​"A Ciência, a Tecnologia e a Inovação Não São Exclusivamente Branca e Amarela"
O historiador paulistano Carlos Eduardo Machado. Crédito: Guilherme Santana/VICE

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​"A Ciência, a Tecnologia e a Inovação Não São Exclusivamente Branca e Amarela"

Um papo com Carlos Eduardo Machado, autor do livro “Negras e Negros Inventores, Cientistas e Pioneiros", sobre como ignoramos o protagonismo histórico dos negros no campo científico.

Pequeno teste: pergunte a um universitário brasileiro quantos professores negros ele ou ela tem. Guarde a resposta um pouquinho. Antes, responda outro desafio: discorra, de cabeça, nomes de grandes inventores, cientistas, empreendedores e mestres do conhecimento vistos na sua educação. Einstein, Tesla, Santos Dumont, da Vinci, Turing… Notou a semelhança entre os dois grupos?

Há muitos anos os negros são minoria no conhecimento científico. O senso comum nos diz que a área é dominada exclusivamente por brancos e asiáticos desde que o mundo é mundo. Mas a História, se analisada com as lentes certas, é bem diferente. Foi o que constatou o historiador paulistano Carlos Eduardo Machado, de 44 anos, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da rede municipal e da Universidade São Judas Tadeu. Inconformado com as estatísticas e a exclusão da raça negra na ciência, ele tomou para si a missão de encontrar cientistas e inventores negros e negras ao longo dos séculos.

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Depois de anos de pesquisa, ele escreveu, em 2005, o livro Negras e Negros Inventores, Cientistas e Pioneiros – Contribuições para o Desenvolvimento da Humanidade, que conta os detalhes de várias tecnologias inventadas por pessoas negras, a exemplo do elevador e do ar condicionado. Hoje, além de dar palestras sobre o tema, ele atualiza sua obra – que, segundo ele, vem sendo complementada há dez anos – com novas informações que encontra no caminho. O livro tem ganhado novas edições e a próxima será lançada no primeiro semestre do ano que vem.

Para ele, o racismo na academia mora na invisibilidade dessa população nas áreas de conhecimento científico. "O racismo não é só uma discriminação ou um impedimento para alguma coisa, mas ele também se manifesta no pensamento, na forma como se pensa a sociedade", reflete o professor.

Bati um papo com ele sobre o tema e a importância de se desconstruir a visão estereotipada de metade da população do Brasil, que é negra, e reinventar seu papel na sociedade.

Como começou a sua pesquisa?

Começou com uma propaganda que vi em 1995 numa revista norte-americana chamada Ebony, que é da comunidade negra de lá. Eu trabalhava no centro de São Paulo, morava em Diadema, tinha terminado o ensino médio e me chamou muito a atenção o fato de pessoas negras terem inventado coisas na área da ciência e da tecnologia, inovação, algo que não aprendi na escola, nem no ensino fundamental, nem no médio. E também não aprendi isso na universidade. Aquilo me chamou atenção, comecei a conversar com pessoas a respeito do assunto e verifiquei que era um espanto para as pessoas. Anos depois, resolvi pesquisar na internet, em 2000, sobre cientistas negros. Mas quando eu procurava, não tinha referências. Aí resolvi escrever um livro. Eu nunca tinha escrito nada, mas pensei que seria um assunto importante porque é inédito, é inovador no Brasil. Resolvi escrever em 2005 e fiquei procurando editoras, mas elas sempre dizem não. Ainda não desisti do projeto. Conheci a consulesa geral da França, Alexandra Loras, que também tinha uma pesquisa um pouco parecida, e resolvemos centrar esforços para fazer com que esse livro acontecesse.

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Por que houve dificuldade de conseguir publicar o livro?

A dificuldade, na verdade, são duas. A primeira é o tema. Geralmente, quando se fala da população negra no Brasil, vem arte, cultura, esporte. São áreas em que a população negra tem maior visibilidade. Agora, eu falar sobre mulheres e homens negros cientistas é algo que chama a atenção e quebra um paradigma de que é o homem branco e o homem asiático que detêm esse poder, esse conhecimento. O indígena e o negro não estão associados à inteligência no senso comum. Isso é construção do racismo científico que começou no século XVIII e ainda tem ramificações no dia de hoje. As pessoas ainda pensam no negro como cultura e não como cientista.

