Terraform
​Arte por Gustavo Torres

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Tecnologia

Terraform

Estou postando isso aqui para L que não terá acesso a mídia pelos próximos 18 meses, e todos vocês que aparentam apreciar minha memória.

Alerta de spoilers: contém spoilers de Ataque Direcionado 2: Banco de Dados do Juízo Final (Versão do Estúdio 1.0.2.1).

Aviso legal clichê: esta transcrição foi feita totalmente de cabeça. Não usei nenhum serviço de voz-para-texto. Todos os direitos reservados aos seus respectivos proprietários. Relembro eventos que presenciei diretamente de minha memória, logo esta narrativa encaixa-se nas definições de Uso Justo da cláusula de História Pessoal da DMCA14.

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Estou postando isso aqui para L que não terá acesso a mídia pelos próximos 18 meses, e todos vocês que aparentam apreciar minha memória. Se você gostar deste texto, por que não favoritá-lo? Se você pode ir lá ver o filme, então por que está lendo isso aqui? Vá lá e assista, é demais! Sei que é um remake, mas é muito bom. Voltarei ao cinema para assisti-lo de novo essa semana.

O longa começa com uma cena de destroços. É um dia ensolarado no sul da Califórnia. Uma estrada passa pelo campo, sobre uma colina verde que bem poderia ser a imagem de fundo de uma área de trabalho. Em primeiro plano, pedaços de metal retorcido, fumaça vinda de chamas trêmulas sobe aos céus, e objetos escuros e de aparência úmida (possivelmente corpos) estão espalhados entre assentos de carros e pneus por toda a estrada.

O narrador quebra o silêncio:

Não há como contabilizar as vidas destruídas pelas máquinas. Mortas por bombas lançadas por grandes aeronaves acima, não eram mais que rostos registrados em bancos de dados, agrupados e então desaparecidos. Chamavam o sistema de Banco de Dados do Juízo Final. Não cabiam recursos, nenhuma justiça contra o sistema. Existia apenas o pesadelo cotidiano de se aguardar pelos resultados.

A trilha sonora aumenta, rolam os créditos. Na tela, uma montagem de guerrilheiros escondendo armas em picapes, famílias sendo revistadas em postos de controle rodoviários, soldados tratando com brutalidade cidadãos em favelas e guetos, peruas cheias de prisioneiros sendo descarregados diante dos portões de diversas prisões, milicianos defendendo-se de gangues de homens fortes, explosões acima, e de repente, mortes.

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Narrador fala com a seriedade falsa característica de diálogos de filmes de ação:

O Banco de Dados do Juízo Final enviou drones para rastrear meu filho antes, mas dessa vez eles queriam mata-lo. A Resistência havia enviado os seus drones para protegê-lo. Era só uma questão de quem o alcançaria antes…

A câmera abre para mostrar um céu azul, flagrando um brilho metálico. A tomada rodeia um drone Ceifador, voando silenciosamente sobre a paisagem californiana. O sol reflete de sua parte superior, que abriga um radar. O nivelador da câmera gira ameaçadoramente, varrendo o terreno abaixo.

Corte para uma região suburbana. Dois adolescentes saltam de suas bicicletas e se aproximam de um caixa eletrônico. Um deles cobre a câmera da máquina com tinta de um spray. O outro insere nela um cartão e em seguida, digita um código. O caixa cospe algum dinheiro. Os jovens então montam em suas bicicletas e vão embora, pegando as cédulas e deixando o cartão para trás.

"Onde você aprendeu a clonar cartões, John?"

"Com a minha mãe. Minha mãe de verdade, digo."

"Então ela é bem massa, né?"

"Na verdade não, é completamente louca. Tentou explodir um local onde armazenavam dados na nuvem, mas levou um tiro e foi presa."

Os dois entram em um shopping. O circuito interno de TV registra o rosto de John assim que ele entra em um cyber-café. Os jovens então abrem seus notebooks e começam a jogar Counterstrike. Um close em suas telas: a luz da webcam pisca uma vez, e então segue desligada.

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Acima, um drone do tipo Ceifador inclina-se lateralmente. O shopping abaixo consiste em uma estrutura branca enorme, que lembrava vagamente uma cruz, similar a uma catedral europeia. Em um efeito de overlay de realidade aumentada vemos um mapa do interior do shopping no terraço. Um laser designa um alvo indicado no diagrama por um endereço de IP. Um míssil Hellfire é lançado pelo drone, voando em arco em direção ao terraço abaixo.

Corta para a garagem: uma van branca com uma protuberância estranha no teto se abre e quatro quadricópteros saem voando. Eles rumam ao alto, não tão rápidos quanto o míssil, mas velozmente. Vemos o brilho do mesmo à distância, aumentando de tamanho rapidamente, com um dos quadricópteros indo interceptá-lo. Enquanto o míssil se aproxima, o quadricóptero explode, enviando estilhaços em direção à ponta do projétil, que perde o controle, atingindo o terraço do shopping.

