A Cidade Engolida pela Mineração
As profundezas no centro de Cerro de Pasco – "a cidade mais alta do mundo" – em que quatro de cinco crianças tiveram intoxicação. Crédito: Arthur Holland Michel

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A Cidade Engolida pela Mineração

Apesar da maior cidade mineradora do mundo estar sendo engolida, literalmente, pela mineração, a cidade ainda vive alguns momentos de alegria. No entanto, não há muita esperança.

Eu estava com fome quando parei em La Oroya, uma cidadezinha no fundo de um vale na Serra Peruana. A viagem até lá havia sido longa e cansativa, e nós ainda tínhamos muito o que percorrer. Não há muita coisa gostosa para se comer nessas altitudes, só trutas. Eu queria comer uma. Quando entramos no restaurante, passamos por uma fileira de caminhonetes Toyota brilhantes e novinhas, o modo de transporte tradicional dos engenheiros que mantêm as operações de mineração na área. Minha truta estava deliciosa. O peixe tinha um couro dourado e crocante e uma carne macia e rosada, e parecia extremamente fresco. E, muito provavelmente, sua carne estava contaminada por substâncias químicas.

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La Oroya é considerado um dos lugares mais poluídos de nossa bela Terra. O Instituto Blacksmith, um grupo ambientalista de Nova Iorque, inseriu-o em sua lista de 10 lugares mais poluídos. Um estudo de 2005 revelou que 97% das crianças menores de seis anos têm níveis tóxicos de chumbo no sangue. O vale já foi tão poluído que os morros que o cercam são agora de um branco fantasmagórico e manchado.

A causa dessa poluição é um complexo metalúrgico e de fundição que pertence hoje à Doe Run Peru, uma subsidiária da companhia de mineração americana Doe Run. Mesmo com uma dívida de US$600 milhões e preços dos metais em queda, há quem diga que o lugar está à venda. Quando ativada, a fundição — a maior fundição polimetálica das Américas — pode processar 122.000 toneladas de chumbo e 43.000 toneladas de zinco por ano.

Esse metal é enfiado em trens, que correm pela ferrovia mais alta das Américas, em direção ao porto de Callao, onde será enviado para todo o mundo e utilizado em coisas como o Iphone. A Doe Run investiu em sistemas de controle de emissões, plantas de tratamento de água e programas de saúde, desenvolvimento comunitário e programas de treinamento para o mercado de trabalho. Mas La Oroya carrega o peso de décadas de contaminação, muita da qual eventualmente acaba nas trutas, e, de forma ainda mais preocupante, nos humanos que vivem aqui.

E ainda assim, eu poderia comer outra truta. Mas nós estamos indo ainda mais fundo nesse reino de mineração, em direção a uma cidade que é, provavelmente, ainda mais tóxica e incompreensível.

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Cerro de Pasco é congelante e infinitamente cinza. A aproximadamente 4.000 metros do nível do mar, é a cidade mais alta do Peru, e com base no tamanho de sua população —cerca de 70.000 habitantes — ela afirma ser a cidade mais alta do mundo. Dá pra sentir isso na cabeça. É basicamente impossível não sentir alguma tontura por causa da pressão atmosférica do lugar. Tudo tem gosto de metal. Ninguém parece feliz. O prato tradicional da cidade é um mingau doce feito com batatas podres. É tipo um inferno.

E no seu centro, uma visão tão perturbadora quanto o resto: Paul Rojas, uma mina de dois quilômetros de extensão e 400 metros de profundidade, que está engolindo uma cidade com milhares de habitantes.

Um mapa de Cerro de Pasco. Crédito: Google.

Como vocês podem imaginar, existem desafios logísticos e ambientais consideráveis quando o problema é uma mina no centro de uma cidade — que, no caso, é uma cidade grande, com um sistema de esgoto próprio, escolas, hospitais e casas.

