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Tecnologia

​A Ciência em Marte Versus 'Perdido em Marte'

A ficção científica sobre o planeta vermelho está nos tornando ignorantes na ciência de verdade?
Crédito: Divulgação

Nesta semana, a NASA divulgou que pesquisadores encontraram evidências de um fluxo de água em Marte. A internet ficou desapontada. Aqueles que acompanham as ciências espaciais haviam suposto que o anúncio seria feito; já aqueles que poderiam ficar surpresos com a notícia tinham que ler tudo com muita atenção para entender por que a descoberta era grande coisa, sim.

O programa de TV The Daily Show with Trevor Noah estreou com esta descoberta. Noah discutia o ocorrido com o novo "correspondente marciano sênior" Roy Wood Jr., que de cara expressava desinteresse. "De tantos em tantos anos em Marte a NASA encontra um rosto na terra, uma marca de pneu, agora um pequeno escoamento marciano. Água, Trevor? Eles querem que a gente se empolgue com a merd* da água?!", disse.

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O anúncio se deu na mesma semana que a campanha pelo blockbuster Perdido em Marte chegava ao ápice. Nos anúncios, sobre o rosto vigoroso de Matt Damon, se via a frase: "Tragam-no para casa". O mote do filme é mais ou menos isso: o astronauta perdido Mark Watney logo descobre que Marte é um lixo.

Como lidar com o desapontamento coletivo sobre o planeta Marte de verdade e a empolgação com a ficção marciana? Além disso, como lidar com a empolgação da NASA para irmos até a Marte enquanto Perdido em Marte foca na volta para casa?

A cientista planetária Natalie Cabrol, ciente do fato de que o anúncio da NASA não recebeu os devidos louros, escreve que a descoberta de um fluxo de água em Marte foi importantíssima porém muito mal representada nas manchetes. O evento, diz, resolve o mistério das linhas na superfície do planeta com a satisfatória resposta de que a causa é a água.

Segundo ela, agora, depois de anos de coleta de imagens, podemos dizer "mistério resolvido!". Vale ressaltar que as fotos por si só não seriam o suficiente para encerrar o caso. Também foi necessário coletar dados espectrais e mineralógicos e, depois, comparar com evidências convergentes. O foco era a resiliência de uma equipe que fez o melhor possível em termos científicos testando hipóteses a partir de milhares de observações.

A ciência, em outras palavras, é lenta e meticulosa. A evidência de água em Marte não surge na forma de uma foto de uma bela lagoa azul, mas por meio da inferência combinada de diversas medidas e descobertas.

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Contraste o ritmo da descoberta de água em Marte com a aventura prometida por Perdido em Marte. Baseado em um livro que conseguiu o feito de tornar cálculos empolgantes, o filme faz nos deparamos com um retrato da ingenuidade da ciência e engenharia como empreendimentos velozes e empolgantes. Há certa genialidade na resolução de problemas de Watney. Segue uma progressão linear, acompanhada de provas imediatas de sucesso ou fracasso. Mas é muito mais empolgante do que a verdade dos laboratórios.

Quando confrontados com a realidade de que a ciência é muito mais complicada que isso, por que perdemos o interesse?

Para os cientistas que buscam evidências que confirmem a existência de água em Marte, houve um apelo imediato para o envio de mais missões, e claro, humanos, ao planeta vermelho. Na terça, seguindo os passos da NASA, a Planetary Society divulgou detalhes de sua iniciativa para colocar seres humanos em órbita ao redor de Marte. Assim como nos contrastes entre ciência de fato e na ficção, aqui também vemos opostos agindo.

Dado que o próximo grande passo da ciência pode ser mesmo colocar uma pessoa em Marte, nossos mundos ficcionais urgem para a mensagem de voltar para casa, na maioria dos casos. O teórico social francês Bruno Latour observa esta tendência no sucesso espacial de dois anos atrás, Gravidade. Ele explica:

"Para a raça humana não existe mais espaço, ao menos não uma ocupação durável do espaço. Ou seja, não há como escapar da Terra. A personagem principal, Dra. Ryan Stone, confessa em dado momento que odeia o espaço. Os personagens e os espectadores percebem que não existe mais Fronteira; nenhuma rota de fuga que não seja retornar à Terra."

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Se o tema principal de Perdido em Marte é #Tragam-NoParaCasa, então aqui temos outro exemplo de narrativa espacial geocêntrica. Essas histórias nos incitam a ir mais fundo no universo (Interestelar, Guardiões da Galáxia); não vejo este tema de retorno como representante de um zeitgeist maior que se afastaria da exploração humana do espaço.

Ambas as narrativas persistem: ansiedades coletivas são focadas na Terra e, ao mesmo tempo, em possíveis futuros humanos em outros locais.

Tomemos Elon Musk como exemplo. Ele é uma figura pública que exemplifica essa tensão. Os principais projetos dos momentos são o veículo elétrico Tesla, que promete uma era mais sustentável e verde de transportes, e SpaceX, uma promessa de fuga da Terra. A visão de Musk das viagens espaciais não se volta para o turismo, e sim para a colonização. Na escala empresarial, talvez seja possível manter ambos os direcionamentos – de se afastar ou retornar para a Terra.

Mas, ao aumentar a escala desses projetos e manter a Terra como local habitável para as espécies aqui residentes ou domar Marte para se tornar um possível lar, é preciso uma grande quantidade de dinheiro, tempo e energia. Não seria exagero questionar se ambos podem ser feitos; e por consequência, se valem nossa preocupação coletiva sobre viver ou não neste mundo.

A quantidade absurda de trabalho científico e técnico que é exigido para qualquer um dos futuros nos traz de volta à compreensão desalinhada do trabalho envolvido para feitos científicos. Nossa empolgação e interesse por estes mundos ficcionais fantásticos nos afasta dos mundos científicos menos sensacionais? Perdemos a paciência com o comprometimento exigido para colonizar Marte ou manter a Terra? Quando um filme promete aventuras de ritmo ágil, poderia a prova de água em Marte capturar adequadamente a imaginação do público?

Que fique claro que estou empolgada tanto com a ciência quanto com a ficção. E, mesmo assim, por mais que já tenha comprado meus ingressos para a estreia, ainda não li o artigo da Nature: Geoscience explicando a nova descoberta em Marte. Entre ciência e ficção, como nossa empolgação pelo último poderia se traduzir para o primeiro?

Lisa Messeri é Professora-Assistente de Ciência, Tecnologia e Sociedade no Departamento de Engenharia e Sociedade da Universidade da Virginia. Siga-a no Twitter.

Tradução: Thiago "Índio" Silva