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Tecnologia

Ajudei a Curar o Parkinson Usando um Aplicativo Durante Quatro Minutos

Peraí. Foi só isso mesmo?
​Captura de tela: Apple

"E com vocês: o ResearchKit. Um framework de software criado para beneficiar pesquisas médicas". Assim começou uma seção do evento da Apple, no último dia 9, focado em anúncios simples para divulgar novos produtos, como o último Macbook e o relógio Apple. "Novos apps para Parkinson, diabetes, asma, problemas cardíacos, câncer de mama — isso pode ser INCRÍVEL. E sem mirar em lucros — é a Apple na sua melhor forma", tuitou David Pogue, antigo colunista de tecnologia do New York Times, todo elogios para a empresa.

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ResearchKit é uma imagem espelhada, teoricamente benevolente, dos diversos escândalos de coleta de dados que passaram a definir a indústria de tecnologia nos últimos anos: sim, corporações gigantes (e incluo o governo americano no guarda-chuva de "corporações gigantes", porque sou um blogueiro cool e ousado) estão coletando e utilizando montantes colossais de dados pessoais e privados de maneiras inimagináveis. Mas e se for por uma boa causa? Testei um dos novos aplicativos do ResearchKit e conversei com um dos criadores do app para ver se eu conseguiria entender como tudo funciona — e, quem sabe, largado no sofá, de cueca, curar o mal de Parkinson.

iPhones e, em breve, relógios Apple coletarão uma quantidade impressionante de dados através de diversos hardwares e softwares. Seu iPhone registra quantos passos você dá e onde você vai, e é tecnicamente impossível de desativá-lo.

Para adquirir dados úteis através dos aplicativos de saúde da Apple, é preciso conceder ainda mais informações a eles: peso, altura, idade, gênero e até tipo sanguíneo. (O relógio acrescentará o monitoramento de batimentos cardíacos à equação, o que pode se desdobrar em muito mais dados, como o tipo específico de exercício que você faz e quantas calorias queima.)

Baixei o mPower, um app gratuito, novinho em folha, focado no estudo de Parkinson, da organização sem fins lucrativos Sage Bionetworks, em parceria com vários centros médicos e centros de pesquisa. Ele promete o "estudo mais extenso e abrangente do mundo sobre a doença".

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O app começa empurrando um procedimento de "Consentimento", e num tom bem sucinto e honesto, ele conta exatamente quantos dados serão solicitados. (Muitos.) Também me avisou que "Participar do estudo poderia suscitar uma série de emoções". (Não suscitou muitas.)

O teste me pareceu extremamente vago.

Marquei "Sim" em todas as opções. Cedi à Sage Bionetworks dados sobre meu gênero, estado civil, profissão, idade, e respondi se já fiz alguma cirurgia relacionada a Parkinson. Informei ao aplicativo que não fumo (não havia opção para "talvez dois cigarros por mês, quando bebo", então arredondei). Fiz estimativas de quando geralmente vou dormir e quando acordo. O app me perguntou se já passei por algo chamado "Estimulação Cerebral Profunda", assim, com letras maiúsculas e tudo. Fiquei meio encabulado ao responder que não, como se nunca tivesse explorado de fato as profundezas da minha própria mente. Pediu permissão para usar vários sensores, e autorizei todos: agora, o app sabe minha localização, tem acesso ao meu microfone, sabe quantos passos dou, graças ao sensor de movimento, e para completar, deixei que me bombardeasse com notificações. Então, solicitou meu nome e minha assinatura. Quando você ativa o telefone e retoma o mPower, o app pede para você autenticar sua identidade Touch, isto é, o scanner de digitais, então imagino que tenha minhas impressões digitais também. (Dá para usar um PIN no lugar, mas não usei.)

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É um processo bem longo, e no final, você tem que fazer um quiz para garantir que entendeu, por exemplo, que quantias abundantes de dados pessoais serão utilizados por diversos pesquisadores, cientistas e engenheiros, e embora a Sage Bionetworks fará o melhor para garantir o anonimato, a empresa poder ser invadida e os dados podem ir parar em sites de torrents.

No primeiro dia, a app apresenta pouquíssimos testes no estilo de games. Fiz um teste de memória, uma versão minimalista do brinquedo Genius; um teste que me fez dizer "aahhhhhh" por quanto tempo eu conseguisse; e um exame que me fez tamborilar dois dedos o mais rápido possível. O processo todo levou quatro minutos, no máximo. Em seguida, o app lançou um gráfico com os resultados, coisas eu já sabia porque tinha acabado de responder tudo, e outros dados que eu havia liberado, como o número de passos que eu havia dado aquele dia.

Sem saber muito bem o que eu tinha acabado de fazer, resolvi ligar para o Dr. Stephen H. Friend, presidente da Sage Bionetworks. Ele me contou que os testes do aplicativo são versões dos testes que pacientes de Parkinson fazem com frequência em consultórios; alguns são mais efetivos que as versões tradicionais, de fora do app, outros menos.

"O teste dos dedos é uma forma de fazer algo equivalente", ele disse. "No consultório, pediriam para o paciente fazer uma pinça com os dedos." O teste de memória é inferior; geralmente, com um médico, o paciente passa pelo que Friend chama de "uma bateria de 45 minutos" de testes de memória.

