Tornar sua casa energeticamente eficiente nos EUA pode arruinar sua vida
Ilustração por Pedro D'Apremont.

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Tornar sua casa energeticamente eficiente nos EUA pode arruinar sua vida

Norte-americanos estão se lançando no que parece ser uma boa ideia: tornar sua casa mais ecológica por pouco dinheiro. Mas isso pode virar um pesadelo.
PD
ilustração por Pedro D'Apremont
MS
Traduzido por Marina Schnoor

Matéria originalmente publicada na VICE US.

Há meses Leonard McBean ouvia que sua casa no sul de Los Angeles era uma ameaça de incêndio. Fiação de décadas atrás nunca tinha sido trocadas, uma situação comum em seu bairro de baixa renda. Numa manhã de terça, McBean pediu informações sobre o empreiteiro eletricista trabalhando na casa de um amigo. Na noite de quarta-feira, o mesmo empreiteiro – um homem que deu seu nome como Yogi – aprovou um financiamento de $18 mil para melhoras no uso de energia elétrica.

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“Eu disse 'Não tenho esse dinheiro'”, diz McBean, um motorista de ambulância aposentado de 67 anos. “Ele disse: 'Sr. McBean, não se preocupe, você não precisa pagar tudo, só $100 por mês'. Ele disse que era um programa do Obama.”

Quando assinou o contrato dois anos atrás, McBean não percebeu que estava consentindo com uma garantia sobre sua casa, significando que o condado poderia tomá-la se ele não pagasse. Ele não sabia que sua hipoteca ia pular para $400 por mês. Ele não sabia que esse acordo tornaria muito difícil conseguir vender sua casa.

“Se eu visse alguém com essa intenção, eu diria 'Não faça isso'”, disse McBean. “Vai ser um pesadelo. É uma armação.”

McBean foi iludido por um programa de nome inofensivo, o Property Assessed Clean Energy (PACE), que ajuda pessoas a financiarem painéis solares e janelas de economia de energia por pouco dinheiro. Os proprietários pagam uma sobretaxa sobre os impostos do imóvel, podendo ter atualizações de energia limpa que de outra maneira seriam inacessíveis. E a sociedade se beneficia de mais moradias eficientes energeticamente. “Você pode usar energia solar agora”, disse o presidente Obama, um defensor do PACE, ano passado. “E no processo, você ajuda os EUA na luta mundial contra as mudanças climáticas e para um futuro mais limpo e seguro para nossos filhos.”

"Essa é a próxima crise dos subprimes." - Anne Richardson. Public Counsel

Mas advogados e ativistas de habitação – alguns representando processos civis contra o financiamento PACE – alertam que vendedores agressivos enganam proprietários para financiar projetos de alto custo que eles não podem pagar. As vítimas reclamam de mão de obra porca, sobretaxas e acréscimos que tem pouco a ver com energia limpa. Elas geralmente não sabem no que se meteram até receberem uma conta exorbitante. Não pagar pode levar a execução da hipoteca. E isso está acontecendo sem supervisão da agência federal que deveria proteger os consumidores de golpes – aquela que recentemente foi tomada por um oficial de alto escalão de Trump.

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“Essa é a próxima crise dos subprimes”, disse Anne Richardson do Public Counsel de Los Angeles, a maior firma de advocacia pro bono do país. “É um desenvolvimento assustador.”


É fácil ser enganado para pensar no PACE como um programa do governo. Mas não é. A administração Obama deu sua benção para o conceito, injetou US$ 150 milhões em fundos de estímulo para startups, e publicou diretrizes de prática através do Departamento de Energia em 2010, que foram atualizadas em 2016. Mas os estados aprovaram legislações autorizando o PACE, com negócios do setor privado no comando. “O PACE usa a processo de impostos, então parece um programa patrocinado pelo governo”, disse John Rao, advogado do National Consumer Law Center.

Testado pela primeira vez em Berkeley, Califórnia, a legislação para o PACE foi aprovada em 33 estados, mas só está disponível para propriedades residenciais em três: Califórnia, Flórida e Missouri. Mais de US$ 1,5 bilhão em empréstimos residenciais PACE foram vendidos em 2016, em 2014 foram apenas $350 milhões, tornando esse o tipo de empréstimo que cresce mais rápido na história do país. (Mas os fornecedores do PACE insistem que seu produto não é um empréstimo, mas um acesso de impostos.)

