O Ataque das Formigas Gigantes
​Arte: Koren Shadmi.

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O Ataque das Formigas Gigantes

As primeiras vítimas são encontradas antes do amanhecer, numa loja de esquina do bairro de Mission District, em São Francisco.

As primeiras vítimas são encontradas antes do amanhecer, numa loja de esquina do bairro de Mission District, em São Francisco. Um entregador relata a ocorrência por telefone. Dois homens mortos dentro do estabelecimento.

Os agentes Belmont e Bosco entram em cena. Bosco é jovem, troncudo, turbulento; Belmont é magro e desgastado. Nevoeiro no ar, céu turvo e cinzento. A caixa registradora está intacta, mas as estantes foram saqueadas desordenadamente. Garrafas quebradas e alimentos espalhados. Sangue e vinho cobrem o chão. A janela da frente está estilhaçada. O abdômen do proprietário foi dilacerado. O outro homem…

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"Céus, cadê a cabeça dele?", pergunta Bosco, sua voz cada vez mais alta.

Belmont encontra a cabeça no meio-fio, lá fora, o pescoço rasgado. Um vira-lata está lambendo, quiçá tentando arrastar a cabeça até um beco. Belmont coloca a cabeça no balcão da loja.

O inspetor Ben Cuayo chega com dois peritos. Os policiais fotografam, medem e discutem — por ora, sem encostar nos cadáveres. Cuayo nota que a maioria dos pacotes no chão são de doces. A geladeira de sorvetes foi derrubada. Está completamente vazia.

"Larica", diz Cuayo, que parece estar sempre à vontade, a barba rala, o semblante calmo. Ele aponta para um caule segmentado, uma espécie de açoite, na mão do proprietário morto. Parte de uma planta?

"Vocês estão vendo o gel pingando da ponta quebrada?", pergunta Bosco. "Talvez seja uma trepadeira alucinógena da América do Sul. Tráfico de drogas. Dê uma lambida no toco, Inspetor. Leve um pouco à sua esposa."

"Ela foi embora", diz Cuayo. "Me deixou."

Ele sai do estabelecimento e caminha até um dos peritos. Marcas de sangue e manchas de vinho na calçada. Mas não no formato de pés humanos.

"Capaz que os criminosos estivessem fantasiados", teoriza Bosco, espiando a rua pela janela. "Sapatos bizarros, especiais para um culto."

"Esse garoto é uma fonte de sabedoria", diz o Inspetor Cuayo. "Nem sei porque apareço. Agora, Bosco, você permanece aqui, de olho no local. Eu e os demais levaremos os corpos ao necrotério e testaremos o tal do caule no laboratório. Contornaremos a calçada com fita de cena de crime antes de sair. Ligue uma câmera de vídeo no seu torso. Caso aconteça algo."

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"Caso aconteça o quê?", Bosco está nervoso. "Você deveria chamar mais pessoas, Inspetor. Reforço."

"Já estão a caminho", diz Cuayo. "Enquanto isso, será que alguém pode embalar essa piñata? A cabeça do empacotador. Eu é que terei que mostrá-la à esposa dele."

Agora Bosco está sozinho na loja. Ele toca uma poça de gel no chão, cheira e franze o nariz. O sol está nascendo; a neblina está dourada, tênue. A rua está deserta. À distância, sirenes agudas ecoam. Bosco ouve um arranhão, um baque, um chilro abafado. Muito perto. Ele dá um passo em direção à janela quebrada; em seu rosto, um misto de horror e descrença. Ele começa a berrar. Corta.


"Formigas gigantes", Ben Cuayo diz. Ele está em seu escritório, conversando com Roopa Banarjee, uma jovem entomologista da Universidade de Berkeley. Ela apareceu assim que a história vazou. "O primeiro encontro foi na Rua 20 com a Guerrero", Cuayo continua. "Depois, prosseguiram rumo ao Parque Dolores. Apenas algumas quadras. Temos dezenas de testemunhas. Mataram sete pessoas."

