Viagem

O que aprendi a trabalhar em turismo no Algarve

Um texto lamechas sobre a vontade de viver e sobre como é que se pode viajar com turistas sem sair do mesmo sítio.
homem sentado num banco a olhar para o mar
Quanta sabedoria podes tu apreender de gente idosa que está a viajar e só quer viver a vida? Foto por Ian Schneider via Unsplash.

Começo este artigo sentada na recepção de um hotel. Ao meu lado, o representante de uma agência de viagens polaca está a falar das maravilhas de Fátima. Estamos em Albufeira, Algarve e todos querem acordar às quatro da manhã para poderem ir ao Santuário. Sabes que são polacos, porque têm um ar de quem acordou agora depois de uma noite mal dormida e, pensando bem, se continuarem a querer ir a Fátima, esse ar nunca mais irá sair das suas caras.

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Quando comecei a trabalhar no turismo, lembro-me de admirar os meus colegas por, só de olharem para um hóspede, saberem a sua nacionalidade. Mas, afinal não é assim tão difícil; os ingleses têm tatuagens e queimaduras de 3º grau no lombo e pedem documentos para poderem requerer compensação por danos cutâneos causados; os alemães e holandeses costumam meter meias brancas com sandálias e os franceses andam sempre perdidos e a queixarem-se que ninguém fala a sua língua.

Desengane-se quem pensa que só trabalha em turismo quem quer ganhar dinheiro. Não há salário que compense termos de aturar alguns hóspedes que são, praticamente, como os nossos filhos, mas mais velhos, ou pior. Lembro-me de um casal que pediu metade do dinheiro de volta, porque só viu Benagil e não viu golfinhos como estava na foto de promoção. Outra pessoa que quis ser reembolsada dos bilhetes do Zoomarine, porque os filhos não gostaram. Era tão bom se eu saísse do cinema e pedisse o meu dinheiro de volta, porque o casalinho não ficou junto, não era? Se querem ganhar dinheiro, sirvam às mesas com decotes e prometo que as gorjetas serão maiores que o salário de um guia/recepcionista/representante.


Vê: "Safari Humano: os turistas que observam a tribo Jarawa"


É preciso gostar de pessoas para trabalhar em turismo. E não estou a falar daquele gostar de simpatizar. É gostar genuinamente de qualquer tipo de pessoa, porque é isso que te calha na rifa quando chegam ao aeroporto. No mesmo voo tens mais espécies que num jardim zoológico, os pandas, os leões e os macacos e é necessário saber lidar com todos. Uma domadora multi-tasking, talvez seja mais isso. Chegam cheios de esperança de que o dinheiro que pouparam durante um ano (a não ser os franceses, esses tiram férias de três em três meses, não me perguntem como) irá fazer com que tenham as melhores-férias-de-sempre.

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Depositam as esperanças em milagres. Como se assim que chegassem o sol começasse a brilhar mesmo que esteja a chover há 15 dias sem parar, o trânsito desapareça e o quarto seja vista-mar ainda que tenham pago menos por noite do que a promoção da semana do McDonald's. E a praia? Ah, a praia! Mesmo sendo agosto, irá estar vazia e a água estará quente (porque é mediterrâneo. Sabem lá vocês). Depois vem a desilusão e, só depois, a aceitação. Quase como as fases do luto, mas sem corpo (bom, falando em corpo, este mês… ok, deixemos isso).

E, a esta altura (especialmente se chegaram a meio de um texto nada polémico, nada provocador e, sobretudo, que não fala de temas da moda), perguntam-me vocês: mas qual é, então, a piada de trabalhar em turismo? E é aqui que me torno lamechas e vos explico que, ao falarmos com pessoas que estão a viajar, viajamos também nós na vida delas. E isso é fantástico.


Vê: "Fumar umas com a terceira idade em Seattle"


Lembro-me, no meu primeiro ano, de um grupo de terceira idade, em que a mais nova não teria menos de 80 anos. Quando as vi pela primeira vez, disse ao meu colega que metade não iria sobreviver. Eram todas do mesmo centro de dia e tinham mais genica do que eu; descobri depois, quando fui ver delas ao fim da noite, que estavam todas a beber porto e a rir, enquanto eu só queria o meu pijama.

Lembro-me particularmente de uma que andava muito mal - penso que por causa de um problema de ossos -, só se movia com a ajuda de duas bengalas e insistiu que queria ir a um safari, num Jeep e num barco, uma coisa bem gira para quem não aguenta passar por uma lomba sem ter a sensação de que os ossos todos se vão desintegrar. Não ela. Recordo-me de lhe ter dito que não e ela ter feito birra. Também me lembro de, depois disso, levar com a bengala “sem querer” cada vez que nos cruzávamos. Durante muito tempo, nas nódoas negras que me causou, vi a força de vontade de querer viver.

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Lembro-me também de outra história, já este ano, de um casal que se conheceu no “téléphone rose”, algo que existia em França e era tipo linha erótica. Ambos casados, ambos em linha e juntos há 20 anos depois de largarem tudo. Vinte anos. Todas as pessoas que cá chegam deixam o dinheiro em cortiça made in China, mas deixam também um pedaço delas próprios para nós, os que cá estamos e temos orgulho em mostrar onde vivemos, podermos absorver. Posso não ter viajado muito, mas passei pela vida de milhares de pessoas e, na maior parte das vezes, fiz das suas férias, mesmo sem vista-mar, mesmo sem água quente e mesmo sem bom tempo, algo de fixe. E isso, o que é que vale? Vale tudo. É essa a vida de alguém que trabalha no turismo e foi isso que aprendi. Avisei que o texto era lamechas, não se queixem.


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