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Música

Fui ver um concerto a uma estação espacial

Com as devidas diferenças, há coisas que nunca mudam.

Milhares de quilómetros longe da Terra, anos-luz conquistados após um trabalho enorme de engenharia e de petróleo queimado, a estação espacial internacional — que é “internacional”, porque no espaço não há fronteiras ou bandeirinhas simbólicas — lembrava um daqueles bares em Berlim ou a ideia daqueles bares em Berlim construída pelo Station To Station do David Bowie ou por filmes expressionistas que só hipsters e estudantes de cinema hipsters têm paciência para ver. Um cheiro a tabaco, álcool, suor, uma loira bonita debruçada sobre o balcão à espera que lhe contes tudo sobre as tuas aventuras pelo gigantesco mar celeste e sobre a mossa que o asteróide B-27FUXE deixou no teu foguetão topo de gama (e, mais importante ainda, à espera que lhe pagues um gin cósmico). Agarrada à órbita de um qualquer planeta por colonizar, a estação vagava sem que nos enjoássemos, naquilo que era uma enorme vitória para a evolução humana: convenhamos, seria chato que alguém vomitasse em gravidade zero. Nessa noite (ou ideia de noite, já que tudo é mais negro aqui em cima, pontuado pelo cintilar de alguma supernova em ebulição) eu tinha ido à procura do rock, que até aqui, longe de tudo, continua a ribombar por entre o feedback de uma guitarra e a cauda de um cometa. Já há muito tempo que não me apanhava no meio de um concerto, que não estava por entre o calor humano e a revolta juvenil de todos quantos se dedicam a ténues instantes de mosh e empurrões, a minutos soltos de acordes duros e ritmos gingões. Não sabia ao que ia, mas tinha de ir, simplesmente, antes que a doença do espaço (os psicólogos chamavam-lhe saudade, mas eu continuo a achar que era uma simples constipação, até porque andava a espirrar verde e esses malditos vírus resistem a tudo, até às temperaturas espaciais) me apanhasse por completo e me obrigasse a regressar a um planeta insípido. A banda, vim a descobri-lo depois, era composta por cinco astronautas cuja identidade não era o mais importante. O seu cartão de cidadão universal era cada guitarra, cada bombo da bateria, cada grito expulso pelo vocalista — frenético, arrasador, parecia querer que todo o universo o ouvisse, independentemente da impossibilidade dessa tarefa. Existiam os cinco, porque o espaço os havia para ali sugado — e porque a agência espacial lhes pagava mesmo muito bem. Eram exploradores, medalhados, elogiados, a sua missão incompleta e inconstante, mas tendo deixado já, pela humanidade, um legado enorme no que à ciência e à investigação diz respeito. Durante hora e meia, procuravam abandonar toda essa ciência e toda essa história em nome daquilo que os fez partir para o espaço em primeiro lugar: a liberdade. E eram verdadeiramente livres naquele instante, sem um painel de controlo e uma ligação directa ao porto espacial que lhes ditasse as tarefas diárias, longe da prisão de fuselagem e combustível que os mantinha conectados ao planeta de origem. E arrasaram — arrasaram porque eram genuínos, intensos na sua abordagem, não à música, mas àquilo que os levou a fazer música. Lembravam um monge que decidiu cantar todas as canções do mundo após uma vida sob o peso de um voto de silêncio. Comentei-o precisamente com alguns outros exploradores, na linguagem babeliana que se decidiu, por conveniência, inventar, para que a comunicação entre povos fosse, cá no alto, muitíssimo mais fácil (e que acabou por arruinar a própria ideia de comunicação). Assim, depois de algumas palavras em inglês, um deles olhou para mim, anuiu, e permaneceu lívido a observar o palco, meio milímetro de um sorriso estampado no rosto. Não havia, aliás, mais do que um leve acenar de cabeças, o que só me fez constatar que até no espaço os mesmos idiotas que em Terra assistem a concertos de braços cruzados existem. Mas o efeito produzido por aqueles cinco fora um tónico apaziguador. E a loira — lembram-se dela? — olhava para tudo com um ar interessado. Não terá sido tanto pelo efeito astronauta, malta detentora da profissão (e dos fatos) mais sexy da galáxia, como pelo efeito do rock (vi o baterista entrar com ela, depois, numa cabine de despressurização). O nome da banda esqueci-o, porque o gin mantém cada qual das suas propriedades cirúrgicas até aqui, mas também porque não interessava. Procurar pelos seus discos na rede arruinaria todo aquele momento, que se quer breve, que se quer colado à pele e não reexplorado ou reescrito — que se quer, digamo-lo, sem guerras atreladas. Aqueles ritmos repetitivos, os riffs rasgados e que deixaram marcas até quando o amplificador emudeceu (nomeadamente, vestígios de sangue na guitarra de um deles), a loucura bipolar dos versos, que cabia ora na ponta de um alfinete ora englobava toda a Via Láctea. Este concerto e tudo aquilo que possibilitou não se apaga facilmente. E ao regressar ao meu próprio hotel espacial — a luz de um sol distante a iluminar o metal cromado e minúsculas partículas de poeira estelar a colarem-se às janelas frias — o som ainda me ressoava no cérebro, não obstante o vazio astral em que me encontrava. Não quererei regressar à Terra assim tão cedo. Lá tudo é demasiado plastificado. E amanhã a banda toca outra vez. NOTA: Caso estejam na dúvida, este artigo é uma ficção. Talvez um dia seja verdade. Ilustrações por Mother Volcano