CES, Ano 2067
​Arte por ​Koren Shadmi

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Tecnologia

CES, Ano 2067

Todas as setenta mil luzes cintilavam, soletrando: “UM SÉCULO DE CES! 1967—2067!”

O retângulo preencheu o Salão Central quase inteiro. Era o maior ambiente do Centro de Convenções de Las Vegas e, historicamente, o menos deprimente. Incontáveis barras de ouro e bilhões de bitcoins foram gastos, e especialistas em conservação de Centros do Facebook de todo o país compareceram para ajudar a restaurar o esplendor da estrutura, do século 20; o último perito vivo em tapetes de Las Vegas dos anos 60 chegou a interromper a aposentadoria. Nenhuma despesa foi poupada, nenhum detalhe ignorado, e nenhuma lâmpada de LED escapou do polimento — todas as setenta mil luzes cintilavam, soletrando: "UM SÉCULO DE CES! 1967—2067!"

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O segundo ponto de exclamação foi um exagero, mas eles conseguiram: antes do retângulo ser posicionado por uma série de drones de carga, o Salão Central estava igual à época das fotos do museu. Só que agora não era um salão; era um oceano. O retângulo era tão fino quanto um dedo, profundamente preto e tão liso quanto vidro. Talvez fosse mesmo vidro. Ninguém havia se inscrito, e os atendentes das cabines ficaram encarando os próprios pés. Da entrada, o Salão Norte do CCLV parecia conter um vasto mar negro que flutuava a vários metros acima do piso, cujo padrão era fiel às referências históricas. Beyonce Bermm observava o mar, sua pele estava quente.

— Isso é tão sexy - ele meio que sussurrou, meio que grunhiu, deixando escapar o vapor de cocaína da boca. Ele tragou novamente e apertou os olhos para enxergar o fim da longa planície negra.

— Épico, não?

Um homem estava parado atrás de Beyonce com uma mão esticada e o rosto pintado com listras azuis e laranjas, que indicavam que era um executivo da Consumer Electronics Association. Ele não oferecia um nome. Apenas uma mão. — É sua primeira feira?

— Não. Quer dizer, é sim… Vim como procurador ano passado.

Beyonce apertou a mão esquelética do homem da CEA, acionando várias pulseiras de plástico que estavam presas em seu braço. Ele as silenciou com uma piscadela. — Meu nome é Beyonce Bermm, e estou aqui…

— Beyonce! Prazer. Vi no seu crachá que, assim como eu, você estudou na Universidade Bezos. Sempre reconheço um homem de Bezos. Vai, Hounds! Você sabia que quando a CES estava em fase inicial, Beyonce era nome de mulher? Mas a história dá um jeito de mudar. É como um rio. Você já viu algum rio? Cheguei aqui noite passada, vim dirigindo do Facebook, e lembrei de quando meu avô me contava dos rios que dava para ver no caminho. Sabe, nossa indústria é como um rio; ela flui, é fria e está repleta de peixes. Peixes retangulares, perfeição geométrica absoluta. Você está me entendendo, Sr. Bermm?

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Ele não estava, mas balançou a cabeça em consentimento e continuou observando o retângulo de canto de olho. Beyonce estava com fome; ele devia ter parado no Facebook, no caminho para o centro de convenções, para comer algo, conforme seu chapéu havia sugerido. Beyonce tragou mais um pouco de vapor de cocaína do pequeno cigarro de prata e seu estômago parou de incomodar.

Chapéus Berrantes, conforme um cartaz no Salão de História evidenciava, foram apresentados na CES — junto à tecnologia blu-ray, televisões 3D e o primeiro protótipo de bastão de vaporização narcótica. Mas isso foi décadas atrás, antes dos retângulos.

Quase todos os 3,2 milhões de metros quadrados do centro de convenções estava repleto de cabines dedicadas à venda, manutenção, restauração, financiamento, proteção, consolidação, fragmentação, embelezamento ou promoção de retângulos lisos, pretos e lustrosos. A FIGURA QUE FEZ A TERRA VOLTAR A TRABALHAR!

O executivo da CEA deixou Beyonce e trotou em meio à multidão, que agora se amontoava no Salão Norte, onde retângulos de grandes empresas como Samsung e Neslté mantinham cabines cavernosas e gritantes, pequenas cidades repletas de drones de RP, aperitivos, esportes sanguinolentos e vaporizadores narcóticos de brinde. Beyonce seguiu a multidão ao norte. Sob uma luz azul oscilante, o Vice-Presidente Sênior em Recalibração de Facebook da Samsung no Ocidente estava se gabando da escalação de 2067 da empresa:

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— O HHHHHHHHHHH-1-HH oferece um desempenho sem precedentes, a melhor durabilidade da indústria e o brilho com o qual os clientes da Samsung estão contando.

A multidão ficou histérica, alguns espectadores se abanaram com os próprios retângulos portáteis, outros esfregavam superfícies infinitamente lisas, polidas por dedões.

— Pela primeira vez na história da série HHHHHHHHHHH, criamos uma solução retangular pesada, sustentável, frágil e conectada, tudo em um envelope dimensional como você nunca viu. Permitam-me demonstrar, acho que vocês concordarão que este modelo transformará o setor.

