Como a Coleta e a Análise de Dados Médicos Pode Ajudar a Conter o Ebola
Enfermeiras testando pacientes com suspeita de ebola no hospital Redemption.

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Tecnologia

Como a Coleta e a Análise de Dados Médicos Pode Ajudar a Conter o Ebola

Há um problema com dados médicos no Oeste da África. As fichas de papel podem ser a solução.

Na manhã de 13 de janeiro de 2015, acompanhei dois jovens agentes de saúde liberianos em um passeio pelas ruas caóticas de sua comunidade, New Kru Town, na parte noroeste de Monróvia, capital da Libéria.

Estávamos longe do início do surto de ebola, iniciado em março de 2014. Os casos diminuíam a cada dia. Os agentes de saúde se encarregavam de checar a temperatura e averiguar a situação dos habitantes que haviam sido expostos ao vírus. As rondas estavam tranquilas.

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Naquela manhã, ao fim da primeira ronda diária, encontramos uma mulher rechonchuda de meia idade que segurava o vômito e suava enquanto se esforçava para nos cumprimentar. Ela simulava boa saúde, muito embora seus sintomas se adequassem à suspeita de ebola.

Contra sua vontade, ligamos para as autoridades encarregadas, que a levaram ao centro de tratamento mais próximo.

A família da mulher havia sido assolada pelo ebola. A casa que dividia com a famíla havia sido palco de cinco mortes — um quadro comum após nove meses de surto — e a possibilidade de uma sexta era mais do que poderiam suportar.

Felizmente, o teste veio negativo. Em 9 de maio de 2015, a Organização Mundial da Saúde anunciou o fim do surto de ebola na Libéria.

A calmaria durou um mês e 20 dias. Foi então que o ebola voltou com tudo.

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Em retrospecto, aquele foi um momento impressionante. Era surpreendente que uma região tão desamparada houvesse combatido o ebola com eficácia. O sistema de saúde estava lutando para controlar a propagação do vírus, curvando-se sobre seu próprio peso: tinha de lidar com a falta de equipamento adequado, a ausência total de treinamento e a quantidade pífia de suprimentos. No meio de todo esse caos, as autoridades conseguiram controlar a epidemia de ebola.

A incidência de novos casos, no entanto, sugeriam algumas falhas nessa contenção. De onde surgiam os novos infectados da Libéria? Será que haviam contraído o vírus em países vizinhos ou será que existiam núcleos de infecção ignorados pelo governo, como algumas pesquisas sugeriam?

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O vírus do ebola contaminou mais de 27.000 pessoas e matou mais de 11.000 entre dezembro de 2013 e junho de 2015. Centenas de milhões de dólares foram investidos, e os Estados Unidos enviaram centenas de pessoas para auxiliar nos esforços. Embora as fotos e as pesquisas mostrem a triste realidade da doença, são retratos incompleto do maior surto de ebola da história. Esses dados escondem uma crise muito mais profunda.

A chave para controlar o ebola é saber quem está infectado e com quem entraram em contato. Na minha experiência, nove entre cada dez suspeitas do vírus não são confirmadas. Por outro lado, muitos pacientes contaminados não entram em contato com as autoridades por causa do medo de buscar tratamento. A prevenção (que consiste em monitorar possíveis casos da doença) pode fracassar de diversas maneiras. Os dois liberianos que nos guiaram por New Kru Town poderiam ter esquecido de checar uma casa ou um membro de uma determinada família ou talvez o mapeamento de exposição original estivesse incompleto.

Na minha experiência, nove entre cada dez suspeitas do vírus não são confirmadas.

Na próxima vez em que você encher o tanque, lembre-se que o preço do litro da gasolina é um dado puro, sem significado empírico. Mas se considerarmos o preço da gasolina na semana passada, no entanto, e relacionarmos o valor cobrado pelos postos da vizinhança com o dinheiro no seu bolso, criamos um corpo de dados: informações que possuem significado. Logo começamos a identificar padrões, como o aumento do preço em dias ou lugares específicos, ou a taxa de aproveitamento de gasolina do seu carro.

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Encontrar sentido em informações discordantes é fácil quando se trata de combustível, mas é muito mais difícil encontrar um padrão em ameaças globais como o ebola.

Para impedir que o surto de ebola saia do controle, é preciso estar em contato constante com os desdobramentos da saúde pública. É possível manter esse tipo de registro quando o o problema se limita a alguns casos, mas essa estratégia se tornou um pesadelo quando o ebola começou a se espalhar exponencialmente. Mesmo dentro dos sistemas de saúde mais organizados, a prevenção representava um desafio. A Nigéria identificou apenas 20 casos, mas seu governo soube de quase 1.000 pessoas que haviam entrado em contato com os infectados. Some isso tudo à falta de preparo, material e funcionários de um sistema de saúde já sucateado, e temos a receita perfeita de um desastre.