"Você tem algo em vídeo?", pergunta Roopa.

"Do Sargento Bosco, sim", diz Cuayo, hesitante. "Nosso homem. Também o perdemos."

Ele passa a gravação em sua tela. Figuras agitadas, amorfas. A cabeça achatada de um inseto tão grande, que é difícil visualizá-la. Um olho facetado, uma antena trêmula, e então a extremidade de uma mandíbula curva, dentada. Gorjeios frenéticos e um rugido sibilante. O ponto de vista muda descontroladamente; a imagem fica preta. "As formigas mataram o grupo seguinte de pessoas numa padaria, na Rua Dolores. Em seguida, desapareceram."

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"Só podem ser formigas de Estige. Que descoberta! Das profundezas do xisto de Monterey. Meu grupo de pesquisa estuda fragmentos das formigas no entulho da perfuração. Até agora, a nova espécie era apenas uma hipótese."

"Como podemos exterminá-las?", pergunta Cuayo.

"Lança-chamas devem dar conta das menores", diz Banarjee. "Mas precisamos manter uma dessas formigas vivas, Ben. Não podemos perder a oportunidade."

"Pela ciência?"

Roopa rebate: "Por dinheiro. Para sobreviver no xisto de óleo, a quilômetros da superfície, devem ter feito adaptações impressionantes. Minha equipe descobriu um novo material nos fragmentos das carapaças que encontramos. Lâminas de quitina. Incrivelmente fortes e extensíveis. Acho que essas formigas valem bilhões. Podemos atrair uma para a superfície e imobilizá-la com uma rede".

"Quem é a isca?", questiona Ben Cuayo. "Você?"

"Eu me prontifico", diz Roopa, levantando o queixo. "Sou especialista em linguagem de formigas. Consigo imitar seus gestos e chamados. Estridulação e percussão." Ela estica os lábios e faz um barulho granulado com o fundo da garganta, volta e meia batendo as mãos, em forma de conchas.

"Você é um barato", diz Ben, admirado.

"Vestirei meu traje especial", acrescenta Roopa. "Trouxe ele comigo. Minha fantasia de formiga."


Roopa está de pé em um canto do Parque Dolores, vestindo um traje completo de formiga, vermelho, com um falso par de pernas extra pendurados na cintura. Ela usa uma tiara com antenas oscilantes.

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Do outro lado da rua, encontram-se os restos da padaria-café que as formigas atacaram. Migalhas patéticas preenchem o piso. As tropas da Guarda Nacional estão na rua, carregando uma dúzia de lança-chamas. Uma grua balança uma imensa rede de arame.

Um colega entomologista de Roopa, Wilbur Shoat, está no local, um homem mais velho com atributos carnudos, vestindo uma calça de chino cinza e um sobretudo de tweed. Ele está rondando o barranco do parque, ajoelhado, de narinas abertas, farejando o solo.

"Aqui!", grita, e aponta para um pequeno buraco à frente do parquinho. "Ácido fórmico. Feromônios. Butano."

"Ele está maluco", diz Ben Cuayo, ao lado de Roopa. "Isso é uma toca de esquilos."

"Nós… Nós acreditamos que as formigas de Estige são capazes de mudar de tamanho". diz Roopa. "As lâminas de quitina deslizam umas sobre as outras, como uma pilha de pratos."

Roopa se ajoelha sobre o pequeno buraco, com a grande rede de arame balançando acima. Os guardas formam um cordão ao redor dela, lança-chamas a postos. Roopa se aproxima do buraco, boquiaberta. Ela emite os chilros dissonantes. Ben Cuayo não tira os olhos dela.

Uma formiguinha aparece na boca do buraco, balançando suas antenas minúsculas. Roopa mexe a língua, chacoalha a tiara, redobra os chilros. A formiga se aproxima, crescendo a cada passo. É do tamanho de um rato, um cachorro, uma vaca, um carro, uma locomotiva, um dinossauro, um avião jumbo. Ela solta uma bufada de éter, além de um odor forte, selvagem, primordial.