A história geralmente começa com uma ligação ou alguém batendo na sua porta. Fornecedores do PACE – os principais sendo a Ygrene e a Renovate America – usam empreiteiros como força de venda. Críticos alegam que alguns desses empreiteiros procuram vizinhanças humildes com alta concentração de idosos, minorias ou falantes de espanhol. Mapas no site da Renovate America mostram um grande número de projetos PACE em lugares como o centro-sul de Los Angeles e a área mais rica View Park-Windsor Hills, conhecida como a “Bervely Hills negra”. A Renovate America nega que tenha alvos específicos.

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"Os proprietários geralmente assinam em tablets e não recebem cópia física do acordo, como seria com um empréstimo."

Os empreiteiros, que não são vendedores de hipoteca licenciados, não têm que verificar se os donos dos imóveis tem como pagar o financiamento. A única exigência é que a pessoa não tenha o nome sujo e tenha equidade de propriedade significativa, o que as empresas conseguem determinar com uma busca nos registros públicos. “Os empreiteiros sabem a elegibilidade de um cliente antes de entrar na casa deles”, diz Alysson Snow, advogada do Legal Aid Society de San Diego, Califórnia. “É como entrar numa concessionária e o vendedor saber quanto dinheiro você tem no bolso.”

Mais interessante, os três advogados com quem a VICE falou disseram que recebem propostas do PACE regularmente, porque se encaixam na demografia ou moram em áreas mais pobres. “Minha primeira pergunta é qual o número da licença do empreiteiro, e a pessoal geralmente desliga”, disse Adelaide Anderson, advogada do Public Counsel em Los Angeles.

Usando promessas de aumentar o valor da propriedade, contas mais baixas de energia e benefícios em impostos, os empreiteiros aprovam milhares de dólares de trabalho em algumas horas, segundo advogados e proprietários. “Eles visam um grupo muito vulnerável com bons vendedores que sabem como levar essas pessoas”, disse Carolyn Reilly, do Elder Law & Advocacy de San Diego. “Eles mentem descaradamente.”

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Os proprietários geralmente assinam em tablets e não recebem cópia física do acordo, como seria com um empréstimo. “Mesmo quando recebem papelada, as coisas não estão claras”, disse Anderson do Public Counsel. “Eu, uma advogada trabalhando no caso há um ano, tive dificuldade para achar o valor do pagamento nos documentos.”

Greg Frost, porta-voz da Renovate America, diz que os proprietários podem pedir cópias de tudo que assinaram, e que o processo acelerado ajudar aqueles em situação de emergência que não querem esperar semanas para ter o financiamento aprovado. “Fazemos pesquisas de satisfação com os clientes, e os níveis de satisfação estão em 90%”, disse Frost, apesar de conceder que só quem participa das pesquisas é contado. A VICE pediu para ver a pesquisa e eles disseram que elas são conduzidas por telefone. A Renovate também negou sugerir ter ligação com o exército, incluindo em chamar sua opção PACE de programa HERO, que pode sugerir que há uma ligação com o exército e que sua mão de obra é de veteranos.

Algumas dessas atualizações de “energia eficiente” têm valor duvidoso, como substituir portas dentro de casa, o que não afeta o uso de energia. Outros empreiteiros oferecem tinta de “cobertura fria”, que dizem economizar nos custos do ar-condicionado, mesmo que sua utilidade tenha sido questionada. A tinta no varejo custa $57,99 por galão, mas os advogados dizem que ela rende cobranças de milhares de dólares só em pintura.

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O caso de Leonard McBean é um bom exemplo. “Falei com vários eletricistas, não tem como uma casa de 100 metros quadrados custar US$ 18 mil”, disse Carmen Hill, consultora do Harambee Housing Information Programa que registrou o caso de McBean. “O empreiteiro disse 'Você não sabe todo o trabalho que tive que fazer'. Ele disse 'Derrubei paredes'. O eletricista disse 'Você não precisa derrubar paredes para atualizar um painel'.” Hill acrescentou que o empreiteiro também disse ter instalado isolamento nas paredes e no sótão, o que McBean contesta. O vice-presidente da Ygrene Mike Lemyre disse que o projeto “atendia as exigências e que a documentação estava em ordem”.

