A Igreja Transhumanista que Tem Fé na Tecnologia
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Tecnologia

A Igreja Transhumanista que Tem Fé na Tecnologia

Criada no ano passado em Hollywood, na Flórida, a Igreja da Vida Perpétua oferece uma visão religiosa e espiritual da busca pela imortalidade

​Eu nunca imaginei que eu fosse passar uma quinta-feira à noite observando fiéis acendendo velas para pessoas congeladas em câmaras criogênicas, mas, às vezes, a vida nos faz algumas surpresas.

No começo do mês recebi um convite, pelo Facebook, para um evento de uma igreja imortalista na Flórida: o templo iria oferecer um ritual chamado Vigíl​ia dos Ressuscitados, uma cerimônia de celebração àqueles que decidiram congelar – o termo correto é criopreservar — seus corpos após a morte, com esperanças de que a tecnologia possa, algum dia, os reviver.

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Pela transmissão ao vivo, a liturgia parecia uma mistura de uma missa intimista com um evento profissional enfadonho. O sacerdote proferiu um sermão curto, porém inspirador, sobre sua conversão ao imortalismo. Após isso, Bill Faloon — fundador da igreja e um palestrante muito mais objetivo — subiu no palanque para dar uma palestra sobre a história da criogenia, usando vários slides de PowerPoint no processo. Os fiéis se levantaram e acenderam velas para homenagear aqueles que foram corajosos o suficiente para desafiar a morte.

Os alto-falantes tocavam músicas como Forever Young, da banda Alphaville. Um tela mostrava fotos, nomes e informações sobre pessoas que foram criopreservadas (um resumo do "primeiro ciclo terreno" dos crionitas, nas palavras do sacerdote). Finalmente, o sacerdote agradeceu a todos, incluindo as três empresas de criogenia envolvidas no evento, e se despediu.

Para ser sincero, o PowerPoint destruiu qualquer resquício de solenidade. É uma pena, especialmente se considerarmos que a Vigília dos Ressuscitados é um dos poucos rituais da jovem Igreja da Vida Per​pétua. Criada no ano passado em Hollywood, na Flórida, a igreja oferece uma visão religiosa e espiritual da busca pela imortalidade, interpretando as tentativas futuristas de impedir o​ envelhecimento como uma forma de transformar a Terra no Jardim do Éden.

O sermão proferido por Neal Van de Ree na Vigília dos Ressuscitados de 2013 (o vídeo da edição de 2014 ainda não está disponível).

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A igreja possui um símbolo (uma fênix em chamas) um profeta (Nikolai Fedorov, um filósofo russo do século 19 q​ue que pregava a imortalidade e a ressurreição dos mortos) e organiza um missa mensal no qual especialistas como o gerontologista Aubrey de Grey e o empresário Martine Rothblatt são convidados para falar sobre a ciência da longevidade. A missão da igreja é estender a vida humana indefinidamente — não porque isso é algo que eles "almejam", mas sim, por ser o que "o Criador planejou para a humanidade".

Eu estava cético quanto a possibilidade do transhumanismo, com sua atitude de vamos-brincar-de-Deus e seu positivismo tecnológico, ser considerado uma religião, mas o sacerdote da Igreja da Vida Perpétua, Neal Van de Ree, acha que a ideia é bem razoável. Van de Ree é o cara alto e loiro que deu o primeiro sermão da cerimônia criogênica; para ele, até a ciência precisa de um pouco de fé.

"Nós acreditamos que não precisamos morrer", me explicou Neal em uma ligação. "Acreditamos que nesse planeta existam, nesse exato momento, pessoas e tecnologias que podem nos dar a oportunidade de viver para sempre, mas nossa crença é, na realidade, uma fé, considerando que não há nenhuma prova de que nós possamos viver eternamente algum dia."

Van de Ree me contou que a Igreja tem cerca de 500 membros, alguns dos quais assistem a missas online. Eles se encontram todos os meses para discutir temas transhumanistas, cantar e jantar, "assim como Jesus e seus apóstolos". O grupo é bem heterogêneo: muitos tem uma criação laica, mas também há uma série de membros cristãos, judeus e budistas. Como a igreja é uma "igreja suplementar", ela não proíbe afiliações a outras crenças e alguns imortalistas frequentam outros solos sagrados.

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Essa crescente comunidade é, na opinião de Van de Ree, uma das maiores conquistas da igreja.

"As estátisticas mostram que as pessoas envolvidas em igrejas e grandes comunidade costumam viver mais do que outras pessoas. Pessoas que pertencem a uma família grande, ou até a uma igreja, ou que tem um grande número de parentes para cuidar deles nos momentos de necessidade costumam viver mais, por razões óbvias", afirmou.

Aqueles que desejam a imortalidade e frequentam a igreja nunca fizeram parte de outras congregações revitalizantes. "Os imortalistas ainda não alcançaram a imortalidade, mas estão tentando chegar lá", ele acrescentou. "Dessa forma, ter uma grande família é importante para eles e é isso que nós oferecemos."

William "Bill" F​aloon, fundador da igreja e o homem que fez o discurso cheio de slides, é um transhumanista conhecido e a igreja não é a primeira iniciativa transhumanista na qual ele se envolveu.