Um relatório do Instituto de Defesa Civil do Peru afirmou que 85% das casas localizadas na beira no penhasco são basicamente inabitáveis. Em 2007, um estudo financiado pelo Centro de Controle de Doenças dos EUA descobriu que 91% das crianças e 82% das mulheres em idade fértil tinham o nível sanguíneo de pelo menos um metal pesado acima do recomendado— uma contaminação cujos efeitos podem resultar em falência dos rins, danos ao fígado, problemas de crescimento e deficiências intelectuais.

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A cidade parece estar sendo esticada pelas beiradas. A mineração começou há centenas de anos, nos grandes depósitos de prata da área, mas esses e outros metais são cada vez mais raros. Metade do centro histórico da cidade já desapareceu, e nos últimos meses, os atuais donos da mina, uma empresa peruana chamada Volcan, vêm comprando o que resta dele, determinados em alcançar o valioso zinco, cobre e chumbo que existem abaixo do centro da cidade, e insistindo que eles não são os responsáveis pelos extensos danos ao meio-ambiente no local.

A expansão do buraco parece iminente. Na metade dos anos 2000, a empresa propôs realojar a maioria dos 67.000 habitantes para um complexo habitacional em um lugar chamado Villa de Pasco, a sete quilômtero de distância. Mas em 2009, o projeto de US$322 milhões foi congelado, em parte por causa de uma disputa sobre como esse valor seria pago. (Um plano parecido, criado há quatro décadas, também foi um fiasco.)

Agora, os moradores de Cerro de Pasco — os 4.000 deles que trabalham na mina, e o resto que dependem dela de uma forma ou de outra — estão presos em um problema paradoxal e extremamente moderno: evitar que Volcan engula a terra, mas arriscando o motor econômico monolítico da cidade; ou permitir que a mina continue a crescer, dando dinheiro aos trabalhadores locais mas prejudicando o meio-ambiente e esticando a cidade até seu limite. Apesar de poucas pessoas daqui conseguirem imaginar suas vidas sem a mina, muitos dos moradores com quem conversei disseram que a melhor opção é ir embora da cidade.

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O subúrbio de Carhuamaca fica perto de um monte de resíduos venenosos. Crédito: Eduardo Valdez

Raul Rojas, nomeado em homenagem a um minerador morto durante uma greve, foi inaugurado nos anos 50, mas a mineração existe no local desde 1630. Na metade dos anos 1800, a cidade — conhecida, na época como "A Cidade Opulente"— foi responsável por um terço da prata do Peru, e abrigou 12 vice-cônsuls da Europa e Amércias. Em 1902, a Corporação Cerro de Pasco dos EUA comprou o terreno da mina, com um financiamento gordo de uma amálgama de finnciadores, incluindo J. P. Morgan e William Randolph Hearst.

Em 1912, surgiram os primeiros relatos de abusos aos trabalhadores da mina, cometidos por um coordenador peruano considerado "o insolente e irresponsável representante do poder de uma empresa enriquecida com o sangue dos trabalhadores que ela mata sem nenhuma punição."

Cerro de Pasco foi estatizada sob o nome de Centromín-Perú em 1974, e privatizada mais uma vez em 1999, agora sob a alcunha de Volcan. A empresa já foi acusada por inspetores internacionais de não se esforçar o suficiente para proteger a saúde dos cidadões, mas seus adminsitradores responderam que não são responsáveis pelos crescentes desafios ambientais e urbanos da cidade, insistindo que eles são o resultado de 400 anos de uma administração porca.

"Essa situação revela a ausência do Estado no que se refere à indústria de mineração, na qual as empresas tem controle dos aspectos sociais, políticos e econômicos", disse Gloria Ramos, uma deputada de Pasco, para a Inter-Press em 2009. "Durante anos o direito ao trabalho foi dado em troca de uma vida atormentada pela poluição e condições insalúbres. Nós crescemos dentro de uma cultura de ganho à curto prazo que ignorou o desenvolvimento sustentável."

