Daniel David Tibi Ecuador prison wrongly accused crime
Todas as fotos cortesia da Mareuil Editions. 
Viagem

Como um homem inocente sobreviveu à tortura numa prisão equatoriana

Daniel David Tibi passou 848 dias atrás das grades por acusações falsas.
Pierre Longeray
Paris, FR
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Faz vinte anos, e Daniel David Tibi não consegue esquecer a sujeira, os cadáveres, brigas e tortura. Ele está fora da prisão, mas a provação não sai da cabeça do comerciante de joias, que em setembro de 1995 foi mandado para uma das prisões mais mortais do Equador, a Penitenciária Litoral em Guayaquil. Primeiro acusado de tráfico de drogas, Tibi ficou preso por quase três anos, sem julgamento nem advogado, antes das queixas serem eventualmente retiradas. O francês diz que ele tinha dois objetivos: continuar vivo e provar sua inocência, entre corrupção desenfreada e violência.

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Tibi se encontrou comigo no 'L'Atlantique', um café no bairro parisiense de Montparnasse, e também o nome do oceano que ele cruzou ano passado para abrir um processo civil contra o governo equatoriano. Ele espera finalmente fechar um capítulo que teve um grande custo profissional e pessoal pra ele (Tibi perdeu o nascimento da filha quando estava preso). Tibi acabou sendo considerado inocente das acusações no Equador. Mais tarde, a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou o Equador responsável por violar os direitos humanos de Tibi – e de sua família – por detê-lo sem um mandato e o torturar com espancamentos, waterboarding e queimaduras de cigarro.

O rosto marcado de Tibi tem olhos de um homem que passou pelo inferno – incluindo agora uma batalha de um ano contra o câncer. Para marcar o lançamento de seu livro na França, Dans L’enfer d’une Prison Équatorienne [O inferno numa prisão equatoriana], perguntei a Tibi como ele saiu dessa com vida.

VICE: Como você sobreviveu a um lugar onde subornos e violência são a norma?

Daniel David Tibi: Acho que o que me salvou foi meu ódio profundo da injustiça. Isso foi minha motivação. Além disso, eu sabia que iria ser pai. Prometi pra mim mesmo que ia sair dali para cumprir esse papel. Isso me ajudou a manter a mente estável. Mas para sobreviver, você tem que mudar completamente seu comportamento, sua aparência e tudo mais. Você encontra pessoas que não valorizam a vida, então tem que agir de acordo. Quando as pessoas te provocam, você tem que lutar – no sentido mais literal do mundo. Especialmente quando é estrangeiro. A expectativa de vida de um prisioneiro equatoriano não é muito alta para começo de conversa, mas para um estrangeiro, é ainda menor.

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Alguma vez você quis desistir, se deixar morrer?

Em vários momentos perdi a vontade de lutar, porque fisicamente eu estava enfraquecido. Perdi muito peso. Mais de uma vez, tive certeza que estava esgotado. A cada dia, não havia garantia de que eu poderia garantir minha segurança. Eles quebraram meu rosto; me queimaram com ferro em brasa. Mas o momento mais baixo provavelmente foi quando minha namorada foi embora do Equador com meus filhos, para voltar para a França. Nesse ponto, me senti realmente sozinho no mundo.

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Daniel David Tibi toma uma injeção de morfina na prisão.

Como era seu cotidiano na prisão?

Eu tentava me ocupar. Eu fazia trabalhos de carpintaria, desenhava, consertava todo tipo de objeto, construí um violão. Aí comecei a estudar o código penal equatoriano, suas leis de narcóticos. Desse jeito pude manter um progresso no meu caso e apresentar minha apelação para tribunais superiores. Depois que confrontei o juiz que me colocou na cadeia, lentamente fui ganhando o respeito dos outros prisioneiros – e também uma sensação de segurança. Tentei explicar a eles que, claro, eu queria sair dali, mas também queria lutar contra as condições de vida em que vivíamos. Todos estávamos vivendo o mesmo pesadelo. Comecei a receber ajuda das famílias dos outros prisioneiros – e daí dos próprios prisioneiros.

Como você conseguiu pressionar o juiz?

Jornalistas equatorianos logo descobriram que minha batalha com o juiz era digna de atenção da mídia, e começaram a cobrir minha história. Fui atrás do juiz por suas inconsistências e mentiras – e havia muitas. Consegui desmascará-lo – ele não tinha nada contra mim. Então um jornalista francês do Le Monde, Alain Abellard, foi o primeiro na França a escrever sobre mim, a condenar a negligência do sistema judicial equatoriano que deteve um homem de nacionalidade francesa sem acusações, sem provas. Aí os diplomatas franceses assumiram, a coisa mais notável sendo que eles cortaram relações diplomáticas com o Equador até que eu fosse libertado.

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Daniel David Tibi com a filha o visitando na prisão.

Você lembra do dia em que foi libertado?

Foi um grande momento. Um dia, o cônsul-geral da França veio me dizer para fazer as malas; ele disse que eu sairia imediatamente. Não acreditei totalmente nele e estava com medo de sair; eu tinha me acostumado com a atmosfera nojenta. Lembro de pensar: “Vou sair – e o que faço então?”. Minha família tinha ido embora; tudo que eu tinha estava no Equador. Tive que relembrar como viver segundo códigos que eu tinha esquecido completamente.

Como você desaprendeu os comportamentos que aprendeu na prisão?

Tive que me reconstruir. Fisicamente primeiro. Apanhei no rosto com um taco de basebol. Metade do meu rosto estava destruído. Um dos meus olhos afundou. Meus dentes estavam quebrados, eles me marcaram com ferro em brasa, eu tinha úlceras. Também fiquei com problemas neurológicos, o que levou tempo para passar. Depois da recuperação física, tive que descobrir como reconstruir minha vida. Acabei voltando para o negócio de joias.

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As esmeraldas de Tibi, que ele nunca conseguiu recuperar.

Você também levou o governo equatoriano para a Corte Interamericana de Direitos Humanos – que ficou do seu lado – antes de começar um processo civil contra o Equador.

Escolher esse caminho me permitiu sair pela porta da frente, mesmo não tendo sido fácil. Verão passado, voltei para o Equador para começar os procedimentos jurídicos, então fui violentamente jogado de novo naquele ambiente. Ter que reviver aqueles dias, ver as pessoas que foram parte daquele horror… é uma experiência muito emocional. Além disso, fiz alguns inimigos durante os primeiros procedimentos. Isso significou que para voltar ao país, tive que entrar para o programa de proteção às testemunhas.

Você realmente queria melhorar o sistema legal.

Quando saí, prometi aos meus colegas detentos que os ajudaria assim que pudesse. Não tenho ódio do Equador; só quero lutar em defesa dos direitos humanos.

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Matéria originalmente publicada na VICE França.