​A Cidade em que Todo Mundo Recebia Dinheiro de Graça
Crédito: James Cohen/Flickr

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​A Cidade em que Todo Mundo Recebia Dinheiro de Graça

Não, ninguém parou de trabalhar. Por dentro do experimento que é base do movimento a favor da renda garantida.

O lema de Dauphin, Manitoba, uma pequena cidade rural no meio do Canadá, é "tudo que você merece". O que um cidadão merece, e que efeitos esses merecimentos têm, foi uma questão central de um experimento de 40 anos que recentemente tornou-se o foco de um debate sobre assistência social da Suíça ao Vale do Silício.

Entre 1974 e 1979, o governo canadense testou o conceito de uma Garantia de Renda Básica (BIG, na sigla em inglês) por toda uma cidade, dando às pessoas dinheiro o suficiente para sobreviverem de maneira que nenhum outro local na América do Norte havia feito antes ou desde então. Durante aqueles quatro anos – até o projeto ser cancelado e sumirem com suas descobertas – os moradores mais pobres da cidade recebiam cheques mensais que complementavam qualquer que fosse a modesta renda que possuíam e os recompensavam por trabalharem mais. E durante aquele período, parecia que os efeitos da pobreza começavam a se dissipar. Idas ao médico ou ao hospital diminuíram, a saúde mental pareceu melhorar, e mais adolescentes terminavam o ensino médio.

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"Será que temos que nos comportar de certa forma para justificar a compaixão e o apoio?", Evelyn Forget, uma socióloga canadense que desenterrou algumas das descobertas do experimento de Dauphin, me questionou retoricamente quando a contatei por telefone. "Ou seria a dignidade humana o bastante?"

Críticos da garantia de renda básica insistiram que dar dinheiro aos pobres os desmotivaria à trabalhar, e apontam para estudos que mostram uma queda na vontade das pessoas de trabalharem sob programas pilotos. Mas em Dauphin – que supunha-se ser o maior experimento de seu tipo conduzido na América do Norte – os responsáveis descobriram que a principal fonte de renda da família que recebia remunerações periódicas não se sentiam menos motivados para trabalhar do que antes. Apesar de ter havido alguma redução na força de trabalho de mães de crianças pequenas e jovens ainda no ensino médio – as mães queriam passar mais tempo próximo de seus recém-nascidos e os adolescentes já não sofriam mais tanta pressão para ajudarem no sustento familiar – a queda não chegou nem perto de ser desastrosa, como previsto pelos mais céticos.

"As pessoas trabalham duro e isso ainda não é o suficiente", Doreen Henderson, que agora tem 70 anos de idade e participou do experimento, disse ao Winnipeg Free Press em 2009. Seu marido Hugh, agora com 73 anos, trabalhava como zelador enquanto ela ficava em casa cuidando de seus dois filhos. Juntos, eles criavam galinhas e cultivavam boa parte de sua própria comida. "Eles deveriam tê-lo mantido", disse ela, sobre o programa de renda mínima. "Fazia diferença de verdade."

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Os dados recuperados do "Mincome", como era chamado o experimento em Dauphin, deram ainda mais fôlego pela crescente chamada por uma espécie de renda garantida. Este ano, o Parlamento Suíço votará para estender uma renda mensal para todos os seus residentes ou não, e o governo indiano já começou a substituir programas de auxílio por transferências diretas de dinheiro. No Brasil, há o programa Bolsa Família. E o ex-Secretário do Trabalho dos EUA Robert Reich se referiu ao BIG como "quase inevitável". Nos EUA, Canadá e grande parte da Europa Oriental, onde a discussão sobre adaptar de forma radical a previdência segue na base de hipóteses, as lições ensinadas pelo caso de Dauphin podem ser especialmente relevantes para ajudar na materialização destas ideias o mais cedo possível.

Há outros argumentos convincentes em prol de uma renda garantida agora. Apesar de lucros recorde na iniciativa privada, a maioria da população não se beneficia. Os salários congelaram, a taxa de desemprego é alta, as dívidas de estudantes e de cuidados com a saúde crescem a olhos vistos, e o mercado de trabalho não recompensa aqueles já empregados com dinheiro o bastante para viver decentemente. A tal uberização da mão-de-obra – em que os trabalhadores são pagos por tarefa realizada e não um salário ou taxa estabelecida por hora – aumenta a precariedade do trabalho. (Sem contar os robôs e a inteligência artificial que cada vez mais tomam empregos.) Enquanto o conceito de atendimento médico universal e salário mínimo é debatido, discussões sobre repensar ou expandir a previdência social crescem.

