Por Dentro do Laboratório Militar Especializado em Ebola na Libéria
Apenas técnicos de laboratório do Exército dos EUA que passaram por um treinamento especial podem entrar nessa sala, visível para o resto de nós apenas por uma janelinha na porta, no Hospital Regional Jackson D. Doe em Tappita, na Libéria. Crédito: Cheryl Hatch

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Tecnologia

Por Dentro do Laboratório Militar Especializado em Ebola na Libéria

Em certo nível, a luta contra o ebola não é nada mais do que um imenso universo de possíveis decisões, uma questão de continuar o processo iniciado por uma força maior.

O hospital parece um pequeno castelo. Mas dentro dessa remota construção no meio da selva, localizada a 320 quilômetros ao leste de Monrovia, capital da Libéria, funciona um laboratório CDC de Biossegurança Nível 3, do mesmo tipo que conduz pesquisas sobre doenças infecciosas nos Estados Unidos.

Em certo nível, a luta contra o ebola não é nada mais do que um imenso universo de possíveis decisões, uma questão de continuar o processo iniciado por uma força maior. A Unidade de Tratamento de Ebola de Tappita é um exemplo. Localizado próximo à fronteira da Costa do Marfim, o centro desafia a gravidade e a lógica. Pacientes com suspeitas da doença entram pela construção localizada em cima de um morro, e são instalados em uma grande tenda de Casos Suspeitos. Existem três saídas: o caminho principal para a ala de Casos Confirmados, umas saída de emergência que nos leva à liberdade, e uma rota direta para o necrotério. Aqui, o saneamento é tanto metafórico quanto literal; os funcionários limpam tudo com cloro constantemente, e canos levam a água contaminada pelos pacientes potencialmente doentes para a ala dos casos confirmados, e de lá para a ala inferior, onde ficam o fosso de descontaminação e os incineradores.

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Usando o humor calejado do local, os médicos e enfermeiros de Tappita brincam que todos na tenda de Casos Suspeitos esperam estar apenas com malária. Mas como provar que eles não estão contaminados com o ebola? O teste de sangue padrão é conduzido por seis equipes do Departamento de Defesa Americano, utilizando equipamentos de laboratório criados originalmente para ajudar em uma possível guerra biológica contra a União Soviética.

O atual surto do ebola é de longe o maior da história. Até 12 de janeiro de 2015, a doença havia matado 8.386 pessoas na África Ocidental, 3.515 apenas na Libéria, de acordo com o Centro de Controle e Prevenção de Doenças e a Organização Mundial da Saúde. Quando o surto estava no auge, no verão passado, o governo da Libéria e o USAID pediram às forças armadas dos EUA que ajudasem com sua "capacidade única", suas habilidades e equipamentos que outras organizações não poderiam fornecer com a pressa necessária. O Comandante Jerod Brammer e sua equipe, na época vivendo no Campo Militar de Aberdeen, em Maryland, e esperando alguma transferência, eram mais do que qualificados para a missão.

O governo chinês construiu o Hospital Regional Jackson F. Doe em Tappita, na Libéria, inaugurado em fevereiro de 2011. O exército dos EUA utiliza hoje três salas do enorme hospital para abrigar seu laboratório móvel, que processa amostras de sangue contaminados com o vírus do ebola. Crédito: Cheryl Hatch

Brammer gerencia o laboratório do ebola em Tappita. Ele entrou no Exército como um soldado de infantaria especializada, e saltou com o 173º pelotão de paraquedistas no campo Bashur, localizado no norte do Iraque, em 2003. Após servir no Afeganistão, ele voltou para a faculdade e se formou em microbiologia. Ele chefia dois outros técnicos militares no laboratório de Tappita, o Sargento Joshua Boggess, de Hometown, na Virgínia (sim, esse é o nome da cidade), e o Especialista Kayoed Ilesanmi, de Lagos, na Nigéria. Ilesanmi tem 28 anos de idade e é mestre em saúde e bem-estar.

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Nós trouxemos o equipamento necessário para testar centenas de amostras de sangue, mas parece que a localização é mais importante do que o volume testado.

O laboratório de testes de Tappita consiste em três pequenas salas do gigantesco hospital, a maior estrutura da pequena vila. De acordo com a inscrição no monumento na entrada do hospital, o governo chinês construiu o hospital há menos de quatro anos; a construção é um presente para o povo liberiano. Ao lado do hospital titânica encontra-se a Unidade de Tratamento de Ebola de Tappita; o centro é mantido por uma ONG americana, a Heart to Heart International, e funciona em uma estrutura de lona branca, compensado de madeira e cascalho.

"Quando viemos para cá, trouxemos o equipamento necessário para testar centenas de amostras de sangue", disse Brammer, "mas parece que a localização é mais importante que o volume testado."

Nós não conseguimos ver nenhum paciente: nem no hospital, nem na Unidade de de Tratamento. Nossa equipe nem consegui entrar no segundo. Vimos os funcionários, mas nenhum paciente. Se alguma amostra chegasse enquanto estivéssemos lá, Brammer disse que a primeira coisa que ele faria seria nos expulsar da tenda.

