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Kirby Farrell: Estou interessado, principalmente, naquilo que podemos chamar de "antropologia da auto-estima e identidade". Eu vejo as tatuagens como uma das formas usadas pelas pessoas para tentarem sentir-se importantes. Desenvolvo muito trabalho com Ernest Becker - já ouviste falar do livro que escreveu? Acho que ganhou um Prémio Pulitzer, chama-se The Denial of Death.Sim, já ouvi falar.
Basicamente, ele argumenta que somos os únicos animais que têm consciência do futuro, da futilidade, da morte e assim por diante. Estamos constantemente a inventar formas de nos defendermos. A cultura é uma defesa contra os sentimentos de opressão, de futilidade, ou de condenação. As culturas estão cheias de valores e beleza, que podem dar significado à tua vida de uma forma duradoura, mesmo sabendo que esta é limitada. Podemos, por isso, dizer que as tatuagens são formas de expressar culturalmente heroísmo e individualidade.
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Muita gente vai dizer que as suas tatuagens são homenagens a pessoas ou eventos. Por exemplo, tatuar a letra de uma canção. As frases, naturalmente, acabam por ser clichés inacreditavelmente sufocantes.Então, onde é que se cruzam esses dois caminhos em que, por um lado, as pessoas ao quererem expressar-se e fazer algo com significado, acabam por conseguir exactamente o oposto, fazendo aquilo que consideramos uma "má tatuagem", ou uma "tatuagem cliché"?
Acho que a fantasia, da qual temos vindo a falar, de querer ser único, especial, importante e heróico, é complicada por vivermos numa cultura que celebra esse tipo de valores. Estamos constantemente a bombardear outros países, com o objectivo de preservar a nossa "liberdade" que, para muitos, significa individualidade. Mas, ao mesmo tempo, a nossa cultura é intensamente conformista. Temos empresas que tentam constantemente gravar identificações na consciência pública. Se, por exemplo, estás a tatuar algum cliché ridículo de uma música pop, como "Eu vou amar-te para sempre", "Não sejas um imitador", ou algo deste estilo, o que realmente estás a fazer é imortalizar uma forma de entretenimento industrial na tua pele, porque os grupos de música, como já se sabe, são basicamente máquinas de fazer dinheiro, liderados por modelos e financiados pela indústria mainstream.
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Uma das razões é que somos animais sociais. Temos de ter em mente que o ego não é uma coisa. É um evento. Quando estamos em sono profundo, o ego não existe. A química cerebral necessária para sermos ego não existe. Então, partindo deste ponto de vista, só nos sentimos reais quando as outras pessoas nos reconhecem e nos tranquilizam ao reforçarem a nossa identidade. Em quase todos os rituais sociais diários, como o típico "Olá, como estás? - Bem, e tu?" Ninguém espera ouvir nenhum tipo de informação pessoal. É só uma forma de confirmar que ambos existem e se reconhecem como seres. Então, de uma certa maneira, essa é a funcionalidade das tatuagens. Elas chamam a atenção e fazem com que te sintas real, mesmo que essa atenção também te faça sentir parte de um grupo enorme. A tatuagem vai dizer-te que fazes parte de uma tribo de pessoas tatuadas, lindas e importantes. Podes até partilhar símbolos com outra pessoa. E, ao mesmo tempo, por causa do fenómeno da identificação, vais sentir-te mais inteligente do que essa pessoa ao teu lado, pois ela não tem conhecimento suficiente para embarcar na tua moda particular.Estás a querer dizer que a própria cultura é um cliché e que, ao tentarmos imitá-la, fazemos tatuagens más?
A cultura está constantemente a tentar-nos com fantasias de singularidade e heroísmo. Sentes-te tentado a comprar um carro novo, porque vai fazer-te sentir um herói da estrada. Vais destacar-te da multidão. A multidão são apenas pessoas comuns, que um dia morrerão e serão esquecidas. Mas toda a gente está a olhar para ti, tu estás no centro das atenções, tu és o herói. E, ainda, se conseguires ver as coisas um pouco mais em perspectiva, eles querem que vejas a veneração como algo normal. Convidam-te a identificar e admirar os ricos, os heróis e os famosos e, se o fizeres, as suas músicas, os seus penteados e os seus produtos acabam por ser teus. Na verdade, tu partilhas o glamour com o poder fetichista da coisa que veneras.
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Ser ou não ser enganado vai depender da importância que dás à validade dos clichés e à necessidade de identificação. Ou seja, se queres tatuar uma frase da tua música favorita, é porque sentes um tipo de ligação emocional e admiração por essa canção. Uma espécie de êxtase romântico e confortável. Tu ouves as pessoas dizerem, "tem um significado especial para mim". É uma espécie de aura emocional ao redor deste objecto.Porque é que esse sentimento é tão significativo para a nossa identidade própria.