Lá dentro, John e seu amigo olham para cima enquanto as luzes se apagam. O prédio se fecha. "Ataque aéreo!" grita o amigo, enquanto os dois pegam seus notebooks e saem correndo.

O nivelador do Ceifador treme, como que reconhecendo seu erro, e imediatamente lança outros dois mísseis. Novamente, assistimos a mais um fabuloso embate em CGI: outros dois quadricópteros interceptam os mísseis, um com estilhaços, o outro ao atirar palha de mylar no ar, dispersando o laser do Ceifador, fazendo com que o míssil saia de sua trajetória e bata.

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John e o amigo se separam, pedalando o mais rápido que podem para longe do que sobrou do shopping. Vemos o Ceifador acima de John fazendo uma manobra para perseguí-lo, reestabelecendo o alvo com o laser além da nuvem de detritos. Mas o quadricóptero que atirou a palha no ar alcançou o Ceifador, esforçando-se ao máximo para alcançar a altitude necessária com suas quatro hélices. O quadricóptero assume uma posição de interceptação. Ele fica suspenso no ar. Erra a parte superior do Ceifador que protege seu radar, mas é sugado para dentro do motor, que explode, com chamas para todos os lados, enquanto o Ceifador começa a cair velozmente. Nós o vemos ir em direção à John, errando-o por pouco e acertando um ônibus. John solta um "mas que po---" ao notar as asas de um drone Ceifador em meio aos destroços, e então derrapa entrando em um beco.

Subitamente, o último quadricóptero aparece, bloqueando seu caminho. Involuntariamente John grita e vai ao chão, colocando os braços ao alto para tentar se defender de um jato de spray de pimenta que nunca chega a ser atirado. O drone pousa à sua frente, as hélices parando de rodar. John o inspeciona, vê um selo de Bluetooth Seguro em cima do aparelho, e uma chave hexadecimal escrita à caneta em um pedaço de fita dupla-face. Ele pega seu telefone e faz o procedimento de autenticação. O telefone começa a ler o script para ele com sua voz eletrônica fragmentada:

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"John Connor, eu sou o algoritmo de drone 101. Você foi marcado como alvo de extermínio, e fui incumbido de proteger você."

"Quem programou você?"

"Em partes, você. O código de direcionamento de paintball o qual você fez upload como parte de seu projeto da feira de ciências da sexta-série foi ramificado e adicionado a outros módulos por programadores da resistência. Você o lançou em formato de domínio público, então você e o resto da rede me programaram."

"Mas eu não sou parte da resistência."

"Você será. Os algoritmos do Banco de Dados de Previsão do Juízo Final analisaram seu código e determinaram que você tem 80% de chances de fazer parte do ciclo de comprometimento do Projeto X da Resistência Futura. Você agora faz parte da matriz de disposições".

"Projeto X? O que é isso?"

"Projeto X é qualquer projeto de desenvolvimento passível de garantir uma vantagem assimétrica substancial à insurgência. Neste caso, é provável que você possa melhorar seu código para tornar funcional o projeto MTACA."

"MTACA?"

"Míssil-Terra-Ar-de-Código-Aberto."

"Um MTA que poderia ser feito em qualquer espaço hacker? Mas isso acabaria com as viagens aéreas como as conhecemos!"

"Afirmativo. Mas também é a única forma de acabar com a soberania aérea que permite o suporte à drones do Banco de Dados do Juízo Final. Ele não pode permitir isso. E ele não desistirá até que você esteja morto."

John está arrasado, ainda que um pouco incrédulo.

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"E agora?"

"Agora nós tiramos você do alcance dos dados, para fora da rede. Me prenda à sua bicicleta para que economize minhas células de energia e me conecte à sua grade pessoal."

John liga o quadricóptero à sua bacterial de bolso, prendendo-o ao guidom de sua bicicleta.

"Mamãe sempre quis me ensinar a esse grande líder militar. Aí ela vai presa e é tipo… Desculpa garoto, sua mãe é louca, você não sabia? É tipo… Tudo que me fizeram acreditar era só fantasia, certo? Odiei-a por isso. Mas tudo que ela disse era verdade. Temos que tirá-la da cadeia."

"Negativo", o drone responde. "O próximo passo do Banco de Dados será eliminar sua mãe para impedir a possibilidade de ela lhe dar apoio material."

"Que se dane! Ela pode ajudar. E você está preso na minha bicicleta, então eu tomo as decisões estratégicas!"

O drone então faz uma pausa, como se tentasse expressar emoções que não haviam sido instaladas nele.