Esse racismo na ciência persiste?

Sim, porque aprendi na escola que os cientistas eram homens e brancos, os grandes cientistas da humanidade. Quando você pergunta para as pessoas, vem naturalmente o nome de grandes cientistas. Mas ainda não vem o nome de mulheres cientistas, mulheres brancas e negras, homens negros. Então existe, sim, um olhar etnocêntrico, um olhar eurocêntrico pra ciência. Mas a humanidade não começou na Europa. O que aprendemos é isso, que tudo surgiu no continente europeu. Tudo é grego ou romano, tudo tem essa base. Mas não é verdade. Existia um mundo, existia civilização muito antes de existir civilização grega. E os gregos foram estudar no Egito. Existe aí algo que foi escondido, ocultado. Você não domina populações por meio das armas, da opressão. Você domina populações também por meio da cultura, da educação. Hoje, que seria uma época em que a gente deveria estar mais aberta a isso, ainda existem grupos, centros, faculdades, universidades, que ainda defendem determinados postulados, determinadas visões e é muito difícil de quebrar isso.

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O senhor já sofreu racismo?

Olha, no meio acadêmico, o racismo é algo tão multifacetado… Acredito que diretamente, de você ser discriminado, não me vem. Mas, assim, a partir do momento em que você se torna invisível nos estudos, nas pesquisas, quando a contribuição da população da qual você é originário não tem o destaque necessário, com uma contribuição para a ciência e a tecnologia, por exemplo, é uma forma de racismo. O racismo não é só uma discriminação ou um impedimento para alguma coisa; ele também se manifesta no pensamento, na forma como se pensa a sociedade.

Qual é o maior desafio em ser negro dentro da academia?

O maior desafio é de ver reconhecido a sua potencialidade, a sua história, o seu legado. Os africanos e africanas também produziram conhecimento ao longo do tempo. É importante dizer que o ser humano evoluiu e se espalhou na África. Os primeiros seres humanos são africanos e eles se espalharam pelo planeta. O conhecimento se originou dos africanos. Isso é ocultado, como se apenas o europeu fosse a figura importante. Precisamos descolonizar o conhecimento. Isso é algo que é um desafio, porque indígenas, africanos, asiáticos, oceânicos, todas as populações contribuíram para ciência e para tecnologia. A ciência, a tecnologia e a inovação não são exclusivamente branca e amarela. É um erro achar que os indígenas não têm conhecimento de astronomia, agricultura, de construção civil. Para você ter uma ideia, a matemática começou na África, assim como a engenharia, a filosofia, a construção de cidades, a medicina, várias áreas do conhecimento humano se desenvolveram na África. Aliás, isso é tema de um artigo que estou escrevendo.

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A base do conhecimento científico é africana então?

A base de muito do conhecimento humano é africana. Mas a escravidão de aproximadamente 400 anos e o racismo institucional, aqui no Brasil de 127 anos, esconderam, ocultaram esse legado africano, como se os africanos só fossem civilizados a partir do momento em que o homem branco chegou lá e dominou as suas terras, a partir do momento em que o homem branco chegou e escravizou essas pessoas. Mas a história é mais que isso. O que eu estou falando pra você tem a ver com o nosso imaginário, porque nós fomos educados pela escola, pela Igreja, pelos meios de comunicação, desenhos, seriados, minisséries, filmes, tudo retratando a África e os africanos como um país e como um território de pessoas selvagens, canibais. E a África é isso que estamos vendo hoje pela mídia, porque, de acordo com esse imaginário, eles são atrasados, são bárbaros, a pobreza, guerra civil, as doenças vicejam nesse lugar, não tem nada de bom nesse continente. Se você assiste à televisão todos os dias, você acaba acreditando nisso, que a África tem tudo por fazer e é o continente mais pobre, como se sempre tivesse sido assim.

Dá pra dar um exemplo de cientista negro que tenha sido muito importante?