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O Hospital Redemption de New Kru Town é um hospital público localizado na capital da Libéria. O enorme complexo de prédios de concreto, escondido no fim de uma estrada de terra, atende milhares de moradores carentes que vivem nas favelas da região. O Redemption foi a porta de entrada do vírus na cidade de Monróvia, um símbolo de sua disseminação veloz e incontrolável. O vírus assolou o hospital e o resto do país muito antes que qualquer iniciativa estrangeira entrasse am ação.

Todos os dias, centenas de pacientes vão até o hospital para vacinar seus filhos, dar à luz e receber tratamentos para o HIV e muitas outras doenças. Cada visita é um marco na história da comunidade. Essa memória, tão coletiva quanto pessoal, está enterrada sob montanhas de registros e fichas médicas — que podem salvar vidas.

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Esther Kesselee, uma enfermeira do Redemption, ficou doente no final de junho de 2014, pouco antes de morrer em decorrência do vírus do ebola. Em 2 de julho de 2014, o cirugião-chefe do Redemption também sucumbiu à doença. Quando a OMS anunciou que a Libéria estava livre da ameaça do ebola, mais de doze funcionários do hospital já haviam morrido.

De acordo com Eddie Nyankun, Chefe de Registros Médicos do hospital, os primeiros casos atendidos na instituição foram classificados como transtornos "não-classificados" — não como casos de ebola — em formulários médicos que foram prontamente engavetados. Um diagnóstico de "não-classificado" pode fazer parte da história de uma pessoa. Mas vários casos casos de doenças "não-classificadas" criam uma história maior, que pode ser analisada e esmiuçada. Essa é a essência do problema.

Arquivos médicos do Hospital Redemption.

Viajei até a Libéria com meus colegas do Gobee Goup, uma empresa de consultoria de saúde internacional, para encontrar soluções criativas para acelerar e melhorar a eficiência do gerenciamento de informações sobre o vírus do ebola. Contamos com a ajuda do Ministério da Saúde liberiano e de iniciativas de saúde e instituições filantrópicas internacionais para mapear as pessoas, os processos e a tecnologia envolvidos.

Sem saber a importância desses dados, os funcionários do hospital não receberam qualquer incentivo para fornecer registros de qualidade para o governo

Durante o surto, nenhum dos funcionários do Redemption foi capaz de usar os dados para criar um retrato do que ocorria no hospital, muito menos do que acontecia na área que ele atende. Em outras palavras, a propagação do ebola não pôde ser mapeada, fator essencial para o controle da doença. Como os funcionários não conseguiam ver os padrões da epidemia, eles foram forçados a andar às cegas, fazendo curativos superficiais em um problema que deveria ser resolvido com uma estratégia que combatesse o avanço incansável do ebola. Nem mesmo aqueles que coletavam os dados sabiam o que representavam.

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A coleta de dados começa no hospital Redemption, onde os funcionários fazem um exame físico e entrevistam cada paciente para identificar possíveis sintomas de infecção pelo vírus do ebola. Os sortudos que não apresentam nenhum sintoma identificável são encaminhados à sala de exames. Para chegar no diagnóstico final, que determinará se o paciente será dirigido ao local de de medicação ou para outro local de tratamento, os médicos retiram amostras e pedem chapas de raio-x. Em cada um desses estágios, os rabiscos das fichas médicas e dos registros de cada setor hospitalar formam um material precioso.

Ao final de cada mês, um relatório de 30 páginas com informações sobre a situação geral do hospital, incluindo os dados relacionados ao ebola, é enviado ao Ministério da Saúde da Libéria. "Inclui tudo, desde o número de pessoas que chegaram no hospital com HIV/AIDS, o número de pessoas com HIV/AIDS que não voltaram para o tratamento, o número de mortes no parto, o número de vacinas dadas, e assim por diante", diz a Dr. Sharon McDonnel, professora associada da Faculdade de Medicina de Artmouth. McDonnell trabalhou junto com o Comitê de Resgate Internacional na linha de frente da epidemia do ebola, além de ter ajudado na reestruturação do hospital Redemption.

Ao receber o relatório, o governo inseria esses dados no DHIS 2, um sistema de gestão de dados de código aberto, que gera uma análise mensal do estado da saúde do país.