Faloon já trabalhou como agente funerário e em 1982 criou uma ONG chamada Life Extension Found​ation, (ou LEF, na sigla original) junto do grande defensor da criogenia, Saul Kent. A missão da LEF era (e ainda é) conscientizar a população acerca dos produtos e práticas que aumentam a longevidade, incluindo a criogenia e drogas que são proibidas nos EUA e vender "suplementos científicos" — com desconto somente para os membros pagantes.

Eu liguei para Faloon várias vezes, mas não recebi nenhuma resposta; Van de Ree tampouco foi capaz de entrar em contato com Faloon.

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Nas palavras retiradas d​e um seus perfis online, "ser controverso traz grandes consequências". A LEF já se envolveu em uma briga sangre​nta contra o FDA, que em 1987 começou a investigar Faloon e Kent pela venda de remédios proibidos, o que resultou em uma acusação dos dois pelo grande júri em 1991. Os criadores da LEF se tornaram ativistas anti-FDA, construindo um "Museu do Holo​causto do FDA" para denunciar como as autoridades os impediram de vender substâncias que poderiam salvar vidas.

As acusações da FDA foram abandonadas em 1996, após uma longa batalha legal, e, desde então, a LEF vive em prosperidade, com um patrimônio de mais de US$25 milhões. Tanto dinheiro chamou a atenção do fisco americano, que em maio de 2013 revogou a isenção f​iscal da da LEF com a justificativa de que a organização estava envolvida em atividades lucrativas.

Isto aconteceu apenas um mês antes de Faloon e Kent comprarem o prédio que hoje abriga a Igreja da Vida Perpétua, uma organização que depende das doações de seus membros ("muitas vezes, bem generosas", segundo Van de Ree) para se manter — e que, como toda igreja americana, possui isenção fi​scal. Van de Ree também disse que a LEF não está associada à Igreja, mas que Bill Faloon e Saul Kent eram "importantes na fundação da igreja, tanto em ação quanto em recursos."

Assistindo aos vídeos dos sermões mensais de Faloon, é possível ter a impressão de que ele está usando a igreja para continuar o que ele começou nos anos 80: promover curas e produtos que não estão disponíveis — ou regularizados — nos EUA. Em um víd​eo, ele grita que "as pessoas estão morrendo sem nenhuma necessidade […] porque elas não tem acesso à informações disponíveis em estudos acadêmicos, e que são censurados pelas autoridades farmacêuticas ou acadêmicas", antes de fazer um longo discurso sobre as propriedades anti-cancerígenas de substâncias conehcidas como Cimetidina e Metformina. O sermão parece mais uma proposta comercial do que uma missa; a igreja vira uma mistura engraçada do sagrado e do comercial.

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Se formos além dessa atmosfera de centro de convenções, a igreja apresenta, sim, um lado espiritual: ele está nas músi​cas, em algumas das falas de Van de Ree e na leitura de passage​ns escritas pelo profeta da igreja, Nikolai Fedorov.

Fedorov é o pai da teoria da "tarefa comum". Segundo essa doutri​na, as pessoas não devem esperar pelo Messias, mas sim "serem eles mesmos instrumentos de Deus na tarefa de trazer nossos pais de volta à vida […] e transformar as forças da natureza em um instrumento de ressureição universal e uma união de seres imortais", utilizando para isso a ciência e a manutenção da paz. Existe algo de extremamente sedutor na ideia de um ser divino esperando que os humanos vençam a morte. E a ideia de "tarefa comum" pode ser o disfarce religioso que o transhumanismo precisa para ser mais aprazível às pessoas com uma forte orientação espiritual.

"O Transhumanismo é visto como uma forma de ateísmo agressivo, e isso, em uma país tão religioso quanto os EUA, não é muito popular", disse-me Zoltan Istvan, fundador do Partido Transhumanista (e colaborador eventual do Motherboard) por Skype. "A Igreja da Vida Perpétua quer atrair pessoas religiosas para a causa transhumanista e para isso mistura a espiritualidade com a ciência. Eles foram bem-sucedidos nessa missão."

Em seu romance The Transhumanist Wager, Istvan vislumbra um futuro no qual o transhumanismo e a religiosidade se confrontam em uma guerra mundial. Ele acha que isso não é apenas fantasia. "Quando a tecnologia evoluir e as pessoas perceberem o surgimento de um novo tipo de humano, os conflitos começarão", ele disse. "Haverá um confronto, uma batalha entre a visão religiosa e a visão transhumanista. Eu tenho certeza de que isso irá acontecer."

Se isso acontecer, de qual lado a igreja imortalista irá lutar? É difícil dizer — especialmente porque eu ainda não estou certo de que a Igreja da Vida Perpétua representa um movimento religioso. Essa jovem igreja da fênix pode acabar se tornando um dos alicerces do movimento transhumanista. No momento, o contraste entre as palestras científicas com slides de PowerPoint e essa crença Fedoroviana deixam a Igreja da Vida Perpétua além de qualquer definição.

Tradução: Ananda Pieratti