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Começando com a Cerro de Pasco Corporation (que também construiu a fundição em La Oroya, em 1922), os resíduos não-tratados da mina — uma gosma de pedras, terra e metais pesados que são descartados em qualquer mina a céu aberto — acabou enchendo diversos de lagos naturais dentro e fora da cidade. A prática não é mais utilizado, mas esses lagos continuam ignorados e não-despoluídos. Um dos maiores lagos, Quiulacocha, localizado ao lado de uma vila, foi abandonado em 1992, quando atingiu sua saturação. Em certas luzes, a água fica com um tom arroxeado.

O Lago Quiulacocha. Foto tirada pelo autor.

A cidade também é cheia de montanhas de resíduos sólidos, a versão seca da gosma mencionada acima. Sabe-se que esses resíduos contêm, entre outras coisas, altos níveis de cianeto. Existem depósitos desses resíduos do lado do hospital, da prisão e até mesmo das regiões residenciais da cidade.

Não é nenhum segredo que a população de Cerro de Pasco está sendo envenenada. Cerro de Pasco não tem um sistema de tratamento de água adequado, e a água que sai das pias é, muitas vezes, turva. Em 2009, um ambientalista e pesquisador italiano pegou uma amostra da água utilizada por uma boa parte da população e revelou que o líquido possui níveis elevados de zinco, chumbo, arsênico e outros metais pesados.

Todo mundo que eu entrevistei mencionou a contaminação por chumbo. Um estudo de 2009 revelou que o solo do local tem níveis de chumbo três vezes maiores do que a Agência de Proteção Ambiental dos EUA considera seguro para crianças. E, nas comunidades localizadas nas beiras so lagos contaminados, um relatório do US CDC revelou que 91% das crianças menores de 12 anos têm altos níveis de chumbo, césio e tálio no sangue.

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Os pesquisadores concluíram que as crianças nessas áreas são especialmente suscetíveis aos efeitos nocivos da contaminação por chumbo, já que elas também sofrem com a desnutrição, um mal comum nas comunidades rurais andinas. O estudo sugere que a combinação desses fatores explica porque 5.9% das crianças da área sofrem de algum tipo de atraso no desenvolvimento.

Denise Cristóbal, a prefeita de29 anos de uma das cidades à beira de um dos lagos contaminados, com seu filho. Foto tirada pelo autor.

Apesar de tudo, ainda existem alguma cor no cinza da cidade. Em 2012, um grupo de artistas viajou até Cerro de Pasco para trazer um pouco de cor às ruas, que se tornaram cinzas após séculos de extração de metais pesados.

"Sem Título", por Jade. Crédito: Eduardo Valdez

As obras de arte se tornaram uma parte deslocada, mas animadora, da cidade, tornando um lugar deprimente em uma galeria ao ar livre com uma coleção de obras de arte públicas e coloridas. (Para esclarecer: o projeto foi organizado, em parte, pelo meu irmão, o curador Maxim Holland.)

"Sem título", por Decertor. Crédito: Eduardo Valdez

Uma série de containers de reciclagem na praça central receberam etiquetas ousadas com os nomes de vários metais e substâncias químicas nocivas gerados pelo processo de mineração. Arsênico, chumbo, cianeto. As etiquetas não sobreviveram — o governo as retirou.

"Separe seu lixo ", por INK. Crédito: Maxim Holland

Uma das obras de arte que ainda resiste é o Museo del Relave — o Museu dos Resíduos — uma coletânea de objetos e ossos de animais que a o artista Ishmael Randall Weeks recolheu nos resíduos que cercam um dos lagos.

"Museu dos Resíduos", por Ishmael Randall Weeks. Crédito: Eduardo Valdez

Outro raio de luz muito bem-vindo foi minha guia, a valente artista e ativista Elizabeth Lino. Nativa de Cerro de Pasco que se mudou para Lima em busca de oportunidades melhores, Elizabeth é um produto da situação que ela tenta combater. Seu pai e seu avô trabalharam na mina. Na infância, ela vivia em um campo de mineração na beira do buraco, uma presença constante durante seus anos formativos.

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"Eu podia ver a fossa da minha janela. Eu estava bem do lado dela. Essa era minha vista", disse. A casa onde ela cresceu foi engolida pela mina em 2000.

