A internet de Herzog é o mais belo caos
Werner Herzog. Crédito: Raffi Asdourian / Flickr

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Tecnologia

A internet de Herzog é o mais belo caos

No novo documentário "Lo and Behold", o cineasta alemão explora com poesia os fragmentos da nossa rede de cavernas.

A internet é muitas coisas: é algo que está em toda parte e em lugar nenhum; é necessária mas também completamente misteriosa.

Falar ou pensar sobre ela é como uma tela de login: um convite para se perder em sua imensidão. Atualmente, a rede das redes representa a cultura digital, as novas mídias, as novas guerras, os bens comuns mundiais, uma Times Square digital, a grande engrenagem econômica, tudo.

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Ela também é, de certa forma, uma obra de arte — ou até mesmo a grande obra-prima da civilização. É aquilo com que William Gibson sonhou enquanto caminhava por Vancouver, no Canadá, ouvindo música em seu novo Walkman pela primeira vez: "Uma alucinação consensual", escreve o autor em sua definição de ciberespaço publicada no livro Neuromancer:

vivenciada diariamente por bilhões de operadores legítimos, em todas as nações… Uma representação gráfica de dados extraídos da memória de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade inimaginável. Feixes de luz espalmados no não-espaço mental, aglomerados e constelações de dados. As luzes de uma cidade, cada vez mais distantes…

As metáforas da internet que me vem à cabeça — um emaranhado de tubos, uma nuvem — não são sequer mencionadas em Lo and Behold, Reveries Of A Connected World, o novo documentário de Werner Herzog sobre o ciberespaço. Esta palavra, aliás, não chega a ser mencionada no filme — de certa forma, ela soa tão ridícula quanto a ideia de tubos, nuvens ou infinitas highways, e não nos ajuda a entender o que isto é — mas a tensão entre essas palavras, tecida entre a lama e as estrelas, o profano e o sagrado, o sublime e o absurdo, o virtual e o real, sempre esteve presente na obra de Herzog.

Estamos acostumados a ver o diretor escalando coisas concretas — uma montanha, uma geleira, um vulcão — mas aqui o terreno é ao mesmo tempo todo lugar e lugar nenhum.

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Herzog vaga por esse terreno como um usuário da internet; nunca se demora em detalhes e se delicia com links e desvios, às vezes voltando atrás, às vezes descobrindo algo verdadeiramente estranho. Nenhuma de suas descobertas irá surpreender aqueles que já vivem nessa alucinação consensual ou que seguem as notícias do futuro. Mas também não é de se surpreender que aqueles que vivem na internet não estão acostumados a sentar por duas horas, sem celular, encarando a verdade de frente.

Por onde começar? No primeiro nó dessa rede, na sala da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA, onde a primeira mensagem foi enviada:

Depois de deslizar majestosamente por um corredor descrito por Herzog como "repulsivo", encontramos Leonard Kleinrock, o engenheiro que ajudou a elaborar o código da internet, em frente ao modem obsoleto responsável pelo primeiro contato com o outro mundo (o título do documentário vem da acidental porém mais do que adequada primeira mensagem: apenas as duas primeiras letras da palavra LOGIN foram digitadas antes que o sistema travasse). A sala é desagradável e sombria, mas a narração nos informa que "estamos em um local sagrado", construído em torno de uma máquina "feia ao ponto da beleza". Kleinrock bate no modem para comprovar sua resistência de padrão militar.

Somos lembrados de que, embora a internet pareça uma benção divina — pensem em sua onipresença, sua inevitabilidade e a devoção zelosa que ela inspira — seu âmago e sua origem não poderiam ser mais humanos: evolutiva, defeituosa e feia, tão complexa e problemática quanto seus antepassados, as redes rodoviárias, ferroviárias e elétricas. Para início de conversa, ela é feita de tubos.

