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Alguém Consegue Dar uma Boa Razão para Prender Usuários de Drogas?

Apesar da ideia da legalização da venda ainda esteja longe de ser aceita, acabar com as penalidades por posse de entorpecentes é uma ideia mais mainstream que nunca.

Foto via usuário do Flickr Creativity103.

Um documento das Nações Unidas apoiando a descriminalização da posse pessoal de drogas foi vazado pelo fundador da Virgin Airlines, Richard Branson, um defensor da reforma na questão das drogas. Dias antes, o New York Times aparentemente perguntara ao "czar das drogas" do presidente Obama sobre o mesmo documento. Horas depois de ser divulgado publicamente, o relatório foi retirado e o Escritório de Drogas e Crimes da ONU (UNODC) se distanciou dele, sugerindo que o incidente não passava um "mal-entendido".

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Mas o caso é apenas um sinal de que as fundações das políticas internacionais em relação a entorpecentes estão mudando – e que até a velha guarda da ONU está flertando com o fim da guerra global às drogas.

Cinco anos atrás, você tinha de estar bem louco para sugerir que um documento assim seria sequer considerado pelos guerreiros antidrogas da ONU. Mesmo agora, o UNODC ainda financia os esforços de controle de entorpecentes de regimes opressivos como o do Irã, onde infratores não violentos de crimes relacionados a drogas são executados às centenas todo ano. Entretanto, é cada vez mais difícil argumentar coerentemente em favor da prisão de pessoas cujo único crime é posse de drogas. E, mesmo que o caso da legalização da venda ainda esteja longe de ser aceito, acabar com as penalidades por posse de entorpecentes é uma ideia mais mainstream que nunca.

Por exemplo, quando, para meu novo livro, entrevistei Nora Volkow, chefe do Instituto Nacional de Abuso de Drogas dos EUA, ela disse que, apesar de não apoiar a legalização da venda, se opunha a penalidades para usuários de drogas. "Não acredito em criminalizar o vício. Absolutamente não", ela frisou. Mesmo Kevin Sabet, um dos maiores críticos da legalização da maconha nos EUA, afirmou acreditar que as pessoas pegas com entorpecentes para uso pessoal devem receber tratamento, não prisão.

Hoje, é fácil encontrar políticos fazendo declarações que indiquem apoio à descriminalização – e cada vez mais difícil encontrar alguém apoiando explicitamente penas para posse. No mês passado, Hillary Clinton escreveu um artigo de opinião sobre heroína, resumindo sua estratégia como uma tentativa de "priorizar o tratamento em vez de prisão para infratores de drogas não violentos a fim de acabarmos com a era do encarceramento em massa". Além disso, Carly Fiorina comentou em maio: "Vício em drogas não deveria ser criminalizado… precisamos tratar isso apropriadamente". Significativamente, nenhuma das candidatas presidenciais – uma de cada partido – parecia limitar sua opinião a meras ofensas relacionadas à maconha.

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O documento da ONU mostra de maneira concisa os argumentos contra a prisão de qualquer tipo de usuário de drogas por posse. Por exemplo, ele aponta que o medo do encarceramento reduz o acesso a agulhas limpas e outras medidas de segurança, "alimentando as epidemias de AIDS e hepatite C entre os usuários – e contribuindo com mortes por esses vírus e overdose".

Segundo, prender e punir obviamente serve para estigmatizar os usuários de drogas, contribuindo para o aumento da vergonha que torna ainda mais difícil sair do vício. Como o documento aponta, a "ênfase pesada em criminalização abastece altos níveis de discriminação contra pessoas que usam drogas, como exclusão de locais de trabalho, da educação, da custódia de filhos e da saúde pública". Vale a pena mencionar que isso geralmente resulta na discriminação de certas minorias raciais e também "abastece exclusões sociais e econômicas, já que ter passagem pela cadeia pode afetar negativamente o acesso a um futuro emprego, educação, moradia, custódia de filhos e também de exercer direitos civis, como votar".

Penas criminais para posse não diminuem as taxas de uso de entorpecentes. O governo dos EUA gastou mais de US$ 121 bilhões prendendo infratores de drogas não violentos entre 1971, momento em que o presidente Nixon declarou oficialmente guerra às drogas, e 2010. Durante esse processo, 37 milhões de pessoas foram presas.

Nessa mesma época, enquanto as taxas de encarceramento saíam do controle e os gastos com a guerra às drogas eram multiplicados por 31 (mesmo depois de considerarmos a inflação), as taxas de uso de entorpecentes e vício não caíram de forma correlata aos índices citados. Por exemplo, a porcentagem de alunos do último ano do ensino médio que relatou usar qualquer droga ilegal pelo menos uma vez era de 55% em 1957; em 1981, isso subiu para 66% e agora está em 49%. O tipo mais preocupante de hábito – o uso diário – só atingiu proporções confiáveis de medida (1% ou mais) nos alunos do último ano do ensino médio em se tratando de maconha (6% em 1975). Isso atualmente está em 5,8%, segundo um estudo de 2014 do projeto Monitorando o Futuro, do governo dos EUA.

