Sexismo no Espaço
​Astronautas Sunita L. Williams e Michael A. Lopez-Alegria na unidade móvel extraveicular. Crédito: NASA

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Sexismo no Espaço

A terceira e última parte de ​série de três matérias sobre questões de sexo e gênero no espaço​.

Esta é a terceira e última parte de ​série de três matérias sobre questões de sexo e gênero no espaço​.

O que acontece quando homens e mulheres ficam confinados sob condições extremas durante longos períodos — digamos, por exemplo, no espaço? No dia 3 de dezembro de 1999, Judith Lapierre, uma especialista na área da saúde e candidata a astronauta, chegou em Moscou para ajudar a solucionar esse mistério. Nos arredores da cidade, pesquisadores dos programas espaciais russo e internacional haviam organizado a missão Simulação de Voo de Tripulação Internacional em Estação Espacial, ou Sphinx-99: uma câmara de três cômodos construída nos anos 60 fora adaptada para simular uma nave em direção à Marte. O experimento já estava na metade, e Lapierre iria se juntar a dois outros astronautas em potencial, um do Japão e outro da Áustria, que passariam 110 dias no módulo, além de quatro homens russos que já estavam lá há seis meses. Ela era a única mulher.

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Tudo seguiu bem até o dia 31 de dezembro — menos de um mês após a chegada de Lapierre e seus colegas na simulação — quando o grupo organizou uma pequena festa de Ano Novo. Celebrado segundo a tradição russa, com muitas doses de vodca — haviam muitas garrafas de vodka e conhaque envolvidas, como manda o costume local — a comemoração foi interrompida quando o comandante da missão, o russo Vasily Lukyanyuk, se dirigiu a Lapierre e sugeriu que eles se beijassem.

"A gente deveria se beijar, eu não fumo há seis meses", disse ele para Lapierre. "Depois da missão a gente pode se beijar de novo e comparar. Vamos fazer essa experiência agora". Em seguida, Lukyanyuk tentou puxá-la para o ponto cego das duas câmeras que vigiavam a tripulação dia e noite. Ele a beijou agressivamente duas vezes, a apalpando enquanto ela gritava em protesto.

Isso ocorreu depois de uma briga que havia marcado o início da festa, resultando em ferimentos no comandante e em um de seus compatriotas. Lapierre diria, mais tarde, que os dois haviam brigado por sua causa. Depois da briga e do assédio sexual, Lapierre pediu ajuda à Agência Espacial do Canadá.

Para sua surpresa, a resposta dos canadenses não foi muito enfática. Eles disseram que esse tipo de comportamento era normal entre os russos, e que denunciar tal atos publicamente causaria um escândalo no país que os hospedava. Seu companheiro japonês desistiu da missão em protesto, mas Lapierre decidiu ficar. Depois de dez dias solicitando auxílio do "controle de missão" e reivindicando mais segurança dentro da simulação, os organizadores do estudo finalmente concordaram em instalar travas nos corredores que conectavam o módulo Russian Mir e o módulo International Mars. Naquele momento, Lapierre e seus colegas já haviam escondido todas as facas da estação.

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"Eu pensei que estaria em boas mãos", diria ela mais tarde. "Mas hoje eu questiono o tipo de apoio psicológico que eles [os russos] estão dando para os cosmonautas, ou se existe algum acompanhamento, porque eu não recebi nenhuma ajuda deles."

No final da missão, Valery Gushchin, o coordenador científico russo, afirmou que a briga teria sido "amigável", e que Lapierre havia "arruinado a missão e o clima ao recusar o beijo". Ele também admitiu que os futuros astronautas russos deveriam receber algumas aulas de sensibilidade cultural.

Esse ambiente opressivo encontrado por Lapierre não existe apenas na Terra. O incidente da Sphinx-99 é apenas um exemplo dos desafios de adicionar dinâmicas sexuais e de gênero às já complicadas missões espaciais. Quando uma tripulação deixa a Terra por meses ou anos, compreender as dinâmicas de um ambiente misto e isolado é essencial para evitar futuros casos de assédio sexual e violência.