"Verei que recursos na rede podem ser empregados para apoiar esta operação."

John pedala rumo ao campo de concentração local.

Corta para o campo, uma série de prédios de concreto rodeados por cercas de arame. Torres de segurança com torretas equipadas com radar, diversos robôs TALON com rastreadores no perímetro. Um aeróstato fixado ao campo flutua acima, observando os muitos prisioneiros no pátio. Sarah, a mãe de John, está entre eles, olhos fixados à distância. Subitamente e ao mesmo tempo diversos robôs dentro da área cerca começam a se mover entre os prisioneiros, suas câmeras examinando cada um dos rostos. Os presos sabem o que está acontecendo – o Banco de Dados está em busca de alguém. Todos evitam olhar para as câmeras, mas sabem que esconder o rosto não é a melhor das ideias.

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Do lado de fora da prisão, John se agacha atrás de alguns destroços. Sussurra ao telefone:

"E agora?"

"Unidades em movimento. Espere 90 segundos."

Em uma estrada do outro lado do campo, um saco de lixo cai de um caminhão que estava de passagem e rola para dentro da vala. De dentro do saco salta um enxame de pequenos robôs: de duas rodas com um eixo e uma câmera. Eles se esforçam para saírem da vala, e aceleram rumo à cerca da prisão, formando uma flecha robótica na direção de Sarah, que ainda está no pátio enquanto os robôs sistematicamente vão em sua direção. Então um bando de robôs aéreos passam pela câmera, na direção da prisão, e a câmera os segue. Quatro planadores descem velozmente, seguidos por um punhado de quadricópteros, seguidos por um grande octocóptero.

As torres de segurança detectam a presença dos alvos aéreos. Os planadores voam em zigue-zague pelo perímetro, as torretas são acionadas e destroem cada um em uma fração de segundos. Os prisioneiros se assustam com o barulho horrível de milhares de balas rasgando o ar. Mas os planadores estavam cheios de palha de alumínio, e logo o pátio da prisão encontra-se em meio a uma chuva metálica. As torretas, tentando mirar na nebulosa nuvem, se confundem. Todos as unidades TALON entram em alerta, valendo-se de detecção de movimentos para fazer uma varredura em busca de alvos humanos adentrando sua zona de morte.

Uma série de explosões. Do outro lado da cerca, na direção de Sarah, nuvens de fumaça são lançadas acima sequencialmente com a explosão de cada um dos pequenos robôs. O primeiro remove a armadilha anti-robôs, o segundo vai um pouco além e explode em meio à zona de ataque dos TALONs. Coberto pela fumaça, o terceiro atinge a cerca externa, abrindo-a. O quarto erra sua trajetória, chocando-se com um TALON. O próximo rasga a cerca interna. O último acerta um TALON que havia surgido para cobrir a ruptura da cerca. A explosão derruba-o, fazendo-o voar alguns metros, enterrando sua câmera na terra.

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Os prisioneiros se jogam no chão, temendo acionar os algoritmos de detecção de ameaça que sabem estar em alerta vermelho. Os robôs-carcereiros, desarmados, ainda procuram pelo rosto de Sarah na multidão, sua programação não interrompida pelas rotinas de gestão de ataques em ação. Uma das câmeras move-se, detectando Sarah, deitada.

"Dados de biometria para identificação. O não cumprimento resultará em medidas de defesa."

Uma barulheira infernal surge aos poucos, soterrando a voz do robô. É o octocóptero, aproximando-se da parte inferior do aeróstato. A palha metálica já quase sumiu, mas é tarde demais – o drone chegou ao seu alvo. Jatos cobrem a porção inferior do aeróstato com uma substância gelatinosa transparente, e o octocóptero acende seu dispositivo de ignição. Os sensores, niveladores de câmeras, amarras e o aeróstato em si explodem em chamas. As torretas voltam ao normal e transformam o octocóptero em sucata, mas agora o aeróstato cai, seu balão de gás rompido. Os prisioneiros correm para escapar das chamas que caem do céu.

Sarah levanta-se rapidamente, chutando o robô-carcereiro para o lado, correndo rumo ao TALON caído. Com o fogo espalhado por todo o local, dados termais são inúteis e todos os prisioneiros sabem disso. Eles correm para o buraco na grade. Em um único movimento, Sarah arranca o lança-granadas do robô caído, colocando sua correia sobre o ombro, e procura, dentro da máquina, seu mecanismo de disparo. Sarah mira com o lança-granadas e aciona o mecanismo enquanto o metal corta sua mão, eliminando o TALON com um único tiro. Ela corre e atira mais uma vez, atingindo em cheio uma das torres de segurança. Saltando sobre os restos do TALON caído, ela foge.

