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Mulheres promovem sessão de tortura por suposta talaricagem

Acusada de sair com o marido da agressora, Amanda*, de 22 anos, teve o cabelo cortado e foi espancada durante três horas.

Amanda, na delegacia, após a sessão de tortura. Foto: Lucas Dantas/VICE Brasil

Não deu nem tempo de deixar o menino de três anos no berço. Amanda*, de 22 anos, foi arrastada de casa com o filho no colo. "É um sequestro", gritou uma das mulheres que a jogou com violência no banco de trás de um carro.

A primeira parada foi em um barraco, numa quebrada de Guarulhos, na Grande São Paulo. Lá dentro, Amanda apanhou durante três horas. Foi acusada de talaricagem. Ou seja: sair com um cara comprometido. No caso, o marido de uma delas.

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Entre chutes, socos e queimaduras com bitucas de cigarro, era obrigada a confessar o "crime". Negou no começo, mas decidiu concordar com o que aquelas mulheres que nunca tinha visto na vida diziam. Pensou que assim apanharia menos. "Fui muito humilhada, eu só conseguia gritar e meu filho vendo tudo. Elas estavam me batendo por prazer."

Os gritos chamaram a atenção dos vizinhos e a sessão de tortura mudou de lugar. Elas foram a pé para um terreno, nos fundos de uma escola estadual. Ali, tudo foi filmado. O vídeo começa com a vítima sendo jogada no chão. "Senta, nessa porra!", grita uma das sequestradoras. A líder do grupo pega uma tesoura escolar e começa a cortar o cabelo de Amanda. Ela implora: "por favor, tá cortando muito. Por favor. Não, não". As agressoras mandam ela calar a boca.

As imagens foram filmadas com um celular roubado. Foto: Lucas Dantas/VICE Brasil

A ideia era postar o vídeo no Facebook como uma espécie de aviso sobre o que pode acontecer com as talaricas da região. A pancadaria havia terminado quando uma viatura da Polícia Militar encostou. Amanda estava com o cabelo picotado, além do rosto inchado de tanto apanhar e chorar. Foi tirada de perto do grupo e contou para a polícia o que aconteceu.

As agressoras acabaram presas em flagrante. "Elas assumiram. Disseram que se mexessem com elas era isso mesmo, que era assim que elas cobravam", conta o sargento Álvaro Hesse.

Parte do cabelo retalhado da vítima. Foto: Lucas Dantas/VICE Brasil

Foi só na delegacia que a ficha caiu. As cinco jovens, duas delas adolescentes de 16 e 17 anos, vão responder pelo crime de sequestro — com o agravante de ter provocado grave dano físico e psicológico à vítima. As maiores de idade podem ficar até oito anos na cadeia.

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A primeira reação delas quando viram a presença da reportagem foi de deboche. "Sou bandida agora por acaso?", disse uma delas. Meia-hora depois, a mandante do crime quis falar. Tainá de Aquino tem 20 anos e é mãe de três filhos. O mais novo tem cinco meses e a jovem chorou quando lembrou que o bebê estava sem mamar desde que ela foi presa.

Marcas da violência. Foto: Lucas Dantas/VICE Brasil

Em momento algum Tainá negou o que fez. Disse que planejou a vingança quando viu que o marido tinha adicionado Amanda no Facebook. Eles foram namorados há cinco anos e Tainá desconfiava de um reencontro. Conversou com as amigas e juntas decidiram dar um jeito na "talarica". "Sei que ela é um ser humano também e não merecia isso, mas ela estragou a minha família. Infelizmente, ele me traía, fizesse o que fizesse, mas ele era meu esposo e ela estragou tudo."

Amanda também é casada e diz que não saiu com o marido de Tainá. O pivô da confusão, aliás, não apareceu na delegacia para ajudar a mulher presa. A polícia foi atrás dele para ouvi-lo como testemunha, mas também não o encontrou. "Ele não deve saber do que aconteceu, não é possível", disse Tainá, negando para a reportagem e para si mesma ter sido abandonada naquele momento de desespero. No fim da conversa, entretanto, em meio a lágrimas, ela admitiu ter feito uma besteira. "Eu sei que quem vai se ferrar agora sou eu — eu e meus filhos."

O cabelo comprido enchia Amanda de orgulho. "É a parte de mim que mais amo, estava batendo na cintura e vai demorar um tempão pra crescer de novo." A jovem está com medo. Com medo da reação do marido, da fama de talarica, de novas retaliações. Vai dar um tempo nas redes sociais, onde adorava postar diariamente suas fotos. "Elas criaram isso na imaginação, viram minhas fotos no Facebook, um book de modelo que eu fiz. Elas disseram várias vezes: a gente vai cortar o seu cabelo, você tá se achando a princesa, a modelo, você vai ver como você vai ficar."

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MINAS VERSUS MINAS

Pensaram que Amanda estava se achando uma princesa. Picotaram o cabelo e detonaram a autoestima dela. A explicação para esse episódio cruel pode ser encontrada nos contos de fadas. Afinal, existe alguma história com mais de uma princesa como protagonista? Não. É o que explica Fhoutine Marie, militante feminista e doutora em Ciências Sociais. "Elas estão sempre disputando o coração do príncipe, o posto de esposa. A gente é criada numa sociedade em que estamos mergulhadas nisso desde pequenas. Há um incentivo desde a infância para que as mulheres fiquem competindo entre si, para ser a mais bonita, porque só pode existir uma única princesa."

Há um incentivo desde a infância para que as mulheres fiquem competindo entre si. — Fhoutine Marie

A reprodução do machismo e a competição feminina são tão naturalizadas na sociedade que nenhuma das agressoras se considera criminosa. Por isso pretendiam publicar as imagens na internet. "Elas não compreendem a gravidade do que estão fazendo porque é o que a gente vê na indústria cultural. O ápice das audiências nas novelas brasileiras é a cena de uma mulher dando porrada na outra. Seja por causa de homem ou de desavenças pessoais. As mulheres se unindo pra atacar umas às outras, as músicas que falam de afrontar as inimigas, de pisar na cara das inimigas, de humilhar", afirma Fhoutine.

Colocar uma mulher contra a outra sempre foi a grande sacada do machismo. Semear a competição e o ódio feminino faz com que Amandas e Tainás se detestem ao invés de se unir para entender que, no fundo, são mais parecidas do que pensam. São exatamente iguais nas limitações que a sociedade lhes impõe simplesmente por serem mulheres.

* Amanda é um nome fictício para preservar a identidade da vítima

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