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"Uma operária fêmea", diz Wilbur Shoat, coçando o nariz.

Roopa está de pé, resplendescente com o traje de formiga vermelha, gorjeando com força, a cabeça para trás, balançando os braços como uma dançarina indiana. A formiga responde, esfregando uma perna enorme contra seu casco resplandecente, reverberando um som semelhante ao chiado de um violino. Talvez ela goste de Roopa.

A rede demora para cair. É do tamanho de uma lona de circo, mas não é grande o suficiente para cobrir a formiga. Com a engrenagem inquieta das pernas, a formiga manda a rede longe. Roopa está recuando, bravamente entoando suas canções para insetos. Ben Cuayo corre ao seu alcance.

Com um movimento brusco, imperceptível a olho nu, a formiga engancha o vestuário de Roopa com uma garra. Ela levanta a presa até a boca. Cuayo atira descontroladamente contra o abdômen da formiga, até esvaziar o pente — sem resultado. As balas ricocheteam e zanzam pelo ar. As tropas levantam as armas, mas Cuayo grita para esperarem. A probabilidade de machucarem Roopa é muito alta.

De qualquer forma, o inseto colossal não está mordendo a professora — pelo contrário, está elevando Roopa, apoiando a mulher em sua própria cabeça. A formiga tambarila o gáster no chão, raspa as pernas e solta um assovio sibiliante. Ela ainda está crescendo — lançando uma sombra sobre Cuayo e os soldados.

Convocada pela percussão da formiga, uma segunda emerge do buraco e rapidamente incha até alcançar as mesmas proporções gigantescas. A segunda formiga tem um segmento traseiro mais arredondado e polido, e carrega consigo um ar majestoso. Ela e a formiga de Roopa gorjeam e esfregam antenas.

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"A rainha", diz Wilbur Shoat.

As tropas acionam os lança-chamas contra as pernas de sequoia das criaturas — de pouco adianta. Levemente irritadas, ainda que ignorando as chamas, as formigas levantam suas cabeças, provando o ar. E agora rumam à cidade, cambaleando como titãs instáveis, com passadas surpreendentemente leves.

Pisam na Rua Dolores e sobem nos topos dos prédios, desdenhando das vias humanas engenhosas que se encontram no caminho. Seguem pela Praça Union e pelo centro financeiro, as pernas em movimento como grandes máquinas — como perfuratrizes, como torres de lançamento, como guindastes portuários monstruosos. Sirenes ecoam, carros de polícia e caminhões de bombeiro transmitem avisos às multidões crescentes de pedestres aos berros.

"Formigas! Formigas! Formigas!"

O primeiro instinto de Ben Cuayo é correr atrás dos leviatãs. Mas antes ele precisa cuidar da situação do parque. Mais formigas brotam do buraco ao lado do parquinho. Após aprender a lição, os guardas vertem torrentes de fogo sobre os invasores por vir, e as formigas estão — rebentando, explodindo como grãos de pipoca, subindo aos ares, em chamas. Em dois minutos, esse estágio da batalha termina. As formigas não passam de um amontoado de carcaças despedaçadas. As tropas miram o solo, atirando jatos de fogo nas fendas do ninho.

"Pegamos todas?", Ben Cuayo logo pergunta ao professor Wilbur Shoat.

"O ninho é profundo", diz Shoat, ajoelhando-se para guardar os fragmentos das formigas num frasco. "Roopa comentou com você que as chamamos de formigas de Estige? Evocadas do xisto profundo pelas perfurações. Vamos torcer para que seja a única colônia a emergir."

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"E as duas que consguiram fugir?", pergunta Cuayo. "Por que as chamas não as atingiram?"

"É a lâmina de quitina", responde Shoat. "Ela fica mais forte quando abre. Vamos precisar de algo mais intenso para explodir as grandonas. Espero que Roopa…"

Cuayo mergulha no carro e pisa fundo em busca da operária e da rainha.