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Um plano geral: a prisão em estado de puro caos enquanto o aeróstato a incendeia. Outro quadricóptero é derrubado pelas torretas; outros dois encontram Sarah, mostrando que direção deve seguir. Em meio a destroços, ela encontra John. Ambos entram em um carro roubado e aceleram para longe. O quadricóptero de John está no painel. Ele solta um pequeno pacote, que se desdobra e é, na verdade, um cobertor Faraday. Sarah logo se cobre com ele. Um monoplano de busca da prisão está atrás do veículo, mas logo um dos quadricópteros intercepta-o, ambos caindo em um emaranhando de metal e hélices.

Após Sarah remover seu implante de rasteiro, ela, John e o drone conversam sobre sua situação atual. Todos decidem que a única forma de impedir sua morte é fazer aquilo que o sistema mais teme: finalizar o Projeto X. Eles devem programar o resto do MATCA, distribuir o software e acabar com o reino do Banco de Dados do Juízo Final de uma vez por todas. Tem início uma montagem, com diverso notebooks ligados em linhas de dados em becos escuros, letras esverdeadas em telas negras.

Assisti o filme até aí. As luzes então se acenderam no cinema e o pessoal da administração surgiu com antenas de wi-fi, seguidas por um esquadrão policial com equipamentos antipirataria.

"Alguém está fazendo streaming!" gritou um dos gerentes. "Digam quem é ou o estúdio pegará a licença de IP e ninguém assistirá ao final do filme!".

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Eu estava chateado – todo mundo havia ouvido os boatos sobre produção pirata simultânea, não? O filme havia sido pirateado antes mesmo de ser completado, usando as mesmas imagens em uma edição feita pelo público, após ser roubado dos servidores do estúdio. Então quem ligava de para um streaming meio cagado? Digo, eu vim pra ver a versão do estúdio de qualquer forma.

O resto do público estava com raiva também.

"Quem de vocês cornos fez isso?" gritou um cara lá na frente. "Eu paguei pra assistir isso!".

Uma chuva de doces e balas veio da parte de cima do cinema, seguida por flashes de celulares e risos.

"Vou baixar teu carro, cara!" provocou alguém no fundo.

Deve ter sido alguém da turma de moletom preto que vi entrando. Podia sentir o cheiro deles fumando seus cigarros eletrônicos durante a toda a exibição. O gerente parecia meio desconcertado – ele parecia ser o tipo de cara que ganhava um salário mínimo e não queria acabar com o filme ali, mas um contrato o obrigava. Ele começou a gesticular com a antena de wi-fi, mas não parecia saber exatamente como ela funcionava. Os policiais se distribuíam entre as fileiras, usando seus próprios scanners enquanto tentavam acalmar a todos. Mas então pegaram um moleque lá na frente que havia deixado sua rede pessoal ligada, então começou a clonar seus arquivos. Ele deveria ter feito o que lhe foi pedido, mas ele foi burro e estava assustado. Ele tentava lhes mostrar seu status de tela, gritando que nem mesmo tinha um plano de dados capaz de fazer streaming.

O pessoal na parte de cima se revoltou.

"Deixa o cara em paz, porco! Ele disse que não tem os dados!"

Dois policiais subiram as escadas, e um copo de refrigerante cheio atingiu um deles bem na cara.

O cinema virou uma confusão só. O policial ensopado começou a balançar seu taser. Seu parceiro lhe dizia para se acalmar, o gerente do cinema balançando a antena de wi-fi e gritando algo sobre oferecer uma experiência de entretenimento de qualidade. Um dos policiais soltou uma granada de gás lacrimogêneo e a galera de moletom preto se espalhou para pegar suas máscaras enquanto ainda tentavam destruir o lugar. Gente gritava e se pisoteava. Os tiras prenderam quinze pessoas, e mandaram outras cinco pro hospital. Um dos moletons devia ter uma bomba de fumaça, porque logo uma fumaça roxa se juntou ao gás lacrimogêneo, e enquanto eu saía da sala, vomitando, vi que eles haviam coberto as câmeras do circuito interno de TV com espuma. Um presente de despedida para o cinema e o estúdio. Baita noite de estreia essa.

Bom, o filme é bem bacana, mas caso você vá assisti-lo, não vá ao Cinema 10, porque soube que eles ainda estão limpando a sala da telona por conta do pó deixado pelo gás lacrimogêneo. Além do que, acho que a licença deles para exibir o filme foi revogada depois da treta. De repente é uma boa tentar ir no Scene Screens do shopping, se você não tem restrições quanto à Zona A. De resto, você sempre pode dar um jeito de [editado] como todo mundo, mas este blog está conectado ao meu nome, então nada de falar disso aqui! Nada de moletons, caras! J

Esta remessa é parte da seção Terraform, nosso novo lar online para ficção futurística.

Tradução: Thiago "Índio" Silva