Agora ela viaja pelo país se auto-intitulando A Última Rainha de Cerro de Pasco, angariando dinheiro para uma campanha que busca declarar a cidade parte do patrimônio cultural do país. A jornada irônica de Lino — inspirada igualmente pelo otimismo e pessimismo, idealismo e revolta — tem chamado muita atenção pelo Peru. A Rainha que ela interpreta não é apenas uma performance. Ela é um personagem tridimensional, um alter-ego: um invólucro benevolente e orgulhoso para Lino, cuja raiva intensa manifesta-se em dor física.

"Por um lado, isso me esgota, e eu gostaria de parar", ela explicou. "Mas por outro lado, eu tenho que continuar o projeto."

Imagem da performance "Romeria A La Ex-Laguna Quiulacocha" (Romaria Até o Ex-Lago Quiulacocha) por Elizabeth Lino. Crédito: Eduardo Valdez

NENHUMA LUZ NO FIM DO TÚNEL

Cerro de Pasco é um exemplo único do que acontece quando metais são extraídos em grande escala, em locais próximos à habitações populacionais, sem regulamentações expansivas e contínuas, por um longo período.

O desejo global pelo que um visitante de Cerro de Pasco descreveu em 1842 como "as vastas riquezas nas profundezas da terra" abaixo de um lugar que era, mesmo na época, uma "região inóspita, onde o solo nada gera", está crescendo cada vez mais. Cerro de Pasco pode ser a primeira grande cidade a ser engolida por uma mina a céu aberto, mas não será a última.

No mês passado, Ollanta Humala, presidente do Peru, disse à Associated Press que teve de instaurar uma lei que suaviza as legislações ambientais para empreendimentos de mineração, evitando que essas leis "matassem a galinha dos ovos de ouro do país".

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No começo de setembro, Queensland, na Austrália, aprovou uma lei que dificulta a proibição de empreendimentos de mineração: de acordo com Andrew Cripps, o ministro de mineração do país, críticas "alarmistas" aos novos empreendimentos de mineração podem trazer um déficit de bilhões de impostos para o país. A batalha entre a extração e a regulamentação ainda não acabou.

E o reinado das cidades contaminadas, tampouco. A contaminação que presenciei em Cerro de Pasco está se tornando cada vez mais comum nos EUA.

Um relatório publicado mês passado pelo Instituto Da Sociedade Civil sugere que a mineração de areia, que está crescendo graças ao fraturamento hidráulico, pode trazer riscos para as comunidades próximas. O maior perigo seriam os possíveis vazamentos de uma substância cancerígena chamada acrilamida. Empreendimentos de mineração de areia serão abertos em Illinois, Maine, Massachusetts, Michigan, Missouri, Nova York, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Pensilvânia, Tennessee, Vermont e na Virgínia.

Caminhões da Volcan. Foto tirada pelo autor.

Durante nossa viagem de volta à Lima, Elizabeth apontou para um morro chamado Toromocho, que se tornará uma das maiores minas de cobre do país. Ela explicou que o morro tem esse nome porque parece com um touro. Quando ele for derrubado, seu formato será destruído e seu nome não vai perder seu sentido.

Chinalco, uma empresa de mineração chinesa, anunciou que irá investir US$4.8 bilhões no projeto, que produzirá cerca de 300.000 toneladas de cobre por ano. Em março desse ano, o governo peruano deu ordens para que a empresa parasse seu funcionamento após descobrir que afluentes ácidos e não-tratados estavam sendo lançados em dois lagos próximos.

Essa medida foi um exemplo raro da regulamentação feroz que pode ser a única forma de impedir a criação de uma nova Cerro de Pasco, ou de uma nova La Oroya. Mesmo assim, tendo acabado de sair de um lugar que foi marcado tão profundamente, e de forma tão devastadora, por 400 anos de mineração, foi impossível olhar para esse morro — sem mencionar a fundição prestes a ser reinaugurada em La Oroya — e não imaginar, com uma sensação nauseante de terror, como esse lugar (e muitos outros) ficarão em uma década. Ou, até mesmo, em um século. Ou quatro.

Tradução: Ananda Pieratti