Eu acho que em grande parte as pessoas têm medo do futuro e querem agarrar-se a algo familiar, querem reconhecer-se, precisam de um cliché que lhes seja próximo e tenha significado. Como se fosse uma rede de protecção que dá sentido à tua vida num momento em que te encontras sob pressão, ou estás muito emocionado com algo positivo. Mas a questão é a seguinte, seja qual for a razão, naquele momento o cliché não vai parecer um cliché. Vai estar cheio de significados especiais.Relacionado: Encontrámo-nos com a tatuadora Valerie Vargas.Ok, mudando de assunto. A tatuagem é uma arte milenar, chegámos a encontrar tatuagens nos primeiros humanos. Achas que existe algo inerente à natureza humana que faça com que nos queiramos tatuar?
Claro. O corpo que foi encontrado congelado e preservado nos Alpes, que terá cerca de cinco mil anos de idade, está num museu italiano e podes aparecer e dizer-lhe olá. São desenhos abstractos. Pela localização de algumas das tatuagens pensa-se que eram usadas para disfarçar a existência de problemas físicos, como a artrite. Ou que, possivelmente, estivessem relacionadas com magia. Se pensarmos um pouco, desde um certo ponto de vista, o nosso comportamento tem tendência a ser, de alguma maneira, bastante mágico. Gostamos de imaginar que os símbolos, as frases ou as nossas marcas possuem poderes especiais que nos alteram o humor e nos fazem sentir mais fortes, mais capazes e com mais auto-estima.
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Claro. Como pessoas, nós estamos muitas vezes à beira do pânico existencial. Becker disse que se nós estivéssemos prontos para ver o mundo de uma forma realista; o quão vulnerável e totalmente insignificantes somos em comparação com o cosmos, ficaríamos loucos. Por isso, precisamos constantemente de histórias que nos ajudem a reconstruir a nossa auto-estima e nos façam sentir importantes, que é, naturalmente, o que a cultura nos proporciona.Então as más tatuagens são uma representação desse mecanismo de auto-defesa.
Sim, exatamente. São representações físicas e psíquicas dos valores com que te identificas. Nós estamos neste Mundo onde voltou a aparecer este tipo de racismo recorrente e repentino que já não era visto desde os anos 60, ou mesmo desde a Guerra Civil. As condições laborais são extremamente punitivas, exigentes e despersonalizadas para as pessoas das classes mais baixas. Hoje em dia não te sentes merecedor da tua própria identidade. Então, as pessoas sentem-se pressionadas a encontrar um reforço mágico para as coisas que são constantemente esquecidas pela cultura. Vês dinheiro, consequências, mortes e culpa, mas, no entanto, o que as pessoas realmente querem é segurança e aquela sensação de controlo em termos de auto-estima e bem estar pessoal.Fazer um monte de tatuagens parece ser bastante redutor. Como é que as pessoas racionalizam a longevidade de uma tatuagem em relação à sua própria mortalidade?
Muita gente, especialmente os jovens, pensam que nunca vão envelhecer. Se a magia cultural, da qual falámos antes, realmente funcionar, podes sentir-te invencível e imortal. E isto de os adolescentes pensarem que vão viver para sempre é outro tipo de cliché; é por causa disto que, entre outras coisas, gostam de arriscar e de tomar tantas drogas. Eles não conseguem imaginar-se a crescer e a ser diferentes deste ideal cultural. Nunca têm de preocupar-se em ficar doentes, ou em apuros. Não têm de preocupar-se com a velhice, nem têm de aceitar que as perspectivas, os poderes e as fantasias vão perder-se.
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Não achas que são as duas coisas ao mesmo tempo?Acho que sim.
Tens medo, mas não queres admitir que estás com medo, isso poderia destruir a tua já frágil moral. Com a moral danificada ficas menos eficaz, menos confiante, menos produtivo, etc. Então, só tens de negar que estás com medo. Provavelmente, o mecanismo mais básico da nossa cultura é fingir que tudo está bem e que não temos medo de nada.Mas todos nós temos medo.
Sim, absolutamente. Estamos a viver um momento em que as pessoas parecem estar muito necessitadas de auto-estima, de reconhecimento e de confiança, e estão dispostas a dizer e fazer coisas muito bizarras e ridículas, só porque os faz sentir diferentes. Fá-los sentir únicos, importantes e vivos.Podes encontrar o mais recente livro de Kirby Farrell, The Psychology of Abandon: Berserk Style in American Culture,aqui.Segue Jules Suzdaltzev no Twitter.