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Enquanto isso, pesquisas observando diretamente o impacto do encarceramento em pessoas viciadas não mostram que isso ajude. Na verdade, dois estudos que examinaram a correlação entre encarceramento e recuperação descobriram que ser preso reduz as chances de melhorar, nos dois casos, pela metade.

Como o documento da ONU atesta, "impor sanções criminais para uso e posse de drogas para consumo pessoal não é algo necessário nem proporcional. Pelo contrário, a punição agrava as condições comportamentais, de saúde e sociais das pessoas afetadas". De fato, o próprio conselho científico do UNODC, que inclui Volkow, concluiu no ano passado que "sanções criminais não trazem benefícios" na luta contra o vício.

Considerando todos os dados contra a criminalização, e o fato de que outros ramos da ONU – incluindo a Organização Mundial de Saúde e O Alto Comissariado pelos Direitos Humanos – já se mostraram a favor da descriminalização, a única coisa estranha é que o documento tenha sido retirado tão decisivamente.

"Acho que ninguém sabe o que realmente aconteceu", ressaltou Jag Davies, diretor de estratégias de comunicação da Drug Policy Alliance, que está acompanhando a história e escreveu sobre isso no Huffington Post.

No entanto, há algumas lições para aprender aqui. Por exemplo, mesmo que os políticos reconheçam agora que as leis atuais fracassaram, eles estão inseguros sobre como enquadrar politicamente alternativas aceitáveis. Declarações vagas como "acabar com a guerra às drogas", "reduzir o encarceramento em massa" ou "substituir punição por tratamento" parecem endossar o fim das prisões em massa de usuários por posse, embora isso não mude o fato que 1,6 milhão de americanos são presos anualmente por acusações relacionadas a entorpecentes – 83% deles por posse, não venda.

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Além disso, é muito mais fácil apoiar a descriminalização da posse de maconha (e mesmo a venda) porque a maioria das pessoas está familiarizada com a droga e sabe que seu uso não vai resultar no final dos tempos. No entanto, o público ainda tem medo de heroína, cocaína e metanfetamina – ou seja, a ideia de "legalizar" a posse pessoal dessas drogas é muito mais assustadora, mesmo quando está claro que prender as pessoas por isso não está funcionando.

Portugal começou a lidar com o problema com sucesso em 2001, descriminalizando a posse pessoal de todas as drogas e fazendo a polícia concentrar seus esforços no combate a crimes violentos e tráfico. Sob essa política, se alguém chama a atenção da polícia e tem uma pequena quantidade de drogas, o usuário é levado para uma "comissão de dissuasão". Esse grupo avalia se a pessoa é um usuário recreativo ou um viciado, recomendando – e não obrigando – tratamento se necessário. Sanções civis, como perder a carteira de motorista, às vezes são impostas, porém, na maioria dos casos, a pessoa recebe opções em vez de punição.

O resultado tem sido o oposto da orgia de drogas e caos que os oponentes previram. O uso de drogas entre adolescentes seguiu a tendência vista por toda Europa e continuou baixo. Em 2010, por exemplo, 13% dos portugueses de 15 a 16 anos relataram o uso de maconha; enquanto isso, o número nos EUA neste ano foi de 32% na mesma faixa etária.

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Mortes por overdose, no entanto, caíram dramaticamente em Portugal: a taxa agora é de 3 mortes por milhão de habitantes, muito baixa se comparada à média da União Europeia: 17,3. As taxas de HIV caíram também, com novos casos envolvendo usuários de drogas indo anualmente de 1.575 em 2000 para 78 em 2013. O número de pessoas na reabilitação subiu 41%, enquanto o número de presos por acusações de porte de drogas caiu de 44% em 1999 para 24% em 2013.

Logo, como chegar ao patamar de Portugal? Falar sobre "descriminalizar posse de drogas" ou "legalizar" pequenas quantidades ainda assusta algumas pessoas (principalmente as mais velhas). Em vez disso, precisamos enfatizar que prisão não detém o uso de drogas nem trata o vício – e que o movimento de recuperação e saúde mental de "desestigmatizar o vício" é incompatível com a prisão de pessoas que tenham os sintomas disso. Se viciados são realmente doentes, não pessoas más, prendê-los reforça a perspectiva moral, não a médica. Se o objetivo é saúde pública, a estratégia não pode ser uma conhecida por espalhar a doença. Se prender usuários de maconha não previne o vício, por que prender pessoas por uso de heroína ou cocaína ajudaria?

Deixando de fora, por enquanto, as questões cercando a venda, se alguém conseguir montar um caso baseado em dados defendendo a prisão de milhões de pessoas por posse, eu gostaria de saber.

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Tradução: Marina Schnoor.

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