McBean, como muitos que se arrependem de se envolver com o PACE, é um idoso. Um caso conhecido em Los Angeles envolvia Ossie Hill, uma senhora de 86 anos com demência que subsistia com menos de US$ 1 mil por mês e foi enganada para financiar 19 janelas de vinil, remodelagem do exterior e uma cobertura para o pátio. No final das contas, o valor cobrado era de US$ 5.471,03 por ano por 20 anos, quase metade da renda anual de Hill. Uma coleção de 29 estudos de caso reunidos pelo National Consumer Law Center inclui histórias de terror parecidas, como o caso do piloto Tuskegee de 95 anos e sua esposa surda e cega, que financiaram US$ 42.800 em projetos. Mais tarde o empreiteiro processou o casal quando eles se recusaram a assinar os documentos de conclusão autorizando o pagamento dele, alegando serviço ruim.

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Fornecedores de PACE argumentam que o passo dos documentos de conclusão garante a qualidade do serviço. “Não vamos pagar um empreiteiro até que o proprietário assine os papéis”, disse Michael Middleberger, vice-presidente de conformidade da Renovate America.

Mas as vítimas reclamam que não foram informadas de que os pagamentos seriam taxados sobre os impostos de propriedade, ou que o PACE colocava sua casa como garantia. Quando a conta chega, os proprietários às vezes ficam chocados ao encontrar aumentos de milhares de dólares. Propaganda impressa obtida pelo Legal Aid de San Diego e mostrada a VICE afirma “Investir em energia solar NÃO aumenta seus impostos sob propriedade”, quando esse é exatamente o método de pagamento. A Ygrene disse que esse “não foi um comunicado apropriado ou aprovado”.

Esses contratos muitas vezes contêm penalidades para pré-pagamento, significando que os proprietários não podem pagar com antecedência os impostos e reduzir o total de cobrança. A sobretaxa continua sobre a propriedade até o pagamento total, o que torna difícil vender a casa. A maioria dos bancos evita casas com PACE, e novos compradores vão ficar relutantes em aceitar impostos de propriedade mais altos, independente das melhoras no uso de energia. A garantia geralmente é prioritária, então mesmo que os proprietários estejam em dia com a hipoteca principal, eles podem perder a casa por não pagar a sobretaxa. Essa parte faz até os bancos, aliados improváveis dos advogados de direitos do consumidor, recuarem. “Isso permite que transações de crédito privadas pulem na frente da minha garantia, usando o poder do governo local”, disse Pete Mills da Mortgage Bankers Association.

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Inadimplência vem aumentando em projetos PACE, e enquanto os fornecedores insistem que não exigiram nenhuma execução de hipoteca, eles não são os únicos com essa autoridade, já que condados podem iniciar esse processo por falta de pagamento. Além disso, advogados citam casas onde proprietários devedores desistiram e deixaram a propriedade, além de pelo menos um caso onde o credor da hipoteca pagou a sobretaxa e executou imediatamente a hipoteca.

Virtualmente todo mundo envolvido nesses acordos está protegido – menos o proprietário. Os empreiteiros são pagos quando concluem o trabalho, e os fornecedores podem vender suas seguranças para reganhar o lucro. Enquanto isso, governos dos condados podem acessar grandes penalidades de impostos e até tomar propriedades se as taxas não forem pagas. Apesar dessas garantias, o PACE tem taxas de juros muito mais altas que hipotecas, de 10% até 26,99%. “É um empréstimo de alto custo sem risco para o investidor e todo o risco para a pessoa”, disse Snow, do San Diego Legal Aid.


De sua parte, a Renovate America e a Ygrene descreveram um pré-seleção minuciosa de empreiteiros, treinamento de vendas para garantir negócios honestos e um período de teste sob a supervisão de outro empreiteiro, e investigação de reclamações e conduta inescrupulosa. Mas advogados disseram que os fornecedores meramente documentam violações em vez de restituir aos proprietários. Lemyre, da Ygrene, insistiu que a empresa já demitiu empreiteiros de PACE por fraude ou deturpação, mesmo que isso seja raro entre os quase 50 mil projetos que a empresa já concluiu.

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Mais recentemente, em resposta a reclamações, a Renovate America iniciou uma revisão de terceiros para suas práticas, e um sistema de ranqueamento de empreiteiros que, segundo eles, resultou em término de contrato com mais de 100 de seus 7 mil empreiteiros aprovados. Mas a Renovate também resistiu a pedidos de auditoria para provar que as atualizações poupam dinheiro para os proprietários, dizendo que isso atrapalharia o processo. Lamyre disse que a Ygrene encoraja os proprietários a fazer suas próprias auditorias e pesquisar pelas melhores opções, mas que não “prescreve que eles devem tomar certas medidas”.