A multidão ficou em silêncio. O apresentador da Samsung removeu um retângulo, escuro como obsidiana, de uma bolsa aveludada. Ele passou um dedo na figura, e uma luz laranja piscou no meio. A plateia foi à loucura. Como quem quer dizer E não é só isso, o apresentador levantou o dedo, silenciando a multidão novamente.

— Por acaso, o retângulo de vocês faz isso? Ele jogou a tábua metálica no chão, onde ela se despedaçou e se dissolveu em pó. Um homem que vestia uma faixa do Wall Street Journal começou a soluçar e aplaudir. Drones jogaram confetes.

Beyonce tirou o próprio retângulo do bolso da calça e enxergou seu reflexo na face negra do aparelho. Parecia inútil, pútrida. Ele vendeu a bicicleta por isso. Por isso? Por um aparelho sem pontinho laranja incandescente no meio, que não virava aquela poeira adorável em caso de impacto? A durabilidade da bateria ainda era boa — mas não eram todas? Os fabricantes haviam eliminado as telas há anos. Beyonce pensou em seus acessórios: a base de edição limitada, os panos de polimento, o cavalete ocre. Ele estava envergonhado.

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O remorso de compra fora quimicamente curado e criminalizado nos anos 50, mas havia psiquiatras de plantão no Salão Sul. Era uma opção. Beyonce se virou de costas para a cabine da Samsung, onde outra briga fatal entre dois prisioneiros políticos estava prestes a começar; o vencedor receberia uma Edição Especial e Limitada do HHHHHHHHHC-81, de oito polegadas, cinza escuro.

Era começo de tarde e os salões estavam começando a encher. Visitantes se espremiam entre retângulos, em cabines de vidro, retângulo sobre retângulo, retângulos completamente não funcionais pendurados no teto, como móbiles. Em um palco para demonstrações, duas representantes de RP, adolescentes, vestidas de freiras, quebravam ovos sobre um retângulo BagBagBagBagBag, da LG. As bordas arredondadas e e o acabamento prateado do aparelho pingavam gemas.

— Esta belezinha não tem tela, não tem alto-falantes nem botões, e tem a antena de Bluetooth mais poderosa do mundo - uma delas bradou enquanto piscava para a plateia. — A moldura é tratada com células-tronco humanas, e o modelo 2067 terá uma variante irresistível em preto claro.

Beyonce se sentiu nauseado. Nem mesmo uma bolsa aveludada, do tipo que ele havia visto na Samsung, o faria se sentir melhor a respeito de seu retângulo, nem disfarçaria sua mediocridade. Ao seu redor, estava o futuro: retângulos maiores que o seu, retângulos com bordas afiadas o bastante para matar, ou com bordas tão bem arredondadas, que dava para calcular pi. Os retângulos mais finos e mais espessos do mundo estavam em exposição na CES; nenhum deles era o seu. Corriam boatos de que a menor unidade retangular já produzida — uma espécie de golpe da SonyKraft — estava em exposição, mas ninguém conseguiu encontrá-la.

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O coração de Beyonce acelerou. Ele precisava de ar fresco, mas o período de quarentena ainda não havia terminado aquele dia, e a fila por uma máscara ia além da pizzaria Sbarro. Ele colocou a mão no bolso para se certificar de que o aparelho estava ali; o retângulo estava zunindo, vibrando em intervalos randômicos conforme lhe prometeram na hora da compra. Ele esfregou o aparelho ociosamente. Era nojento. Ele nunca havia odiado tanto uma forma.

O futuro estava naquele salão, em Las Vegas, naquela multidão, e ele mal se safava com um pedaço de obsolescência no bolso. Beyonce se sentia humilhado, doente de vergonha. Um alarme soou, seguido de um anúncio musicado, uma voz andrógina — o chapéu conectado de Beyonce sussurrou:

— SENHORAS E SENHORAS E PROCURADORES, O TESTAMENTO REVELADOR SERÁ ANUNCIADO NO SALÃO CENTRAL EM APENAS CINCO MINUTOS!

Salão Central: o maior de todos os tempos. Uma equipe de funcionários do Facebook, fortemente armada, abriu caminho para dignitários visitantes, executivos digitais, procuradores convidados, modelos, atletas e drones célebres. Jaden Door, herói de guerra e CEO da Samsung, surgiu flutuando, coberto dos pés à cabeça; ele sequer parou para acenar à plateia.

Beyonce deixou com que a multidão o empurrasse até o cordão vermelho que contornava o perímetro retangular do Salão Central. Pela primeira vez, ele notou que não conseguia ver o outro lado. Era uma mancha de óleo negro no maior salão em que ele já havia entrado, um vácuo de neon refletido, a maior superfície não manchada por impressões digitais da história da civilização humana. Ele tragou os últimos resquícios da caneta de cocaína e se espremeu na primeira fileira da audiência. A apresentação estava prestes a começar. Não restava tempo para lamentar o conteúdo do bolso, não havia espaço para terror. A história estava se abatendo sobre todos ao redor da extensão escura. Ele relaxou as mãos; precisava se livrar de seu tijolo. Beyonce esticou o pescoço e enxergou seu semblante morto no retângulo colossal, e ele nunca amou algo como amou o futuro.


Esta remessa é parte da seção Terraf​orm, nosso novo lar online para ficção futurística.

Tradução: Stephanie Fernandes