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"Originalmente o interesse surgiu a partir da preocupação de que o sistema previdenciário desmotivava as pessoas à trabalharem", disse Ron Hikel, que coordenou o projeto Mincome, à uma emissora holandesa, no ano passado. Hoje, ele afirma, a motivação por trás da renda garantida é um aumento na desigualdade. "Em algum momento, a desigualdade de renda começa a interferir com a capacidade de uma pessoa estudar e cuidar da própria saúde. Ao ponto de afetar relações sociais, passando a acentuar divisões e diferenças, e há então um aumento nas patologias sociais, alcoolismo, uso de drogas, aumento no índice de doenças mentais, uma queda no fornecimento de cursos educacionais e aumento nas taxas de crime."

Nos EUA, o apoio para a renda básica veio não só da esquerda, mas, talvez surpreendentemente, da direita também, e especialmente ​dos liberais.

"Sempre houve apoio para [uma BIG] da direita política pois trata-se de um sistema menos invasivo que a maioria dos programas sociais", explicou Forget (pronuncia-se far-zhey). Thomas Paine e Martin Luther King Jr. clamaram por algo similar à renda básica, mas também o fizeram os economistas liberais seminais F.A. Hayek e Milton Friedman (Friedman se referia a ela como "imposto de renda negativo"). O Senador do Wisconsin Paul Ryan propôs combinar vários formatos de programas federais de combate à pobreza em um só fluxo de financiamento, reconhecendo que os efeitos dos ricos enriquecerem ainda mais estão ficando cada vez mais difíceis de se ignorar.

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Forget registrou uma queda nas idas ao médico, uma redução de 8,5% nos índices de hospitalização, e mais adolescentes que continuavam o Ensino Médio

Os defensores da medida argumentam que um único programa fornecendo uma renda base é mais eficiente que o atual cenário de vários projetos de previdência atuantes nos dias de hoje e a burocracia necessária para mantê-los (nos EUA atualmente existem 79 programas de previdência social, sem incluir o Medicare ou Medicaid). "Programas de assistência social pré-existentes estavam cheios de gargalos que permitiam a algumas famílias se encaixarem em dois ou mais destes enquanto outros não se encaixavam em nenhum", disse Forget.

Quando o Mincome surgiu, nos primórdios da reforma da previdência nos anos 70, algumas pessoas pensavam que o experimento feito em Dauphin poderia ser o prelúdio para um programa maior a ser introduzido por todo o Canadá. Ao sul da fronteira, havia um apoio enorme em prol da renda mínima também. Uma pesquisa realizada pela Harris Interactive para a Life Magazine constatou que 79% dos participantes apoiavam um projeto federal proposto pelo Presidente Nixon chamado de Family Assistance Plan que garantia que uma família de quatro pessoas recebesse uma renda anual de 1.600 dólares, equivalente à 10 mil dólares nos dias de hoje. O plano de Nixon (que ele insistia não ser renda garantida, mas era) foi à Câmara antes de cair nas mãos do Senado, reprovada pelos Democratas. Ainda assim, restava um quê de experimentação no ar. Quatro outros processos à respeito da renda mínima ocorreram nos EUA entre 1968 e 1975, o que aparentemente demonstrava que as horas de trabalho daqueles que receberiam o benefício valiam bem menos que o esperado.

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Mas estes experimentos foram feitos com grupos reduzidos; o que ocorreu em Dauphin foi extraordinário por ter englobado toda uma cidade. Forget, agora uma professora de Saúde Pública na Universidade de Manitoba que estuda uma série de programas de previdência social, viu nos dados do Mincome uma chance rara de examinar os feitos da renda mínima em uma escala mais ampla.

Estudante universitária em Toronto na época do experimento, ela lembra de ouvir falar sobre o mesmo durante uma aula. "Meu professor nos falava sobre este maravilhoso e importante experimento sendo conduzido em algum lugar 'no oeste' que revolucionaria a forma como eram conduzidos programas sociais."

Anos mais tarde, quando ela mesma acabou indo parar 'no oeste', começou a juntar as informações que conseguira reunir sobre de Dauphin. Após cinco anos de esforço, Forget conseguiu acesso aos dados do experimento – todos os 50 m³ dela – que haviam sido esquecidos em um armazém que pertencia aos arquivos do governo da província em Winnipeg. Desde 2005 Forget tem analisado os dados minuciosamente, comparando resultados de pesquisas realizadas com moradores de Dauphin e de cidades vizinhas da época.

A análise de Forget revelou que a distribuição de renda mínima pode ter um impacto positivo substancial na comunidade além da redução na pobreza. "As visitas ao médico dos participantes caíram, especialmente em termos de saúde mental, e mais adolescentes continuaram o Ensino Médio", ela conclui em seu artigo, "The Town with No Poverty," publicado no periódico Canadian Public Policy em 2011. Forget também documentou uma queda na hospitalização de 8,5%, indicando que uma renda mínima poderia reduzir custos com saúde pública. ( Sua pesquisa, porém, foi incapaz de comprovar afirmações de pesquisadores dos EUA que mostraram aumento nas taxas de fertilidade, neonatais positivos ou aumento na dissolução familiar de beneficiados.)