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E mesmo assim, essa Meca rudimentar é apenas a casca de um sonho etéreo. "A internet ainda não chegou onde eu queria", confessa Kleinrock, na estranha segunda parte do filme, sentado em frente ao modem gigante e decrépito. "Ela ainda não é invisível", completa.

Mas ela está chegando lá. Nós já nos codificamos nas redes invisíveis que regem a internet e nos classificam, nos categorizam, nos vigiam. Nós somos o "alvo", no vocabulário publicitário — ou na terminologia militar — de espiões e drones, hackers e anunciantes.

Por coincidência, Lo é um desses produtos do marketing digital. O documentário começou como uma série de curtas financiados pela NetScout, uma empresa de gestão e aplicação de redes. Ao que tudo indica, Herzog não é apenas um mestre do cinema, mas também um adepto dos novos modelos de patrocínio: ele dirigiu um documentário de 30 minutos sobre os perigos da direção desatenta financiado pela AT&T, e um documentário sobre a banda The Killers financiado pela American Express e pela VEVO.

Dessa vez, Herzog compreendeu que havia mais a ser explorado, convencendo a NetScout a financiar um documentário que seria editado por ele mesmo (Herzog diz que a NetScout exigiu apenas uma mudança: que ele retirasse os comentários mais ofensivos do filme, uma decisão acatada pelo diretor; falaremos mais sobre isso à frente.)

Os muitos personagens do filme (em sua grande maioria homens brancos e velhos) sentam-se em frente às câmeras, narrando e profetizando uma série de coisas interessantes: em outras palavras, algo parecido com a internet. Herzog não está muito interessado no que essas pessoas fizeram, em seus negócios ou em suas opiniões políticas — somos convidados a inferir essas informações, pesquisá-las ou a assistir a filmes como All Watched Over By Machines Of Loving Grace, do diretor Adam Curtis.

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Herzog está mais interessado em conversar com seus entrevistados, e nas eventuais coisas herzogianas que elas têm a dizer. Após o lendário hacker Kevin Mitnick agraciar o diretor com a história de uma de suas invasões magistrais, onde ele conseguiu informações armado apenas com sua "lábia", Herzog intervêm: "mas você não vendeu as informações — era só curiosidade, só diversão!". Mitinick concorda. "Não! Era um troféu!". Hackear é como o cinema e a internet. Sua forças-motoras são a diversão, o fascínio, a curiosidade, a aventura. A internet é a humanidade.

Dizem que uma visita a Ted Nelson convenceu Herzog de que esse documentário era mais do que um conteúdo patrocinado; ele era um longa necessário sobre uma importante dimensão humana. Nelson, o suposto criador do termo hipertexto (e de termos como hipermídia, transclusão, virtualidade e intertwingularity), foi um dos criadores de um outro modelo de internet, o Projeto Xanadu, no qual os links entres as páginas seriam muito mais visíveis. Mas com o crescimento da internet como conhecemos, as ideias de Nelson fizeram com que ele ficasse conhecido como louco. "Para nós", diz Herzog para a câmera, "você parece ser a única pessoa por aqui".

Nelson, aliviado, se desmancha em sua cadeira. "Ninguém nunca disse isso para mim", diz ele, sorrindo. Herzog o agradece e aperta sua mão. Nelson pega sua câmera e tira uma foto.

O ponto é que a internet não estava fadada a ser como é hoje. Isso é algo que esquecemos quando o assunto é tecnologia. Apesar de todas as metáforas envolvendo nuvens e água, a internet não é fluida, tampouco livre: ela é uma coisa material responsável por uma enorme pegada ecológica e dispêndio monetário, criada com base em decisões feitas por homens brancos financiados pelo governo ou por empresas, com boas e até nobres intenções — ou o contrário disso.

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Em princípio, a internet é uma entidade sem dono, mas já houve momentos em que ela — ou parte dela — poderia ter sido patenteada e controlada (e se a internet não tivesse sido criada por um pesquisador em um laboratório do governo, mas sim por um jovem precoce em um dormitório de Harvard?). Pense nisso e lembre-se que atualmente as grandes empresas que não tiveram a chance de inventar a internet estão dominando, consolidando e cercando partes dela.

