamos muitas coisas como garantidas quando não deveríamos", diz Schank.

E o cientista, ao que tudo indica, talvez seja o que esteja mais próximo da verdade sobre o fenômeno: não há nenhuma certeza. "Não tem uma explicação científica", afirma Dra. Carneiro. Para a ginecologista, a fisiologia feminina é muito complexa e nós ainda temos um conhecimento muito limitado sobre ela. Uma das razões, diz a médica, é que pesquisas sobre patologia são mais vantajosas para o mercado do que estudos sobre fisiologia. "O que é fisiológico não interessa, já que a pesquisa médica é quase toda financiada pelas indústrias de medicamentos que não ganha nada financiando a fisiologia", diz. "Para essas indústrias, é muito mais interessante financiar o aspecto patológico. É uma questão de mercado mesmo."

Giselle Gellacic, doutora em história pela PUC-SP, também ressalta o quanto é recente e limitado nosso conhecimento sobre a fisiologia feminina. Ela aponta que a ciência moderna teve seus conhecimentos baseados no corpo masculino desde o século XVI e os hormônios só foram descobertos no século XIX. "Apenas neste momento começou o entendimento científico acerca da menstruação. Até então, muitas superstições eram utilizadas para entender o ciclo menstrual, o processo de fecundação e gestação" diz Gellacic.

De fato, há muitas explicações não-científicas por aí. No livro "Blood Magic: The Anthropology of Menstruation" ("Sangue Mágico: A Antropologia da Menstruação", em tradução livre) há um estudo sobre o povo Temne, de Serra Leoa, em que o professor de Yale, Frederick Lamp, descobre que os nativos acreditam que a sincronia menstrual entre as mulheres acontece para evitar casos de adultério e produção de "filhos ilegítimos".

Sem explicação científica concreta, tudo o que sabemos é que acontece porque acontece. Segundo a Dra. Carneiro, não é um evento extremamente científico; existe apenas uma questão observacional. Um artigo da Scientific American sugere que tudo não passa de um mito popular das cidades cidades universitárias mas, mesmo assim, não são poucas as mulheres que me contaram histórias de sincronia com amigas, mães, irmãs, cunhadas e colegas de quarto e de trabalho.

A única coisa que medicina já conseguiu explicar e que está presente em todos os artigos mencionados aqui é que o ciclo menstrual é alterado por causa do ambiente. Crises de estresse fazem com que o nosso corpo produza mais hormônios e desregule a menstruação, por exemplo. Além disso, cada mulher tem um ciclo próprio e irregular à sua maneira. Mas com base nessas alterações ambientais e variações, o efeito McClintock ganha força no boca a boca e pode ter motivos que a própria razão desconhece. O que sabemos com certeza é que a sincronia de ciclos menstruais tem uma recepção afetuosa entre as mulheres que menstruam porque, afinal, um pouco de compaixão e sororidade não fazem mal a ninguém.