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"Como tudo na vida, esses sistemas de gestão de dados são ao mesmo tempo uma benção e uma tragédia; isso porque eles incentivam a coleta de dados no nível macro, o que não faz nenhuma diferença na vida das pessoas no Redemption", explica McDonnel. " A verdadeira questão é, 'até onde isso influencia o atendimento ao paciente?' ou 'o que acontece com esses dados?'. O ministério da saúde pode até saber a resposta, mas ninguém fora do governo têm acesso à essas informações."

Uma tabela com casos de ebola no Ministério de Saúde Bem-Estar Social da Libéria.

Sem saber a importância desses dados, os funcionários do hospital não receberam qualquer incentivo para entregar registros de qualidade ao governo. Com 500 a 700 pacientes atendidos todos os dias, a quantidade de dados coletados pelo hospital é monstruosa. O Redemption, assim como outros hospitais e centros de tratamento, obteve pilhas e mais pilhas de papel, mas não soube extrair qualquer informação capaz de melhorar o atendimento aos pacientes.

Para resolver essa crise de informação, muitos planejam misturar esses dados com a tecnologia móvel. A afinidade com aparelhos móveis dos africanos se tornou um símbolo do continente, o que, para muitos especialistas, faz da opção muito promissora.

Mas a tecnologia móvel traz uma série de complicações. Primeiro, há a necessidade de sinal telefônico, que nem sempre existe. O custo e a manutenção desse sistema também devem ser levados em conta; muitos desses hospitais não têm condições de manter um sistema dessa magnitude. Além disso, esses dispositivos móveis precisam ser carregados, e o risco de problemas técnicos é uma constante.

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Segundo minha experiência, manipular dispositivos móveis ao mesmo tempo em que se está ocupado com pranchetas e montanhas de papel pode ser trabalhoso. Em novembro de 2014, a Fundação Paul G. Allen doou 10.000 smartphones para auxiliar na coleta de dados, mas em março de 2015, menos de 1.000 aparelhos havima sido utilizados, de acordo com o UNMEER. Mesmo com a tecnologia apropriada, as entidades locais e internacionais têm dificuldade para desenvolver, testar, lançar e manter apps úteis para a missão. Digitalizar esses dados é essencial, mas esse processo deve acontecer da forma mais adequada à situação.

"Todo mundo sabe que digitalizar esses dados seria uma grande vantagem, mas acho que muita gente ainda subestima o impacto operacional dessa mudança."

O fator humano também faz parte do problema. Cada profissional tem rotinas e hábitos diferentes, que podem ser muito difíceis de mudar. Mesmo com os aparelhos móveis, os profissionais da saúde ainda teriam que preencher formulários de papel, pois isso faz parte do procedimento padrão dessas instituições. Na prática os aparelhos móveis representam algo a mais com o que se preocupar. Também exigem treinamento dos profissionais.

Em certo momento, especialistas em tecnologia desenvolveram uma estratégia que utilizava aparelhos móveis— a Magpi — para coletar dados com tablets no hospital Redemption, mas o projeto foi abandonado quando os especialistas voltaram para seus países de origem.

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"Todo mundo sabe que digitalizar esses dados seria uma grande vantagem, mas acho muitos ainda subestimam o impacto operacional dessa mudança", diz Brian Busch, Chefe de Desenvolvimento Econômico da Captricity, uma empresa que digitaliza dados. "No final não estamos mudando apenas o sistema, e sim a vida desses profissionais. Creio que essa questão é muito ignorada."

A estrada que leva até o Hospital Redemption.

O Hospital Redemption é mais bem equipado que a maior parte dos centros médicos da Libéria. O hospital possui quatro computadores e um software próprio para registrar cada paciente, diagnóstico e tratamento. A realidade, porém, é que essas tecnologias quase nunca funcionam. Durante minha temporada no hospital, dividida entre duas viagens e três meses, ora os computadores estavam quebrados, ora o software não funcionava. Passamos várias semanas tentando localizar o homem que criou o sistema, um ganês. Após uma curta ligação entre os desenvolvedores e a equipe de informática do hospital, descobriu-se que o problema era um software desatualizado. Esse problema ínfimo causou meses de atraso nos arquivos médicos do hospital.

Para completar, um sistema novo pode trazer ainda mais problemas do que o antigo. Mesmo sem ter de lidar com nenhuma tecnologia, os esforços de catalogação do Redemption ruiram durante o auge da epidemia.

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O ebola está voltando à Libéria, e a epidemia ainda atinge países vizinhos como a Serra Leoa e a Guiné. Para acabar com essa epidemia, é preciso informação.