As formigas estão passando pelo Embarcadero, rumo ao mar. Roopa permanece segura sobre a cabeça da formiga, encaixada na base da antena, agarrada a uma cerda exageradamente grande com ambas as mãos. Ela está gargalhando, está além do medo, serena, extasiada com o passeio fantástico. As formigas chegam à Golden Gate e flanam sobre a ponte, cuidadosamente dispersando os carros. A formiga de Roopa está na frente, com a formiga-rainha de Estige logo atrás.

Helicópteros com metralhadores e bazucas zunem como vespas agitadas, atirando ao léu, os pilotos em pânico, omissos com a segurança de Roopa, negligentes com os carros. Roopa permanece incólume na fissura entre as antenas da formiga. As carapaças impermeáveis das formigas gigantes rebatem as balas e os foguetes.

Atenta à cada detalhe, Roopa sente uma ameaça diferente. Ela gorjea para avisar sua formiga, dirigindo a canção à superfície sensível da base da antena, falando a língua da criatura. A formiga achata o corpo, aninhando-se no pavimento da ponte.

Enquanto isso, a rainha, orgulhosa, faz uma pose, levantando-se e alcançando sua altura máxima, descansando as pernas sobre um cabo e uma torre. Ela encara os helicópteros com espanto, com seus olhos compostos, infravermelhos, e os ataca com suas garras.

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A rainha de Estige não percebeu, ou não compreendeu, a nova tática que os humanos, frenéticos, estão prestes a lançar. Na velicodade de um desenho animado veloz, os defensores pregam conduítes na extremidade de São Francisco da ponte, nos cabos. A cidade se aquieta, ao passo que toda a rede elétrica é canalizada para os cabos.

A formiga-rainha assume a postura de um deus-inseto arcaico — envolta por uma auréola resplandescente de faíscas. Por um instante, ela se sustenta, vangloriando-se do influxo de energia, mas então um pedaço do casco cede. Seu corpo vasto e gasoso explode como um dirigível de hidrogênio, um esqueleto escuro entre ondas de labaredas.

Neste momento, a formiga de Roopa parede desaparecer, ou se dissipar, deixando Roopa ilesa sobre a ponte, encolhida atrás de um carro, um abrigo contra a bola de fogo. E então tudo está calmo.


Um mês depois, Ben e Roopa estão em um encontro. Um restaurante requintado, de luz baixa, perto do mercado municipal. Um clima romântico. Mal começaram a sobremesa.

"O que você acha que aconteceu com a sua formiga?", pergunta Ben, devolvendo o garfo à mesa.

"É meu animal de estimação", diz Roopa, sorridente. "Ela ficou pequeninha e eu escondi."

Surpreso, Ben tem um espasmo nervoso.

"Onde ela está agora?"

"A formiga está aqui", responde Roopa, clara e vagarosamente. "Ela se chama Cynthia, e come bastante."

Roopa abre a bolsa e pega uma caixinha dourada com uma tampa de cristal. Então, abre a caixa num estalo e coloca a formiga na mesa. Uma baforada tênue de éter. A formiga é relativamente grande — talvez do tamanho de uma barata.

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Ben afasta sua cadeira. Ele está prestes a se levantar.

"Fique tranquilo", diz Roopa. "Tudo que a Cynthia quer é o resto da sua sobremesa."

Já do tamanho de um rato, a formiga marcha, atravessa a mesa e afunda a cabeça no tiramisu de Ben.

"Mas…"

"Vai ficar tudo bem", garante Roopa. "Cynthia e suas irmãs não souberam agir. Mas estou ensinando. Se você ficar conosco, juntos chegarmos longe. Cyhtina era operária, mas agora é rainha."

Este conto é parte da seção Terraform​, nosso novo lar online para ficção futurístca.

© Rudy Rucker 2014

Tradução: Stephanie Fernandes