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O teste de voz é mais detalhado, no entanto. "No caso da voz, há mais de 100 dimensões que conseguimos acompanhar, e adquirimos informações bem precisas sobre a rigidez [das cordas vocais]", diz ele.

O teste me pareceu extremamente vago. Existem vários apps médicos que parecem similares, mas não são, como o WebMD, para autodiagnósticos; o Cell Slider, um jogo em que os usuários identificam células cancerígenas em imagens; ou qualquer app desses que ajudam pacientes a se comunicar diretamente com seus médicos.

A ideia é formar uma rede o mais vasta possível: juntar usuários e coletar dados, e fazer com que pesquisadores vasculhem tudo.

A Sage Bionetworks não busca resolver um problema em particular, e Friend diz que isso é intencional. "Poderíamos ter feito um estudo focado para mostrar o poder dos números numa questão particular", disse ele.

Em vez disso, a ideia é formar uma rede o mais vasta possível: juntar usuários e coletar dados, e fazer com que pesquisadores vasculhem tudo, para entender exatamente como um app de pesquisa, de fonte aberta e colaborativo, pode ser usado. No momento, "acho que não sabemos as perguntas certas", ele disse. E ninguém sabe muito bem ainda o que os dados podem iluminar. Tudo que sabemos é que, por ora, os pesquisadores não têm acesso a esses dados.

Eles desconhecem muita coisa, na verdade. O app não usa muito estratégias de games. Friend admitiu que o app é mais útil mesmo quando cada usuário continua fornecendo dados, diariamente, para saberem como as coisas mudam com o tempo, em resposta a diversos fatores ambientais. Então, como incentivar o usuário a continuar jogando uma versão extremamente insossa do Genius?

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"Acho que ninguém descobriu ainda como conquistar a participação de pacientes em apps de saúde a longo prazo", disse Friend. Mas ele acredita que, "a medida que o campo evoluir, o senso de agir pelos outros, e não para si, será um chamariz mais forte".

Me parece otimista demais, mas eu não tenho Parkinson nem conheço alguém que tenha. Se eu conhecesse, talvez me sentiria mais propenso a participar.

Conversamos um pouco sobre privacidade. Privacidade é uma grande preocupação para a mPower, como deveria ser para qualquer app da categoria do ResearchKit. Quantos apps avisam logo de cara que farão seu melhor, mas que às vezes apps são hackeados, e que você pode se ferrar com isso?

O mPower mantém a identidade do usuário no anonimato, diz Friend. "Pesquisadores adorariam retornar e dizer: 'bom, paciente 321, olha o que aconteceu aqui, aqui e aqui, gostaria de contatá-lo', e quando desenvolvemos o projeto, dissemos que não poderíamos fazer isso, porque alguém poderia reverter o uso, ou o governo poderia exigir a identidade de alguém".

Então, por que o app pergunta o meu nome? A troco de quê, se o processo todo será anônimo, no fim das contas? Friend diz que solicita nomes completos e emails para deixar as pessoas mais confortáveis, porque um médico também pediria essas informações, além de funcionarem como uma espécie de Captcha para o app garantir que o usuário é uma pessoa real.

O Big Dataapresenta uma série de armadilhas que pesquisadores médicos nunca enfrentaram

É prática padrão usar um formulário de consentimento em pesquisas; é um best seller da ética médica. E é um bom exemplo do esforço que o mundo da medicina terá de fazer quando desbravar o admirável mundo novo do Big Data: o ResearchKit certamente é a onda do futuro, ou pelo menos uma das ondas do futuro, mas o Big Data apresenta uma série de armadilhas que pesquisadores médicos nunca enfrentaram.

Há questões éticas ligadas à coleta enorme de dados, e questões éticas ligadas a coleta de dados médicos para pesquisas, e de repente, essas questões estão conflitando. Para os pesquisadores se sentirem confortáveis (e para os pacientes se sentirem confortáveis, presumem os pesquisadores), precisam de uma identidade autenticada. Mas para os colaboradores do Big Data — em outras palavras, os usuários de smartphones — também se sentirem confortáveis, precisam abolir a questão da identidade. Esse é o principal estica-e-puxa da transformação da medicina em Google Maps ou Kickstarter, e o mPower ainda não bolou uma solução. Se eu não estivesse escrevendo este artigo, teria desinstalado o aplicativo imediatamente, assim que solicitasse meu nome verdadeiro.

O ResearchKit, que também apresentou um app para ajudar a educar e monitorar pacientes asmáticos, e um app semelhante ao mPower, criado para conectar fatores cotidianos de risco a doenças cardíacas, é uma grande ideia, evidentemente. Que tal juntarmos todos os dados que empresas como a Apple, Facebook e Google estão usando para vendas (sejam vendas diretas ou vendas de informações para os interessados em vendas diretas) e usá-los para algo efetivamente bom? Mas visto que a privacidade — a incógnita de quem detém informações e o que fazem com elas — é uma das preocupações sociais centrais da década, será que vale a pena? Afinal, a NSA alegou a mesma coisa.

Tradução: Stephanie Fernandes