Tem um cientista que acho muito interessante. Ele se chama George Washington Carver, é um botânico e ele nasceu na época da escravidão dos Estados Unidos e ele foi emasculado, tiraram os órgãos sexuais dele, porque a escravidão nos Estados Unidos foi super violenta, a gente não tem nem noção. Não sei se você assistiu Django, o Acorrentados, o 12 Anos de Escravidão. O negócio foi violento, como em qualquer lugar da América. Mas esse cara gostava muito de plantas, ele era fascinado pela natureza. Nos EUA teve uma Guerra Civil do norte contra o sul para acabar com a escravidão. O sul ficou destruído por causa da guerra. Morreram umas 800 mil pessoas. Nessas, o George Washington Carver pensou o seguinte, as plantações de algodão, de fumo, ficaram destruídas, como fazer para reconstruir o sul? Então ele pensou em usar culturas que eram alimentos de animais e o ser humano não comia, como por exemplo, amendoim. Hoje faz parte do cotidiano, a gente come, tem pasta de amendoim, diversas formas. Ele resolveu se basear na cultura do amendoim, mas como fazer para viabilizar economicamente isso? Como vai ter saída? Plantando amendoim, vamos fazer o quê? Então ele inventou o creme de amendoim, tinta de amendoim, borracha de amendoim, nitroglicerina de amendoim. O cara criou um monte de produtos baseados no amendoim. Depois ele foi pra soja, noz pecan, que não é muito comum aqui, mas é que nem o amendoim. Ele foi desenvolvendo coisas fantásticas sobre o amendoim. Ele foi um gênio, considerado um dos maiores botânicos. Nos EUA, ele é reconhecido, só que no restante do mundo, ninguém conhece esse cara e os feitos que ele fez. O dono da Ford considerava ele um cara fantástico, até pediu para ele trabalhar com ele, mas ele não aceitou. Ele trabalhava numa universidade negra, num quartinho, com poucos recursos, e mesmo naquele espaço pequeno, ele conseguiu inventar centenas de coisas. Ele poderia ter tomado outro rumo na vida, mas dedicou a vida à ciência. As pessoas precisam conhecer. As pessoas podem dizer, "ah, mas ele é norte americano", ok. Mas quantos dos inventores vêm de lá e a gente sabe que são pessoas brancas… Por que a gente não pode saber dos inventores negros?

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E cientistas negros brasileiros?

Tem brasileiros também que acho fantásticos, como o André Rebouças, que foi o pai da engenharia brasileira. É um cara fantástico também; na Guerra do Paraguai, ele ajudou a inventar o torpedo. Ele criou docas, estradas de ferro, portos. Além disso, ele era abolicionista e defendia que o fim da escravidão no Brasil fosse acompanhada de uma indenização, de uma política pública, o que não aconteceu. Ele acreditava que toda família negra devia ter um pedaço de terra, crédito e instrução.

Qual foi a maior dificuldade para reunir o material para o seu livro?

Boa parte desse material está em inglês e francês, então houve a necessidade de tradução desses textos, dessas imagens. Tem imagens, por exemplo, que são do século XVII, e que até hoje não foram divulgadas no século XXI. Muitas imagens tive que tirar de fontes via internet porque não tem referências na internet brasileira.

Quanto tempo levou o processo?

A primeira versão foi feita em nove meses, em 2005. Mas ao longo do tempo, fui estudando mais a fundo e fui revisando, ampliando essa pesquisa.

Como se desconstrói o racismo?

Por meio do conhecimento. O meu livro é uma possibilidade de desconstruir esse imaginário, dentro outras referências. Quando pesquisei para esse livro, as fontes são inglesas e francesas, mas tem muita coisa em português, até em Portugal, mas que não foi divulgado. É conhecer. Hoje, a internet possibilita o conhecer de uma forma mais ampla para além dos meios de comunicação tradicionais. Acredito que é por esse caminho que se desconstrói a visão estereotipada e que está há séculos aí criando vítimas desse sistema, de você acreditar que a população negra não é capaz de ser engenheira, matemática, química, médico, porque o negro é bom no samba, no futebol, no funk, no pagode. É isso que eles sabem fazer, fora isso, há um estranhamento. Isso precisa acabar.