A internet (atenção para o "i" minúsculo, como instituído este ano pela Associated Press) é, às vezes, fluída como água ou vento. Nela surfamos, nela respiramos, nela mergulhamos, nela nos afogamos. Em Green Bank, no estado de West Virginia, Herzog conhece as pessoas avessas à radiação que vivem na Zona Nacional de Silêncio Radiofônico, onde ondas de wifi, celular e rádio são proibidas, liberando o ar para as transmissões do magnífico Observatório de Green Bank.

Há algo de doce na forma como eles interagem com a natureza, lêem ou tocam violão e banjo, ainda que eles estejam vivendo longe de suas famílias. Há também as medidas impostas a viciados em internet como parte da terapia oferecida em um centro de tratamento localizado em uma floresta próxima a Seattle, onde Herzog vai para retratar os riscos do acesso indiscriminado à informação.

Leonard Kleinrock com o primeiro IMP. UCLA. Crédito: Magnolia Pictures

Na única cena da seção intitulada THE DARK SIDE, pais enlutados contam como sua filha morreu em um acidente de carro gravíssimo, e como fotos de seu corpo mutilado — tiradas por um socorrista e enviadas para um grupo de amigos — chegaram à internet, se tornando um meme global e inspirando trolls a perseguirem e assediarem os familiares da moça. "Eu sempre acreditei que a Internet é uma manifestação do Anticristo", diz a mãe da jovem.

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Tal qual a humanidade, a internet pode ser cruel, e Herzog aborda suas perversidades da mesma forma que reagimos a elas quando estamos online: com parte fascínio, parte repulsa. Mas isso não quer dizer que Herzog não canta as glórias da internet. Prevenir acidentes de carros, educar as massas, impedir a transmissão de doenças — esses são os objetivos de uma série de inovações apresentadas a Herzog.

Existem também metas como vencer os campeões de uma Copa do Mundo — o sonho de uma comunidade de roboticistas que se dedicam à criação de máquinas autômanas. O filme também mostra como há, na internet, companheirismo e afeição reais. Herzog faz a pergunta fundamental a um estudante-pesquisador do laboratório de robótica de Carnegie Mellon e membro da equipe criadora do premiado Robot 8. "Sim, nós amamos o Robot 8 de verdade".

Por enquanto, esse amor — nada parecido com um amor de contos de fadas — não é correspondido. Os robôs ainda não são muito inteligentes, admite outro roboticista ("Vai ser ótimo quando criarmos um robô com a inteligência de uma barata"). Mas é possível, e até provável, que os robôs e a internet irão um dia tomar suas próprias decisões — e muito mais. Na abertura do documentário, Herzog cita a ideia do general prussiano e teórico da guerra Carl von Klausowitz de que "às vezes a guerra sonha a si mesma", propondo em seguida a seguinte questão: "será que a internet irá sonhar consigo mesma?"

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Essa é, muito provavelmente, a grande questão filosófica relacionada à inteligência artificial; em uma só frase, questionamos o que são os sonhos, como os cérebros funcionam e o que é a consciência. Mas nas palavras de Herzog, "acredito que propor uma pergunta é, muitas vezes, mais importante do que descobrir uma resposta".

Quanto a essa questão, minha resposta favorita vem do sempre sensato Jonathan Zittrain, professor de Harvard. "Tim Berners Lee criou o que conhecemos como World Wide Web e decidiu não registrar sua patente ou seus direitos autorais, permitindo que algumas pessoas agissem como servidores e outras como clientes, o que resultou nos sites que temos hoje. A web como a conhecemos é a internet sonhando a si mesma."