Antes que Lapierre chegasse à simulação, Vadim Gushin, um dos psicólogos do governo que acompanhava os participantes, disse para um documentarista holandês que uma mulher "poderia melhorar a situação drasticamente, agindo como uma mediadora entre os homens. Ou ela poderia arruinar tudo. São as únicas opções."

Em um ambiente isolado, uma abordagem feminista, " de tentar ser só mais um companheiro de missão… a ideia de 'eu sou seu igual, posso fazer o que você faz'"— isso não funcionaria, segundo Gushin. "Os homens da tripulação esperam algo diferente da mulher. Eles querem ajudá-la, eles querem ser os cavaleiros que a salvam, ou até mesmo seus filhos. Mas eles não querem outro igual."

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No espaço, a tripulação não pode recorrer ao controle de missão como fez Lapierre, algo que pode ser extremamente problemático, especialmente nos casos em que esses ataques são perpetuados pelo líder da missão, como aconteceu com a mulher.

"Aqui na Terra, casos de violência contra mulheres dentro da NFL e das Forças Armadas já receberam muita atenção", disse a Dra. Marjorie Jenkins, uma cientista da Universidade Técnica do Texas, que já trabalhou com a NASA como consultora de questões de sexo e gênero. Ela afirma que, cada vez mais, o espaço está se tornando um espaço propício para esse tipo debate.

"Em qualquer sistema em que a violência seja um risco ou um problema recorrente, é importante criar e impor diferentes visões de gênero, educação e não-violência ", disse Jenkins. "Mecanismos consistentes e transparentes que permitam acusar formalmente e punir esses agressores são essenciais para o equilíbrio social e para ajudar no processo de superação da vítima."

No entanto, essa estrutura ainda não existe. Em 2007, a astronauta Lisa Nowak dirigiu 1500 quilômetros (supostamente usando fraldas espaciais para diminuir o tempo de viagem) para sequestrar a Capitã da Força Aérea dos EUA Collen Shipman, que ela acreditava ter seduzido o também astronauta Bill Oefelein. Após sua prisão por tentativa de sequestro, a NASA instituiu o Código de Conduta do Astronauta, que elucidava o comportamento adequado nas relações profissionais da empresa, tanto na Terra quanto no espaço.

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Apesar da existência de uma cláusula do Código de Conduta sobre manter "um comportamento profissional nas relações [com outros funcionários da NASA] durante as missões e em situações sociais", esses relacionamentos podem causar muitos problemas.

Um dos fatores que dificulta a já difícil dinâmica entre os astronautas é a imagem dessa profissão no imaginário popular e o machismo que a cerca. Os astronautas, em especial os homens, têm consciência de que sua profissão — assim como a dos pilotos de teste que tornaram a viagem espacial possível e a dos pilotos de caça — é muito atraente para o sexo oposto, algo que pode resultar em uma grande arrogância.

Em sua autobiografia intitulada como Riding Rockets, o ex-astronauta Mike Mullane escreve que "havia um feromônio ainda mais poderoso do que o título de piloto de caça: a palavra 'astronauta'. Nós, homens, estávamos sempre cercados por mulheres. Algumas eram descaradas, usando roupas apertadas que revelavam seus mamilos entumecidos e sorrisos que gritavam 'me possua'".

Esse tipo de postura descrita por Mullane pode, e costuma, chegar até o espaço. Um exemplo: quando a cosmonauta soviética Svetlana Savitskaya —a segunda mulher a ir pro espaço — chegou à estação espacial Mir em 1982, ela recebeu um avental florido como presente de boas-vindas, junto de piadinhas sobre a cozinha da estação ser seu destino.