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O experimento em Dauphin nasceu um momento particularmente à esquerda da política canadense, ao passo em que o progressista e regional New Democratic Party (NDP) chegava ao poder, e Pierre Trudeau era eleito Primeiro-Ministro. O plano, traçado em 1973, exigia que dois terços do projeto, no valor de 17 milhões de dólares, fossem pagos pelo governo federal e o restante pela província.

Qualquer família ou pessoa que se encaixasse no nível de renda mais baixo estava apto a participar do projeto, com o valor variando de acordo com o porte da família, ano, e demais fontes de renda. Famílias com dois pais e dois filhos que ganhassem mais de 13 mil dólares ao ano não poderiam participar. Em 1978, de acordo com o Forget, famílias que não recebiam renda de nenhuma outra fonte receberiam entre 3.800 e 5.800 dólares canadenses anuais; aqueles com outras fontes de renda receberiam menos, em alguns casos somente 100 dólares mensais.

A temida quebra do mercado de trabalho – ou seja, pessoas deixando de trabalhar – não aconteceu. Parte disso foi planejado, diz Forget. "O Mincome foi criado de tal forma que sempre havia o incentivo para trabalhar mais horas, e não menos", porque cada dólar recebido de outras fontes reduziria o benefício em somente cinquenta centavos, enquanto outros programas de previdência não ofereciam nenhum benefício quando o beneficiado obtinha renda de outras fontes. "Se você trabalhar mais uma hora, mantém 50% do benefício que receberia de qualquer forma, então é melhor trabalhar do que não trabalhar."

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Alguns beneficiados usavam o dinheiro com produtos e gastos essenciais; outros como renda complementar para aquisição de itens que poderia lhes ajudar a aumentar seu poder de compra, como carros novos. Um dos grandes benefícios do programa era a sensação de segurança por ele proporcionada, possivelmente contrabalançando as preocupações que pesam nas cabeças dos menos favorecidos.

"E o mais importante para uma cidade dependente da agricultura com altos índices de autônomos", escreve Forget em seu artigo, "o MINCOME oferecia estabilidade e previsibilidade; as famílias sabiam que poderiam contar com algum tipo de apoio, não importando o que acontecesse com os preços na agricultura ou com o clima. Eles sabiam que doenças súbitas, deficiências ou qualquer evento econômico imprevisível não seriam financeiramente devastadores".

Apesar de toda e qualquer família em Dauphin poder participar do experimento, somente cerca de um terço tinha renda baixa o suficiente para se qualificarem. Em alguns casos, os efeitos na cidade pareciam se estender além do terço que de fato recebia o benefício. Ao observar os índices de graduação, por exemplo, Forget nota que provavelmente houve um fator de "multiplicador social" em andamento. Um estudante pode ter ganho a possibilidade de continuar na escola por conta da renda mínima, e então seus amigos cuja família não participava do programa talvez fossem influenciados a também continuarem na escola.

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"Não podemos separar os efeitos diretos dos indiretos que talvez atuem através das redes sociais ou outros mecanismos quem fazem parte ou não do mercado", explica Forget em seu artigo. "Ironicamente, a inabilidade em tornar aleatório um local de saturação, longe de ser algo a ser responsabilizado, possivelmente gerou uma reação que seria invisível em um local aleatório clássico de experimentação."

O ocorrido em Dauphin não foi o único experimento de renda mínima na América do Norte – nos anos 60, pesquisas foram feitas em Nova Jersey, Pensilvânia, Seattle e Denver – mas o Mincome foi único no sentido de ser o único experimento a disponibilizar renda para uma cidade inteira em vez de uma amostra da população escolhida aleatoriamente. Esta foi uma forma, escreve Forget, "de responder questionamentos sobre problemas administrativos e comunitários em um ambiente menos artificial".

No meio do caminho, porém, o projeto se viu diante de problemas financeiros. A economia por toda a América do Norte havia mudado drasticamente, e uma recessão, um misto de estagnação e inflação, e desempregos em níveis maiores que os esperados tornaram o projeto mais caro do que seu orçamento permitiria. Dois anos depois, tomou-se a decisão de continuar recolhendo dados, apesar de os pesquisadores não terem mais orçamento para pagar por sua análise.

Ao final de quatro anos, novas realidades econômicas como crises petroleiras haviam alterado o clima político; novos partidos subiram ao poder, com perspectivas ideológicas que rejeitavam a ideia de uma renda mínima. Enquanto o Mincome tratava-se inicialmente de um projeto piloto para um programa nacional universal, o novo governo tinha preocupações mais urgentes e abandonou o conceito. As descobertas do experimento foram então arquivadas.