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Uma solução seria armar os profissionais com tecnologias que se ajustem ao seu ritmo pessoal de trabalho. Ironicamente, uma tecnologia de 2.000 anos de idade — o papel — pode ser a solução necessária para controlar a profusão de dados inerente à qualquer epidemia.

Com o papel, não há necessidade de sinal telefônico, recargas, manutenção técnica ou treinamento. Para melhorar, existe a possibilidade de converter dados em papel para a forma digital. O Captricity, por exemplo, é um serviço que utiliza a inteligência artificial para extrair dados de folhas de papel. Com esse serviço, os hospitais pode escanear formulários e digitalizar todas suas informações automaticamente; isso permite que essas informações sejam analisadas e compartilhadas com organizações locais e nacionais.

O uso de um sistema de digitalização iria poupar tempo e esforço, além de reduzir a chance de erros de digitação, já que não haveria necessidade de transcrever esses dados manualmente. Além do mais, ter todos esses dados à disposição significaria que a família e os amigos de um paciente poderiam receber mensagens com os resultados de exames e notícias sobre seu ente querido — uma grande mudança em relação ao silêncio governamental de outrora, que alimentava os rumores de desaparecimentos. Para completar, daria aos profissionais da saúde a possibilidade de analisar a incidência do vírus dentro da comunidade, tanto no nível nacional quanto no nível regional.

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A Fundação Paul G. Allen doou 10.000 smartphones para auxiliar na coleta de dados, mas em março de 2015, menos de 1.000 aparelhos haviam sido utilizados

"Essa é uma falsa dicotomia; não é porque temos acesso à novas tecnologias — como o celular e o tablet — que deveríamos necessariamente utilizá-las para coletar dados", disse Busch. "Na verdade, o importante é escolher a tecnologia certa para cada situação. E muitas vezes acabamos descobrindo que o papel é uma ótima opção, possivelmente a melhor de todas."

Além do papel ser uma escolha melhor no que concerne a coleta de dados, ele também é uma opção melhor para as pessoas que fazem esse trabalho. Todos sabem que alguns de nós ainda preferem escrever à mão. A decisão de usar o papel pode trazer até mesmo um benefício cognitivo: pesquisadores descobriram que as pessoas processam informações escritas à mão de forma mais completa do que as digitadas em um dispositivo eletrônico.

É claro que não basta trocar toda tecnologia pelo papel. O que fizemos foi repensar a estrutura e o conteúdo dos formulários utilizados na Libéria, reformulando-os para atingir uma maior eficácia.

A antiga versão do formulário do hospital ao lado da nova. Crédito: Mahad Ibrahim

Os testes apontam que digitalizar esses documentos não é apenas viável, mas sim a melhor forma de enfrentar o desafio da gestão de dados. Para provar nossa teoria, contratamos dois transcritores sem treinamento para preencher os novos formulários com dados inventados. Em seguida, esses formulários foram inseridos no Google Forms por outros dois profissionais sem treinamento e, após esse processo, as informações foram escaneadas.

Além do papel ser uma escolha melhor no que concerne a coleta de dados, ele também é uma opção melhor para as pessoas que fazem esse trabalho.

Durante o teste, nossos voluntários completaram 80 formulários. Segundo os resultados, o processo de escanear os formulários é 38 vezes mais rápido do que o processo de inserir os dados manualmente. Embora a equipe tenha levado 153 minutos para digitar os dados, o processo de escanear os formulários levou apenas quatro minutos. Embora a exatidão dos dados numéricos seja mais ou menos a mesma em ambos os processos, a precisão dos dados escritos foi 21% maior na digitalização. E isso é só o começo. Os formulários podem ser aperfeiçoados, de modo a melhorar ainda mais os resultados dos testes.

Combater o ebola não é uma questão simples. A falta de recursos pode ter efeito catastrófico na luta contra o vírus. No entanto, quando munidos da capacidade de analisar rapidamente os dados sobre a incidência do vírus, até as mais despreparadas das operações médicas têm uma chance maior de ganhar a batalha. E o papel, por mais estranho que pareça, pode ser a arma que dará a força necessária para aqueles que marcham para esse combate.

Mahad Ibrahim, Ph.D, é um dos criadores e sócios do Gobee Group, LLC., uma empresa de consultoria social internacional. Esse artigo só foi possível graças à colaboração de Osvaldo Gomez Martinez, Ph.D, Jaspal S. Sandhu, Ph.D, Alexis Santos, e Shannon M. Hamilton. Todas imagens são cortesia do autor, Mahad Ibrahim.

Tradução: Ananda Pieratti