Apesar da babaquice dos seus colegas cosmonautas, Savitskaya deixou bem claro que ela não ia tolerar esse tipo de comportamento, e teve sucesso em manter uma relação profissional com seus quatro colegas durante a semana em que esteva na Salyut-7.

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Mas a cada dia essa postura de "caubói espacial" dos astronautas fica mais no passado — pelo menos segundo um deles.

"Acho que o estereótipo não se aplica mais", disse Ron Garan, que foi para o espaço pela última vez em 2011 e passou um total de seis meses na Estação Espacial. "O que eu penso é que a maioria dos astronautas tem o tipo de personalidade A. Eles tendem a a ser ambiciosos, e tem que aprender a se relacionar com outras pessoas. Se você tem uma personalidade do tipo A e não sabe trabalhar em grupo, as coisa não vão dar certo."

Ron Garan durante uma missão; Imagem cortesia da NASA

ESPAÇO GAY

Apesar dos acidentes de percurso, "fazer as coisas darem certo" poderia ser o lema extraoficial do espaço e de seus desbravadores.

A microgravidade já abrigou muitas revoluções, desde a amizade entre o cosmonauta soviético Alexei Leonov e o astronauta americano Thomas Stafford em 1975; passando pela Estação Espacial Internacional, símbolo vivo da cooperação multinacional; e chegando no exemplo das astronautas e cosmonautas que mostraram que, apesar de sua curta presença no espaço, elas são tão capazes quanto os homens de fazer o trabalho mais técnico e perigoso do mundo.

Isso faz do espaço uma importante força progressiva na luta por igualdade de outro grupo marginalizado: a comunidade LGBT.

A igualdade no espaço depende da criação de um ambiente inclusivo na Terra. Para tanto, a NASA tem se esforçado para criar uma organização mais inclusiva para pessoas de todas as orientações, fazendo de tudo para promover a causa LGBT.

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Em 2014, a agência estabeleceu medidas para criar um ambiente de trabalho compreensivo para seus funcionários transgêneros e para aqueles que estão no meio do processo de transição, além de oferecer workshops e debates sobre temas que vão de como se tornar um aliado LGBT à sessões de perguntas e respostas sobre a comunidade transgênera.

A maioria dessas iniciativas são organizadas por Grupos de Funcionários LGBT apoiados pela NASA e presentes em vários de seus centros espaciais. O primeiro desses grupos nasceu no Centro Espacial Johnson, em 2010, e é atualmente presidido por Leslie Hammond, uma Controladora de Voo do centro. Hammond é uma simpatizante que se juntou à organização por não aceitar que alguém pudesse ser discriminado por amar outra pessoa. "Eu queria ajudar", disse Hammond. E o Centro Espacial Johnson, diz ela, ficou mais do que feliz em aceitar a sua ideia.

O grupo Out and Allied é um dos nove grupos de funcionários existentes no Centro Espacial Johnson.

"Esse é o tipo de prática que dominou o mercado corporativo americano, e nós do Centro Espacial Johnson estamos tentando seguir esses preceitos", disse Hammond. "A ideia é: se você tem uma grupo diverso de funcionários, você terá ideias melhores."

Mas transformar a NASA em um local de trabalho mais inclusivo não é uma rua de mão única. Enquanto o mundo está começando a aceitar a ideia de que a orientação sexual e o gênero não são coisas binárias, e que nem tudo pode ser divido entre heterossexual e homosexual, homem ou mulher, o espaço pode se tornar o bastião da igualdade para pessoas de todos os gêneros e orientações sexuais.

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"Muitos astronautas que já viram a Terra do espaço falam que quando eles estão lá em cima não dá para entender porque as pessoas daqui brigam tanto", disse Hammond. "Eu vejo isso a partir da perspectiva de poder dizer 'sou quem sou e posso fazer meu trabalho perfeitamente', e, como existem muitas crianças empolgadas com o que fazemos aqui, qualquer discussão sobre orientação sexual teria um impacto positivo na comunidade."