Os protocolos e regras de segurança dentro da área de testes são ainda mais rígidos do que na Unidade de Tratamento. Originalmente, laboratórios militares como este serviam para confirmar se um soldado havia sido exposto a algum agente químico, ou para testar a presença de possíveis armas biológicas soviéticas, como o antraz, a varíola e a toxina botulínica. Mas aqui na Libéria, o objetivo é confirmar se o paciente tem o vírus do ebola em apenas duas horas, ao invés dos dois dias costumeiros. Quanto mais tempo uma pessoa sem ebola permanece na Unidade de Tratamento, maiores as chances dela se contaminar.

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O Especialista. Kayode Ilesanmi, 28, de Lagos, Nigéria, veste seu macacão de proteção feito de Tyvek durante uma demonstração no Laboratório Médico do Hospital Regional Jackson F. Doe em Tappita, Libéria. Ilesanmi é um dos técnicos de laboratório militar que processa as amostras de sangue para checar a presença do vírus do ebola. Crédito: Cheryl Hatch

Do lado da entrada principal do laboratória há um coletor de madeira. É nele que as amostras de sangue são estocadas; cada tubo é vedado duas vezes e guardado em caixas térmicas. Entregadores montados em motocicletas trazem amostras de toda a região. Outras vêm da Unidade de Tratamento logo ao lado. Às vezes o chefe da emergência do hospital chinês pede testes de ebola para pacientes com pernas quebradas ou tosses leves. Quando Brammer é informado sobre a chegda de uma nova amostra, sua equipe veste os macacões e começa o dia de trabalho limpando toda a entrada do laboratório com água sanitária.

O procesos funciona assim: o laboratório é dividido entre zonas frias, mornas e quentes. (Para nossa segurança, fomos proibidos de entrar nas zonas mornas e quentes do laboratório.) Para entrar na zona quente, os funcionários usam macacões de Tyvek, três pares de luvas, uma máscara, um respirador com três filtros de carvão e galochas protetoras muito parecidas com as que eram utilizadas nos anos 80. A amostra é inserido dentro de uma câmara de isolamento, um equipamento que lembra um aquário com aberturas no formato de luvas na parte fontral. Quando Brammer ou seus auxiliares colocam a mão dentro da câmara de isolamento, cinco camadas de borracha e látex os separam do sangue contaminado. Esse é o mais perto que qualquer soldado americano chega do vírus aqui na Libéria.

Primeiramente, Brammer usa etanol para inativar o vírus do ebola, e em seguida ele isola o RNA do vírus usando a precipitação. Você se lembra das tentativas de precipitar uma substância nas aulas de química do colégio, daquela parte sólida que você tentou extrair, sem sucesso, da solução líquida? O pedacinho do RNA do possível vírus do ebola é então diluído com uma mistura salina e transferido para um tubo, para em seguida passar por uma espécie de teste de gravidez do ebola. A outra possibilidade é colocar a amostra em uma máquina RAPID para se obter a confirmação padrão, resultado de um teste de reação em cadeia da polimerase.

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O Especialista. Kayode Ilesanmi, 28, from Lagos, Nigeria, à esquerda, e o Sargento Joshua Boggess, 30, de Hometown, na Virgínia, e o Capitão Jerod Brammer, coordenam o Laboratório Médico do Hospital Regiona Jackson F. Doe em Tappita, Libéria. Como técnicos de laboratório militares, os soldados coordenam o laboratório que processa as amostras de sangue para checar a presença do vírus do ebola. Crédito: Cheryl Hatch

Na terminologia militar, RAPID é uma sigla para Dispositivo Avançado de Identificação Patogênica. O aparelho não parece muito tecnológico, e lembra um chuveiro preso dentro de uma mala. Mas ao cultivar amostras neutralizadas de vírus específicos, o equipamento pode revelar a presença — ou ausência — de patógenos. A venda de RAPIDs aumentou após os casos de contaminação por antraz em 2001, mas agora um exemplar usado custa US$2.500 no eBay.

O material precipitado é inserido no RAPID, e o operador monitor aa desinfecção da amostra, a duração de cada ciclo e o sinal que informa que o vírus está sendo duplicado com sucesso. Um pedacinho de RNA do ebola se multiplica em dois, dois viram quatro, quatro se transformam em oito. Se o crescimento pára rapidamente, sabemos que aquela amostra não está contaminada. Mas se o RNA cresce em alta velocidade, e se o nível de infecção for muito alto, o resultado é positivo.

"É assim que sabemos se alguém está realmente contaminado"

"É assim que sabemos se alguéme está realmente contaminado", disse Brammer. Ele diz isso com a frieza profissional e o tom de satisfação de um cientista, sem nenhuma apreensão por estar lidando tão intimamente com um vírus que gera tanto medo.

De certa forma, o ebola age mais como uma arma química do que uma doença. Considere as semelhanças com o VX: incrivelmente mortal, perigoso enquanto líquido e com pouco risco de contaminação pelo ar, neutralizado com cloro, luz natural e um pouco de cuidado e tempo. "As pessoas duvidaram que estivéssemos preparados para fazer esse trabalho", disse Boggess. "Nós estamos treinando para fazer esse trabalho desde que entramos no exército."

Essa história só foi possível graças à assistência do Centro Pulitzer sobre Relatórios de Crise.

Tradução: Ananda Pieratti