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Imagens de Dauphin nos anos 70. Crédito: Leo Bunyak

Muitos de nossos serviços sociais eram baseados na noção de que existem muitos empregos de 40 horas semanais por aí, empregos de tempo integral, e que é só levar as pessoas a estes empregos e tudo ficará bem.

Em 2005, após Forget ter descoberto 1.800 caixas de registros do Mincome, ela tentou preencher os espaços em branco ao conversar com as famílias que haviam de fato participado do programa. Para evitar quebrar regras de ética que a impediriam de contatá-las diretamente, Forget plantou histórias na imprensa local e no rádio, pedindo que os beneficiados ligassem para ela. Muitos o fizeram.

"Eles achavam que aquilo tudo tinha sido muito positivo e que se fosse o caso do programa ser reintroduzido, isso também seria muito positivo. Estas pessoas consideravam o projeto útil e afirmaram que com certeza melhorava a qualidade de vida", disse Forget. "Por outro lado", ela complementou, "nem de longe era uma amostragem aleatória. Se as pessoas tivessem lembranças ruins, provavelmente não teriam me ligado".

A pesquisa metódica de Forget, porém, dá provas mais substanciais do que estas memórias e relatos. "Sou socióloga, então sempre tenho grandes esperanças de que as pessoas prestem atenção nas evidências", disse. "Há sempre um medo de que caso se introduza um programa como este, as pessoas parem de trabalhar. Temos uma quantidade razoável de provas de que não é este o caso, mas ainda há uma preocupação nesse sentido. Então acho que, às vezes, é preciso mais que provas para mudar a opinião pública."

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James Manzi, pesquisador sênior do Manhattan Institute, crê que fazer da renda mínima uma realidade seria "uma montanha complicadíssima de se escalar". Normalmente algum tipo de renda garantida ou taxa negativa já foi proposta para substituir todo ou parte do sistema previdenciário atual, e ao passo em que liberais são a favor desta ideia porque significaria menos burocracia governamental, Manzi notou que grupos em particular sofreriam impactos negativos.

"Organizações fornecedoras da previdência oferecerão resistência porque basicamente você estará dizendo que vai eliminar seus empregos por completo", disse. Ele também comentou que o custo do programa seria outro desafio a ser superado. "Qualquer análise orçamentária séria que já vi afirma que será necessário um aumento líquido nas taxas." "Mesmo que fosse gratuito, o eleitorado apoiaria esta ideia? Então não é grátis. As taxas do eleitor médio subirão."

Manzi também comentou que nos anos 90, quando a reforma previdenciária estava sendo debatida, o eleitorado era a favor de mais exigências ligadas ao trabalho e não o contrário. "As características primárias que diferem o TANF [sigla em inglês para auxílio temporário para famílias necessitadas, introduzido em 1997] do AFDC [sigla para auxílio para famílias com filhos dependentes, que operou de 1935 a 1996] é a introdução de exigências de trabalho", disse.

Sobre os dados de Dauphin, os efeitos – negativos e positivos – na disposição das pessoas de trabalharem e outros aspectos de sua vida com o auxílio da renda mínima e programa similares seguem sem solução. Mesmo estudos que pareciam mostrar uma queda em incentivos de trabalho em programas piloto de renda garantida talvez tenham sido superestimados. Como apontado por Dylan Matthews no Vox, as provas mostram que a retirada completa do trabalho era uma raridade. Pelo contrário, os trabalhadores passavam mais tempo em busca de empregos melhores. Outros talvez tenham passado mais tempo estudando. Forget notou este efeito em Dauphin, e os responsáveis pelos experimentos em Nova Jersey e Seattle-Denver mostraram aumento no índice de adolescentes que completavam o ensino médio, com índices de 25-30% e 11%, respectivamente.

Quando Forget observa o atual panorama politico, cultural e econômico, ela vê forças convergindo para criar um clima mais amigável para os experimentos de renda mínima em uma escala maior que antes.

"É uma época interessante", afirmou. "Muitos de nossos serviços sociais eram baseados na noção de que existem muitos empregos de 40 horas semanais por aí, empregos de tempo integral, e que é só levar as pessoas a estes empregos e tudo ficará bem. Claro, sabemos bem que este não é o caso, especialmente para jovens que muitas vezes se veem em empregos precários, com contratos longos sem os benefícios e apoio à longo prazo que aqueles que nós que já somos mais velhos temos como garantidos."

No contexto canadense, ao menos, ela disse: "Sou otimista o bastante para crer que em algum momento teremos uma renda garantida".

Tradução: Thiago "Índio" Silva