É bom lembrar que essa fantástica série de eventos não foi um milagre tecnológico, mas sim um processo evolutivo guiado por seres vivos baseados em carbono. E ainda assim, dado o avanço exponencial da computação e da inteligência artificial, temos sinais de que, barata ou não, essa evolução está seguindo um ritmo que não conseguimos acompanhar. Os únicos capazes de aprender algo com um acidente de carro são os motoristas envolvidos, aponta Thrum. Mas um carro robótico pode compartilhar uma experiência construtiva com outros carros instantaneamente, fazendo com que eles nunca mais cometam aquele mesmo erro. A internet já nos permite fazer algo parecido, e a tendência é que isso acontece cada vez mais rápido. Esse é o sonho cibernético: tudo e todos conectados o tempo todo por meio não apenas de uma internet das coisas, mas de uma internet de mentes.

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Mas, quando pudermos tuitar nossos pensamentos, como profetiza um cientista entrevistado no filme, quando nos aproximarmos cada vez mais do cérebro global, da mente coletiva, da fantasia uniforme, será que o mundo real se tornará a fonte final de atrito?

Em uma época na qual todos desejos e necessidades serão supridos e até mesmo antecipados, o que acontecerá com nossas almas, com a empatia, com a ideia de comunidade?

Uma internet das coisas que conhece nossos sentimentos e satisfaz nossas vontades pode resultar não apenas em carros e robôs inteligentes, propõe a cabeça flutuante de Herzog, mas também em um mundo cada vez mais egocêntrico. Cada necessidade será saciada; a maior parte dos males, sanada; o prazer instantâneo será cada vez mais imediato. Até lá, de qualquer forma, é provável que já possamos fugir para Marte.

Antes que Musk complete sua frase, Herzog o interrompe para pedir uma passagem só de ida ao planeta vermelho. Pouco depois vemos, do mar, a silhueta da cidade de Chicago, agora abandonada. Em uma divagação contrafactual, Herzog imagina um futuro pós-êxodo planetário, em seguida chamando a atenção para "um grupo de retardatários", um aglomerado de monges budistas andando por aí com suas vestes laranjas, muitos deles absortos em seus celulares. "Os monges pararam de meditar? Será que eles pararam de rezar?", se pergunta Herzog. "Acho que eles estão tuitando".

Os jovens de hoje, lamenta Kleinrock em certo ponto do filme, "pensam em números e não em ideias; eles não entendem conceitos, e isso é um problema". O homem que ajudou a criar a internet e que lamenta o fato dela não ser completamente universal também se arrepende de certos efeitos colaterais causados por sua popularidade. "Os computadores — e de certa forma a Internet — são os piores inimigos do pensamento crítico", diz. Por mais que sua abordagem seja por vezes superficial e volátil, Lo and Behold é uma ode a esse tipo de pensamento, mais especificamente a aquilo que molda nosso pensamento.

Em certo momento, Herzog pede que Musk fale um pouco sobre seus sonhos. "Não lembro dos meus sonhos bons. Só lembro dos pesadelos". Musk não descreve esses pesadelos, se limitando a narrar uma de suas visões pessimistas. Musk não acredita que a inteligência artificial irá estabelecer suas próprias regras, mas sim que ela irá seguir os comandos de seus donos. Mesmo a mais nobre das intenções pode ter um resultado ruim. Por exemplo, "se eu fosse responsável por um fundo de cobertura, ou por um fundo de investimentos, eu programaria minhas máquinas para maximizar o valor do meu portfólio. A melhor forma de fazer isso é diminuir as ações voltadas para bens de consumo, aumentar as ações de armamentos e começar uma guerra. E isso", acrescenta, "seria, é claro, muito ruim".

O maior perigo, pelo menos por enquanto, não são os computadores inteligentes, ou mesmo a internet: somos nós mesmos. Herzog é mais poeta que documentarista: seu trabalho é isolar pedaços da realidade, analisando-os de perto, levando as metáforas e a linguagem a seu limite para que possamos vê-los sob uma nova perspectiva. E o que vemos é algo repulsivo e estranho, confuso e empolgante: o lugar onde moramos e que podemos, eventualmente, vir a amar.

Tradução: Ananda Pieratti