A NASA já teve mais de 560 astronautas; Sally Ride é a única astronauta homossexual da qual temos notícia, apesar de sua orientação só ter sido revelada postumamente por sua companheira Tam O'Shaughnessy. Seu relacionamento de 27 anos foi revelado no obituário de Ride.

Esse número não representa a porcentagem de indivíduos LGBT na população americana, que conta com 1.6% de pessoas que se identificam como gays ou lésbicas e 1.1% que se identificam como "outra coisa", de acordo com um estudo conduzido pelo Centro de Prevenção e Controle de Doenças. Isso significa que, estatisticamente, podem ter existido entre 5 a 6 astronautas na história da NASA que decidiram não revelar sua verdadeira orientação sexual ou gênero.

"Acredito que [sair do armário] é uma decisão muito pessoal para os astronautas, apesar de ter certeza que a Agência e o Gabinete de Astronautas apoiariam qualquer funcionário que decidisse seguir esse caminho", disse Steven Riley, líder do Grupo de Manutenção e Mecanismos de Sistemas, e um dos fundadores do grupo Out & Allie. "É sempre bom lembrar que, assim como celebridades e atletas, essas pessoas estão sob o olhar público, e seu principal foco é a missão."

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"Pessoalmente, eu não ia querer que minha sexualidade virasse o foco da missão."

Riley é homossexual, e afirma que a NASA tem sido um ambiente de trabalho extremamente acolhedor durante suas duas décadas na agência. Apesar desse apoio, ele afirma compreender a relutância dos astronautas em sair do armário; segundo ele, muitos deles sabem que terão outras preocupações a alguns quilômetros da Terra. "Pessoalmente, eu não ia querer que minha sexualidade virasse o foco da missão", disse.

Existem um número de fatores que poderiam levar um astronauta a esconder suas orientação sexual, entre eles o fato de que a maioria dos astronautas da NASA já serviu nas Forças Armadas, que até 2011 tinha uma política criada no mandato de Clinton, a "não pergunte, não conte".

"Os motivos para um astronauta não sair do armário são os mesmos de qualquer pessoa que trabalhe em algum ambiente corporativo nos Estados Unidos", disse Hammond. "Eu, pessoalmente, escutaria qualquer pessoa que quisesse compartilhar sua orientação, mas acredito que se alguém fizesse uma pesquisa na comunidade científica, veríamos que a porcentagem de pessoas que se dizem incomodadas com esse assunto seria bem alto."

Apesar da resistência dos astronautas a sair do armário, Hammond acredita que a NASA faz bem em continuar a promover as questões LGBT dentro de sua comunidade. Por exemplo, uma das maiores fontes de orgulho do grupo Out and Allied é ter representado um centro da NASA em uma Parada Gay pela primeira vez.

"Nossa data favorita é o Mês do Orgulho Gay. Aqui em Houston nós temos uma grande Parada Gay — milhares de pessoas vêm para cá", disse Hammond. "Essa é a quarta vez que participamos. Todo mundo ama — eles batem palma e gritam para a NASA — é incrível."

Apesar da NASA estar seguindo, e bem, os passos da modernidade, Hammon acredita que as coisas podem ficar ainda melhores.

"Podemos sempre melhorar; é para isso que os grupos de funcionários foram criados", ela disse. "O RH, o Diretório e o Conselho de Inclusão e Inovação — eles querem saber como tornar esse ambiente mais inclusivo, e é por isso que eles entram em contato conosco". O Out and Allie participa do processo de recrutamento da NASA, que procura "as mentes mais brilhantes", disse Hammon, com esperança de construir uma cultura onde incidentes como os que ocorrem em Moscou não aconteçam em Houston — ou em Marte.

"Acho que é assim que nos tornaremos mais inclusivos. Não importa quem você seja ou como você se defina. Nós queremos que você compartilhe seu cérebro conosco".

Tradução: Ananda Pieratti