Claro, essa é uma autorregulamentação eficiente. Os condados que lucram com os programas estão relutantes em fechá-los, apesar de Bakerfield, Califórnia, ter feito isso recentemente. “Esses condados estão se dando bem com o PACE”, disse John Rao do NCLC. E ambientalistas ainda veem esses programas como uma promoção da energia limpa. “Acho que o programa PACE pode ser reformado para ser mais benéfico”, disse RL Miller, chefe do ramo ambiental do Partido Democrata da Califórnia e presidente do Climate Hawks Vote, um grupo ativista. “Vejo o potencial para abuso, mas, ao mesmo tempo, muita gente bem-intencionada lutou por um bom programa.” E um estudo publicado pela Applied Energy este ano foi otimista sobre a eficiência de custo em promover energia solar no estado.

"Pode ser um problema manter esta casa." Leonard McBean

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O estado também tem tomado ações para reformar o programa, fazendo uma emenda no PACE em outubro para acrescentar exigências de que as empresas confirmem a renda do proprietário antes de aprovar o financiamento e impedir comissão ilícita para empreiteiros. As novas regras entram em vigor em abril, e a Renovate disse que quer usá-las como modelo para outros estados. Mas advogados argumentam que essas leis, que os fornecedores endossam, vêm com muitos buracos. E proteções dos estados tradicionalmente dão a empresas financeiras incentivo para pesquisar estados mais favoráveis para operar; a indústria de cartão de crédito é um bom exemplo disso. “Tivemos maus exemplos no passado, mas regulando queremos dar um terreno justo, então não há uma corrida para o fundo”, disse o porta-voz da Renovate Greg Frost.

O FBI vem investigando as práticas da Renovate America, apesar de a empresa insistir que não é o alvo, afirmando que a investigação tem a ver com um empreiteiro já desligado. As camadas difusas de responsabilidade tornam difícil policiar ou litigar as partes envolvidas. Alguns advogados foram atrás de empreiteiros através de conselhos de licenciamento estadual, mas isso significa que empresas como a Renovate America e a Ygrene não foram trazidas para os casos.

O supervisor mais poderoso para implementar uma vigilância real é um órgão federal: A Bureau de Proteção Financeira ao Consumidor. Mas a BPFC até agora não se envolveu, em parte por uma razão técnica obscura. Em 1969, segundo John Rao do NCLA, a Reserva Federal determinou que sobretaxas não eram empréstimos, então não exigiam respeitar regulamentações como o Truth in Lending Act. A BPFC nunca mudou essa diretriz; a agência nem aceita queixas formais sobre o PACE.

“O silêncio deles está matando casos”, disse Snow. Pete Mills, da Mortgage Bankers Association, afirmou que o BPFC geralmente “não tem problema em aumentar sua jurisdição”, mas lamentam que eles não regulamentem o PACE como uma hipoteca. Uma decisão do IRS até confirmou que interesse em alguns acessos ao PACE residencial são dedutíveis como juros de hipoteca residencial.

David Mayorga, porta-voz da BPFC, se recusou a dar qualquer informação sobre o PACE. E a agência vem lidando com uma crise de identidade nas últimas semanas. A vice-diretora Leandra English e o gerente e diretor de orçamento Mick Mulvaney reclamaram o papel de diretor interino; English perdeu o lugar para Mulvaney, mas ainda pode apelar. Enquanto isso é resolvido, é improvável que a BPFC consiga embarcar numa nova iniciativa de regulamentação. Uma lei movimentada no Senado poderia direcionar o BPFC para considerar reescrever exigências federais para o PACE, e a Renovate America e a Ygrene expressaram apoio a essa medida. Mas alguém espera que Donald Trump, que já disse que a agência era “uma piada triste”, vai aceitar isso?

Enquanto isso, proprietários de baixa renda que se sentem enganados pelo programa estão desamparados. E com o interesse das empresas em expansão, tanto em localizações como em tipos de trabalho (na Flórida, o PACE está sendo aplicado em proteções residenciais contra furacões), mais pessoas podem sofrer o destino cruel e ostensivamente ecológico de Leonard McBean.

“Pode ser um problema manter esta casa”, disse McBean, que vem tentando reduzir seus pagamentos mas se sente preso pelo contrato do PACE. “Não tenho para onde ir. Não posso viver nas ruas. Preciso me agarrar ao que tenho.”

Matéria com apoio do Economic Hardship Reporting Project .

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